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Retratos Contados

Iniciado por B.loder, 26/02/2017 às 20:32

26/02/2017 às 20:32 Última edição: 26/02/2017 às 20:36 por B.loder
RETRATOS CONTADOS



[info][box2 class=titlebg title=.]
Então pessoal, depois de muito tempo eu acabei voltando ao fórum e decidi compartilhar com vocês o primeiro livro que de fato concluí.
Bem, é um livro de contos, então não sei se entra no aspecto de livro concluído e da superação que é chegar ao final dessa jornada, mas de
qualquer forma, decidi que seria interessante partilhar do fruto dessa experiência com vocês. O livro em questão contém cinco contos, dois
dos quais já estavam postados aqui no fórum.
Os contos em questão são:

Spirito Di Vendetta.........03
Olhos Azuis......................35
Seja Deus..........................49
Infernos Pessoais............55
Sobre Arte No Futuro....79


Disponibilizarei os contos para leitura aqui neste tópico, além de preparar um link para download da obra completa.
Desde já agradeço a quem tirar o tempo para ler os contos e em especial a quem comentar, porque é o feedback que faz o autor melhorar.
Muito obrigado.
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[info][/info]

[box2 class=titlebg title=Spirito Di Vendetta]
Spoiler
A luz entrava por feixes, bombardeando meus olhos. Pude ouvir o som de um motor, provavelmente um carro, então uma sirene que parecia pertencer ao veículo em que eu estava. Me encontrei deitado, sendo observado atentamente por um homem que usava luvas verdes e uma máscara branca cobrindo apenas a boca. Ele arregalou os olhos em surpresa quando tentei me levantar. Meu coração se agitou, parecia que poderia sair pela boca a qualquer momento. Tive dificuldade para respirar.
— Ele estava morto! Eu tenho certeza!
Senti uma picada de formiga no braço. Meus olhos vagaram uma última vez pelo interior daquela ambulância enquanto fui tomado pela escuridão.



Estava deitado numa cama que mais parecia uma maca. Cortinas brancas e cheias de desenhos infantis em azul me cercavam de todos os lados. Não podia ver a comoção que ali fora ocorria, mas podia ouvi-la. Alguém estava muito ferido e precisava ser tratado imediatamente. Sons de metal se chocando podiam ser escutados a todo o momento, provavelmente instrumentos sendo jogados de volta em suas tigelas de origem. Inspirei fundo e tentei focar naquilo que podia lembrar.
Notei que estava usando a clássica vestimenta de paciente; algo que mal pode se chamar de roupão em verde e a bunda à mostra.
Na prateleira ao meu lado estavam alguns documentos e uma insígnia policial, entre eles uma identidade. Tomei-a nas mãos e li meu nome tentando recordar. Tom Alligieri. Nome bonito, devo dizer.
Fechei os olhos, mergulhando em minhas memórias, tentando me agarrar a tudo que pudesse. Foi quando me senti afogando diante de tudo aquilo. Minha vida se desenrolou diante de meus olhos como um filme. Um filme cheio de sangue e transgressões. Um filme que não me trazia um mínimo de orgulho, mas me arrastava numa preocupação terrível.
Meu nome é Tom Alligieri. Eu trabalhei por cinco anos sob as ordens de Enrico Mercuccio, aquele a quem se pode atribuir o título de chefe de máfia desse buraco que chamamos de cidade. Por quatro anos fui seu lacaio mais fiel, aí está a parte da vergonha. Porém no último ano conheci sua filha, Michelle. Fui incumbido de vigiá-la para garantir que não estava saindo com um certo rapaz da faculdade.
Como dita o destino, a vida deve ser sempre recheada de ironias, e foi por isso que acabei me envolvendo com a garota. Posso dizer com todas as letras e palavras que eu a amava como nunca amei. Com certeza, podia dizer que nunca iria amar alguém daquela forma.
Veja bem.
Eu estou morto.
A última memória que consegui encontrar consiste em observar o chão enquanto estou pendurado pelos braços por algemas. Quando Enrico finalmente cansou de assistir seus capangas me espancarem — previamente colegas meus, com os quais eu costumava fazer esse tipo de serviço —, ele se levantou e apontou uma metralhadora para meu peito.
Felizmente, só me lembro do primeiro disparo. Infelizmente não me lembro de muito mais, nem mesmo sobre aquela cena. Não conseguia reconhecer os capangas.
— Precisamos movê-lo para a sala de cirurgia! — Ouvi um dos enfermeiros falar agitado enquanto rodinhas resvalavam pelo chão fazendo um barulho irritante. Logo dezenas de passos apressados seguiram o tilintar dos utensílios metálicos, seguidos pelo absurdo silêncio.
Eu não sabia o que estava acontecendo, mas tinha certeza de que aquele era o melhor momento para sair daquele lugar. Tinha algo que eu precisava fazer.
Me remexi na cama e afastei devagar a cortina para o lado, observando atentamente, analisando o cômodo. De fato, não havia ninguém, mas não ia permanecer daquela maneira por muito tempo. Me coloquei de pé e notei que a sala era razoavelmente grande. Havia quatro macas cobertas por cortinas ali, mas todas estavam vazias. Próximo à porta havia uma pia pequena onde descansavam alguns utensílios médicos.
Peguei um bisturi.
Quando meus olhos encontraram o espelho à minha frente, objeto que pareciam estar tentando evitar, me assustei como se a minha frente houvesse um demônio de carne e osso. Agora pertenciam a mim olhos azuis e cabelos negros já recheados de um branco acinzentado. Minha barba havia desaparecido completamente e meu rosto tinha uma estrutura completamente nova. Eu de fato, habitava o corpo de outra pessoa.
Agradeci nesse momento por tudo que já passei. Se não fossem tais experiências, eu não conseguiria ter me arrastado para fora, ignorando completamente a insanidade da situação. Pensando por um segundo, notei que havia um corte em minha testa, do qual ainda saía um pouco de sangue. Para minha sorte, encontrei um chapéu marrom pendurado numa cadeira.
Caminhei pelos corredores do hospital tentando parecer despreocupado, até ser abordado por uma enfermeira de cabelos ruivos longos e um batom rosa claro.
— O senhor parece estar perdido, posso ajudá-lo em alguma coisa? — Ela perguntou com um sorriso largo e amigável, mas inquietante. Ela esquivou o olhar por um segundo e depois voltou-se novamente para mim, abrindo outra vez o sorriso.
— Preciso encontrar meus pertences — ela assentiu com a cabeça. — Acho que fui trazido com os outros policiais, mas não tenho certeza.
— Ah, sim! Sei, venha comigo, vou te levar para os trocadores — falou se virando sobre os calcanhares e passando a caminhar apressada. Notei logo que todos naquele hospital tinham esse caminhar apressado, achei aquilo curioso.
As paredes brancas demais e as luzes ofuscantes do teto passaram rápido enquanto eu atravessava corredores vazios, encontrando raramente, por vez ou outra, algum paciente ou enfermeiro. Todos solitários. Ela finalmente parou e quase a atropelei sem perceber.
— Suas roupas estão aqui, nós deixamos as armas de fogo com um colega de vocês que se dispôs a entregar elas, ele deve estar aí dentro em algum lugar. Espero não te ver aqui de novo — falou sorrindo novamente.
— Eu estou tão feio assim? — Comentei.
— Não, isso é um hospital, ninguém vem aqui porque acha divertido — sorriu de novo antes de exibir um olhar aterrorizante e cerrar os lábios — Além disso, não pense que esquecemos o que você fez com a Maria — murmurou ao depositar uma chave em minha mão, se virar e desaparecer tão agitadamente como havia chegado ali.
Atravessei a porta e fui levado para os filmes clássicos de ensino médio. Era uma sala cheia de armários, todos enfileirados. Havia um homem de tez morena e cabelos castanhos tirando o roupão de paciente ali. Ele ficou nu. Virei o rosto e comecei a procurar o armário de número 28B. Ficava ao lado daquele indivíduo sem pudor.
Pensei em esperar que ele terminasse de se vestir, mas sabia muito bem que não tinha alta e era só uma questão de tempo até começarem a me procurar. Não podia ficar aqui. Enfiei a chave na fechadura e ele pareceu se assustar, mais que eu esperava na verdade.
— Marco! — ele praticamente gritou antes de me abraçar. Agradeci em silêncio por ter esperado ele vestir as calças. — Eles não me falaram como você estava, fiquei preocupado. Bom saber que você já recebeu alta. Então, quer carona? Posso te deixar em casa se quiser.
— Eu só preciso me vestir e pegar minha arma, mas agradeceria bastante se pudesse me deixar em casa.
— Eu não sou louco de te deixar ir sozinho, a Beca me daria um tiro se soubesse que deixei o queridinho dela ir ferido para casa — falou rindo. — Então se veste aí e vamos lá pegar nossas coisas — disse terminando de colocar uma camisa bege.
Abri meu armário e encontrei uma camisa verde-escuro bem amarrotada e uma calça social preta. Me vesti o mais rápido que pude, enfiei o bisturi no bolso e segui meu colega de nome desconhecido. Provavelmente era amigo de quem eu fui — se é que posso me referir a ele assim.
Marco. Era esse seu nome. Ou meu nome. Ainda precisava aprender a lidar com a nomenclatura da situação. E, bem, com a situação em si.
Agora eu tenho um amigo cujo nome não lembro. Alguém chamada Beca me aguarda, só posso imaginar que se trata de minha esposa. Meu deus, ele tinha uma esposa. Ele poderia ter filhos. E agora ele está morto. Bem, está? Não importa. Não posso me dar ao luxo de pensar nisso agora. O que me interessa é salvar o filho que eu sei que existe. O filho que está na barriga de Michelle.
O quê?
Por que eu só lembrei disso agora?
Terminei de me vestir e fui apressado encontrar meu colega. Passamos por outro policial que estava sentado comendo uma rosquinha, ele conferiu nossas identidades, nos entregou nossas armas em seus coldres e seguimos para fora do hospital. Tentei me acalmar, quanto tempo fazia que eu tinha morrido? Eu sei muito bem que Enrico não a deixaria ter meu filho. Eu não seria pai do neto dele, então só havia duas situações possíveis aqui. Não gostava de nenhuma delas.
Então entrei no carro e fomos para a casa de Marco.
A cada dez segundos meus olhos eram agredidos pela luz forte de algum farol alto. O colega cujo nome ainda não sabia parecia distraído com a música que tocava, não muito preocupado. Reconheci a música como sendo how can I go on do Queen. Tentei ocupar minha mente por alguns segundos quando fui atingido por uma bala. De certa forma, literal e figuradamente.
Estava em um galpão gigantesco. Vários policiais avançavam aos poucos no meio de um tiroteio incessante. Fossem diferentes os sons doídos das balas encontrando os containers, poderia ter confundindo aquilo com uma chuva forte. Então tudo ficou escuro. Ouvi alguém gritar por ajuda. Ouvi alguém dizer "policial ferido". Aquilo me fez rir.
— Ei! Você tá bem? — Ele balançou meu ombro. — Se quiser eu dou meia volta e te deixo no hospital
— Não, eu... Eu estou bem. Só um pouco cansado. Dia difícil, tive muita sorte de sair vivo daquele galpão.
— É verdade, foi complicado, mas deu tudo certo — ele fitou a estrada em silêncio. — Aposto que está louco pra ir à delegacia e voltar àquele caso, não é? — Assenti em silêncio sem saber do que ele estava falando. — Como era o nome do cara mesmo? Tomas?
— Só Tom, na verdade — murmurei automaticamente. — É verdade... — Tentei pensar em como conseguir a informação que precisava. — Eu estava chegando em algum lugar, mas ainda estou meio zonzo... Ei, tem como você me fazer um favor?
— Claro — ele falou prontamente dando um tapinha no meu braço, como um bom amigo, um amigo antigo. — Diga lá.
— Tem como você conferir para mim a data exata da morte?
— Uh-hum, te ligo pra avisar assim que chegar na delegacia —virou bruscamente o carro. — E quanto a você — me fitou sério nos olhos. — Trate de não deixar a Beca preocupada hoje. Aproveite a noite com sua esposa, ela deve estar desesperada.
— Certo, prometo que tomarei conta dela — respondi forçando um sorriso.
Chegamos. Desci do carro e me despedi com um agradecimento, reforçando que me ligasse assim que confirmasse a data da morte. Da minha morte. Caminhei na direção de casa enquanto ele ligava o motor. Logo ele acelerou e desapareceu na noite. Respirei fundo e dei meia volta. Se havia algo que eu não poderia fazer agora é encontrar a esposa desse homem. Esse que não era mais ele mesmo.
Enfiei as mãos nos bolsos. Havia o bisturi, uma chave para a porta da casa e outra para um carro que não via em lugar algum, além de uma carteira com uns duzentos reais, um cartão de crédito, e um celular. Fiquei imaginando de onde vinha tanto dinheiro físico. Comecei a caminhar em direção a uma praça próxima.
No caminho liguei para um táxi e o encontrei ali. Pedi que me levasse a uma rua escura que já conhecia muito bem. Ali estava a parte de trás do prédio em que ela vivia sozinha porque não queria ser associada ao tipo de coisa que acontecia na casa de seu pai. Não podia culpá-la.
Paguei o taxista e passei a caminhar nervoso por aquelas quadras. Podia ser que algum dos capangas do meu antigo chefe estivesse à espreita, mas se fosse o caso, ao menos não poderiam me reconhecer. Puxei as escadas da parte de trás do apartamento e comecei a subir. Entrei pela janela como fazia de costume.
Meu celular tocou.
— Alô? Marco? Onde você está cara? — Ouvi o colega sem nome perguntar. — Beca me ligou agora perguntando onde você estava e eu falei que tinha ficado no hospital mais um pouco, mas o que diabos você está fazendo? Perdeu o juízo?
— Eu não estava me sentindo bem — murmurei. — Minha intenção não era preocupar ela, só... Eu precisava de um tempo. Estou numa lanchonete comendo... — Ele começou a falar algo, o interrompi. — Você conferiu aquilo para mim?
— Você devia...
— Por favor!
— 'Tá bem, 'tá bem — ele suspirou. — O cara morreu antes de ontem, eles estimam que tenha sido das nove da noite às três da manhã, não dá pra ter certeza. Satisfeito?
— Sim, muito obrigado — falei baixo. — Nos vemos amanhã — tentei parecer otimista, mas acredito que falhei miseravelmente.
Guardei o celular e olhei ao redor.
O lugar estava exatamente como na última vez em que estive aqui. Não sabia dizer se era algo bom ou ruim. Andei pela sala de estar como uma sombra, sem ter certeza se havia alguém mais ali. Sem saber se ela estaria ali. Cheguei ao quarto que outrora nos trouxera tanta felicidade. Tantas noites em que o frio fora afastado por seu corpo quente. Tantas noites de calor intenso em que nossos corpos pareciam estar em chamas.
Abri a porta aos poucos e ela rangeu. Lembrei-me de várias ocasiões em que esse rangido nos assustava. Recordei da última vez que ouvira aquele rangido, quando Enrico nos encontrou ali. Resvalei à porta tentando não fazer muito barulho e cheguei à cama. Constatando que não havia ninguém, liguei o interruptor da luz.
"Ela tinha um diário, não tinha?" Me lembrei.
Embaixo da cama? Na prateleira? Não, óbvio demais. Seu pai poderia achar. Onde então? Olhei para as paredes e vi um relógio pendurado, quadrado, torto. Ele sempre pendia levemente para algum dos lados, variando de acordo do dia. Era ali que ela escondia. Tirei o relógio e encontrei um buraco irregular na parede, como se quebrado por uma marreta nas mãos de alguém inexperiente. Provavelmente era o caso.
Tirei dali o diário e comecei a folheá-lo. O relógio mal pendurado caiu da parede, batendo na cabeceira da cama. Por um segundo imaginei ouvir uma cadeira ranger. Vigiei a porta por alguns segundos e voltei minha atenção ao diário novamente. Sua última descrição tinha sido do dia em que fui morto. Engraçado como depois de algumas vezes, não soa mais tão sórdido e moribundo falar de própria morte.
Michelle... Eu preciso encontrá-la.
Ouvi um passo pesado como uma montanha se movendo. O chão de madeira soltou um rangido doloroso sob seus pés enormes. Meu crânio deixou escapar um ruído oco ao ser atingido por um pedaço de madeira. Me joguei para fora da cama e caí de bruços no chão. O mundo parecia girar.
— O que diabos você está fazendo aqui? — Ele murmurou se aproximando. Reconheci sua voz. Já tinha trabalhado com ele, mas não conseguia lembrar quando.
Ouvi outro passo pesado. Rolei no chão e nossos olhos se encontraram. Ele esboçou um sorriso arrogante no canto da boca. Saquei minha arma e apontei para ele.
— O que acha que vai fazer? Atirar em mim? Acha mesmo que vai sair daqui vivo se der um tiro?
Pensei no que ele disse. Ele com certeza estava só, se houvesse mais alguém eu já estaria amarrado. Olhei ao redor, ele pareceu perceber que eu estava preocupado e se aproximou, preparando-se para jogar seu punho contra mim.
Rolei mais uma vez, agora desviando do golpe. Seu punho acertou o chão, rachando-o com força. Ele gemeu e xingou alto. Logo, pus-me de pé depressa e puxei um travesseiro azul da cama. O homem enorme avançou novamente contra mim, dei um passo de lado para a esquerda e joguei seu punho sobre meu ombro. Empurrei-o contra a parede. Pressionei o travesseiro contra seu estômago. Puxei o gatilho.
— Filho de uma desgraçada! — Ele rosnou. — Eu vou te matar seu...
— Ei, calma aí colega — falei esboçando aquele mesmo sorriso que ele exibira para mim. — Agora, o que acha de conversarmos? — Ele me ignorou prontamente. — Quanto tempo acha que vai sobreviver com esse buraco no meio da sua barriga? — Ele cometeu um erro, me deixou perceber que estava apavorado.
— O que você quer? — Murmurou.
— Onde está Michelle?
Ele ficou assustado e então virou o rosto novamente, decidindo me ignorar. Passou alguns momentos em silêncio, apertando o próprio estômago com a mão.
— Se você me disser o que aconteceu depois que me... Depois que mataram Tom, eu posso ligar para a ambulância — comentei enfiando a mão no bolso e tirando dele o meu telefone celular. Exibi o aparelho, zombando dele.
Ele desviou olhar por tanto tempo quanto pôde. Então me aproximei devagar. Me lembrei bem daquilo, era no que eu era bom. Joguei o celular no chão sem cuidado. Ele retesou os músculos do rosto, irritando-se cada vez mais. Sorri mais uma vez e aproximei meu pé do telefone.
— Quanto tempo? — Pisei em sua mão, fazendo-o gemer nervoso. Coloquei mais força, ele tentou socar meu joelho com a outra mão, então desferi um golpe rápido em sua garganta. Me afastei enquanto ele agarrava o próprio pescoço, tentando conter a dor. — Meu deus, como eu sou descuidado — zombei do homem impotente. — Como é que você vai me falar agora? Quer dizer, acho que se esperarmos um pouco vai conseguir dizer o que aconteceu, mas com certeza você vai perder uns minutos por causa disso. Ah, não é como se fosse fazer diferença, não é mesmo? Você só tem um buraco na barriga, aposto que os paramédicos vão resolver seu problema rapidinho — exibi pela última vez aquele sorriso cheio de dentes e cheio de arrogância.
Gotículas de suor brotaram abaixo de seu cabelo negro, cobrindo completamente sua testa e escorrendo aos poucos por seu rosto. Seu corpo estava tenso como uma rocha. Ele gemeu enquanto o sangue tingia suas calças.
— E... Ela... Ela... Va... Vai...
— Diga logo desgraçado, você não quer viver? — Chutei sua perna com força, ele franziu as sobrancelhas e estreitou os lábios. Acredito que vi lágrimas escorrerem por seu rosto, não tinha certeza.
— Abo... Abor... Abort...
— Não! — Pude sentir a arrogância desaparecer de meu rosto. Meus músculos queriam se contorcer e minha cara demonstrar o mais genuíno desespero. — Onde ela está? Ela já... — Não consegui terminar de falar.
— Nã...
— Onde ela está?! Eu juro por deus que se você não disser onde ela está eu vou te matar agora!
— An... Anast...
— Ela está na casa da mãe dela?
Ele assentiu em silêncio. O reverenciei com a cabeça, como num silencioso agradecimento, e me preparei para sair da sala. Logo o homem começou a gemer furiosamente, espernear e bater nas paredes. Quando nossos olhos se encontraram ele passou a apontar para o telefone como se sua vida dependesse de eu entender o que queria.
Quer dizer, dependia.
Me aproximei do telefone, fitei-o seriamente, e então chutei o telefone. Estava pouco mais perto dele agora, não muito. Ainda teria que andar, engatinhar ou se jogar para conseguir agarrá-lo. Esperava ver seus olhos se encherem de fúria, mas se encheram de lágrimas.
Dei de ombros e parti pelo mesmo lugar que vim, agora carregando o diário de minha amada. Caminhei até o ponto de táxi mais próximo. Sabia o que devia ser feito.
Enquanto estava sentado naquele banco de couro mofado do táxi, senti algo estranho. Um zumbido irritante tomou conta de toda minha audição enquanto a estrada parecia se confundir com o céu enegrecido daquela noite. Uma mão feminina tocou meu antebraço, suas unhas roçando minha pele.
Olhei para o lado e notei uma morena de cabelos longos e enrolados se aproximando aos poucos, como um animal selvagem que espreita sua presa. Seus lábios encostaram nos meus e nos entrelaçamos por breves momentos ardentes. Um homem baixo de cabelo loiro e barba espessa afastou as cortinas — um bocado de pedras vermelhas e amarelas penduradas por fios que mal podia chamar de cortinas — e entrou.
— Marco, o chefe mandou te chamar, parece que tem alguma coisa errada com o carregamento que chegou.
Assenti prontamente e me levantei, exceto que não era eu. Era como se estivesse assistindo um filme em primeira pessoa, não conseguindo me impedir. O lugar em que eu estava tinha um charme único. Havia um bar no centro do cômodo que possuía a altura de dois andares. Do topo pendia um lustre que pousava sobre os corpos nus uma luz levemente avermelhada. No segundo andar haviam sacadas viradas para o interior, dali ouvia-se apenas gemidos e gritos de êxtase.
Segui meu colega loiro enquanto ele atravessava tentando desviar dos casais em pleno ato, ou das moças que pareciam se jogar para cima dele. Finalmente chegamos a uma porta, provavelmente o único cômodo com real privacidade do lugar. Ele bateu na porta e após alguns momentos inquietos, abriram-na por dentro.
O cômodo estava bem iluminado, as paredes de cores claras faziam doer meus olhos. Meu chefe, um homem de uns cinquenta anos que quase não apresentava rugas em sua feição asiática, estava de pé enquanto uma moça de mesma etnia estava de joelhos à sua frente. Para minha sorte, ele estava de costas, e não pude ver muito do que estavam fazendo.
— Poderia me dar licença, querida? Como pode ver, eu tenho convidados — falou se afastando. Ela se levantou depressa. Logo abotoou as calças, ajeitou a camisa e se virou para nós. — Marco, vou precisar dos seus serviços — ele parou por um segundo, ajeitou a gravata e observou a moça colocar a saia. Logo ficou irritado. — Ande logo, eu estou ocupado!
Ela assentiu em silêncio, assustada como alguém que teme aquele homem tanto quanto pode. Estava tão íntima dele. Aquela cena me trouxe sensações ruins, mas também memórias. Já fui aquele homem, já fiz o que ele fez, ou o que ele faz.
Logo a moça correu para fora do cômodo quase tropeçando, ele continuou.
— Um dos meus resolveu tentar passar a perna no Enrico, e agora eu preciso evitar que a situação acabe da pior forma possível — concordei em silêncio. — Vamos conversar sobre os detalhes no carro, não confio nesse lugar.
— Mas você é o dono desse lugar — comentei.
— Por isso mesmo que não confio em uma só alma que está aqui — sorriu. — Vamos, temos que resolver um problema grande como um caminhão de cocaína.
— Então, é aqui? — Ouvi uma vez perguntar. Uma voz de fora. Uma voz diferente.
Estava novamente no taxi.
Assenti, paguei e saí.
Ao que parece, Marco não era uma pessoa assim tão correta. De certa forma, isso me fez sentir menos pior por tomar sua vida para mim. Dei alguns passos e parei de frente para a casa de cor branca enorme que ficava no fim da rua. Olhei para uma janela de um quarto no segundo andar onde a silhueta de uma moça passava. Michelle. Só podia ser ela.
Então, meu chão desabou e flutuei em desespero. O que eu diria? Como podia chegar até ela? O que eu iria fazer? O que, afinal, eu estava procurando? Vingança? Passar o resto dos meus dias com o amor da minha vida? Não, aquilo era impossível. Ela não ficaria comigo.
Inspirei fundo.
— Detetive, o que está fazendo aí parado essa hora da noite? — Perguntou uma voz rouca. — Descobriram alguma coisa importante? Ah, que indelicadeza a minha. Venha, entre — comentou uma velhinha de cabelos meio louros meio grisalhos enrolada em um roupão preto e um cachecol branco enquanto abria a porta e entrava na casa. Segui sentindo que não tinha escolha.
A casa tinha adornos em forma de gatos. Por todo lado, gatos de madeira, de cerâmica, estampados, pintados, coloridos, desenhados. Um miado ecoou pela casa enquanto um gato branco como a neve atravessava o corredor à minha frente. Fiquei observando sem falar nada, preso demais em mim mesmo, pensando no que dizer para Michelle. Pensando em como ela poderia reagir. Não acho que seria exagero dizer que pensei em todas as reações possíveis.
— E então, o que foi? Você parece preocupado — comentou a senhora. — Descobriram quem matou o rapaz? — Suas mãos tremiam, fazendo a tigela de leite respingar.
— Não, ainda não descobrimos... Eu gostaria de falar com Michelle...
— Ah, ela não... — percebi que ia tentar inventar algo para me mandar embora. Prontamente a interrompi.
— Era ela na janela lá em cima, não era? — Ela arregalou os olhos. Suspirou e assentiu em silêncio. — Será que poderia chamá-la?
Ela assentiu em silêncio outra vez, pousou a tigela de leite no chão e passou a subir as escadas. Observei enquanto um gato preto como a noite se aproximava para beber o leite, ao lado daquele que vira antes, todo branco. Ambos se ignoravam mutuamente.
Michelle desceu.
Eu gostava de achar que estaria preparado para aquele momento. Queria acreditar que quando a encontrasse não sairiam lágrimas de meus olhos e meu ímpeto de abraçá-la e acariciar seus cabelos seria prontamente abafada em meu peito. Engoli em seco, enxuguei as lágrimas e me recompus. Esbocei o sorriso mais torto que já mostrara a alguém em toda minha vida.
Michelle estava usando uma calça de pano branca com bolinhas vermelhas e uma camisa de alça fina listrada em vermelho e branco na horizontal. Seus olhos azuis, tão profundos quanto o medo que sentia do que ela diria. Seus cabelos castanhos cortados à altura do queixo. O corte de cabelo, o estilo, sua forma de andar. Estava tudo ali.
— Boa... Boa noite — murmurei, sem saber por onde começar. Sem saber o que dizer. Ela olhou ao redor com olhos semicerrados. Então caminhou leve como uma pluma para o sofá à nossa esquerda e se sentou. Com um gesto convidou que fizesse o mesmo se parei sentado no sofá de frente para ela.
— O que está fazendo aqui? Me disseram que a investigação ia ser cancelada, então o que o senhor faz aqui uma hora dessas?
— Michelle, eu preciso te perguntar uma coisa — falei nervoso.
Ela notou e se empertigou no sofá. Observou atenta, esperando.
— Você está grávida, não está?
Seus olhos se encheram de lágrimas, mas ela não permitiu que sequer uma delas fosse derramada.
— O que... — tentei não permitir que minha voz tremesse. Não consegui. — O que aconteceu, Michelle?
Ela se virou para mim furiosa.
— Não importa! — Vociferou. — O que você quer?
— Eu... Eu não sei como dizer isso.
Ela pareceu curiosa e assustada, se aproximando com o corpo sem sair do lugar. Principalmente, estava confusa.
— Sou eu, Tom — os olhos dela se arregalaram em espanto. Então seu rosto se contorceu na mais pura expressão de ódio enquanto se afastou. — Eu não sei o que aconteceu, mas eu...
— Sai daqui seu idiota! O que acha que está fazendo? — Ela se levantou irritada, apontando para a porta enquanto aumentava cada vez mais o tom de sua voz. — Qual o seu problema?! O que acha que vai conseguir aqui?!
Dei um passo em sua direção. Ela tomou da mesa um prato de porcelana, ameaçando jogá-lo. Fiquei imóvel, observando enquanto sua fúria se reprimia em tristeza. Os músculos de seu braço erguido no ar relaxaram. Ela deixou o prato cair no chão e este se quebrou em vários pedaços. Imaginei que sua mãe viria, mas ela não veio.
Dei outro passo.
— Fique longe de mim!
Ela caminhou cambaleando na direção oposta, parecia querer manter o máximo de distância possível. Parou junto à janela.
— Eu não sei que joguinho doentio você está jogando — ela falou enxugando as lágrimas com as costas da mão. — Sai daqui. Não quero mais ver a sua cara — voltou a ficar agressiva. — Se não sair dessa casa agora...
Observei sua boca trêmula mais uma vez. Me lembrei dos momentos em que passara junto de seu corpo. Prestei redobrada atenção àquela pele macia como um pêssego, aquela cujo toque ela negava. Eu quis chorar. Por pouco não caí de joelhos, então a fitei tentando me recompor. Seus olhos estavam apreensivos como os de um animal encurralado que faria tudo que fosse para sobreviver, se assim fosse necessário.
Dei um passo para trás, exibindo minhas mãos para frente em sinal de rendição.
— Eu vou sair daqui, só preciso saber o que aconteceu com meu filho — falei tentando manter a calma. Suas sobrancelhas se tornaram esguias. Ela mordeu o lábio com força e cerrou os punhos.
— Você não tem o direito... — Uma lágrima fina e tênue escorregou por sua bochecha agora avermelhada, acalorada.
Michelle virou-se para a janela. Tocou o vidro com seus dedos e ficou em silêncio. Alisou sua barriga delicada por cima da camisa quase colada, com a mais absoluta tristeza em seu olhar. Fiquei mudo, observando-a. Esperando qualquer reação. Torci para que ela atirasse em mim pratos, vasos e qualquer outra coisa. Não conseguia suportar aquele silêncio.
— Ele está morto — ela murmurou.
Continuei em silêncio. Talvez fosse estupido a ponto de achar que ela poderia em algum momento acreditar em mim, mas não o suficiente para deixar de entender o óbvio. Enrico ia pagar com sua vida. Agora eu entendia bem, claro como o dia, a razão de estar aqui outra vez.
— Obrigado — falei mantendo a calma. — Eu...
— Só vai embora. Não volte aqui. Nunca mais.
Assenti em silêncio enquanto os cacos de meu coração caíam e me coloquei no caminho para a saída. Saí de sua casa e fui andando na noite escura. Não sabia para onde ir. Só precisava descansar. Não tinha tempo para isso.
Ouvi uma sirene e corri. Pulei um cercado e esperei a viatura atravessar o quarteirão antes de sair dali. Logo que foi possível, continuei meu caminho.
Precisava visitar meu sogro.



Tentei contar as coisas que amava em Michelle enquanto observava a cidade passar de dentro do taxi. Ela era linda, mas acabava aí. Não conseguia me lembrar bem dos momentos que passamos juntos. Queria me recordar de tudo, mas as memórias me escapavam entre os dedos. Enxuguei as lágrimas com as costas da mão e contei quantas balas ainda tinha.
Por fim, ali estava eu, à porta da casa de Enrico. Era uma mansão gigantesca, completamente bem guardada por todos os lados. Caminhei como qualquer desinteressado, dando a volta em um quarteirão cheio de prédios e ressurgindo nos fundos da casa. Ali havia apenas um homem. Era minha chance.
Avancei de mansinho pela rua escura, tentando não ser notado. Esperei pacientemente junto ao muro baixo. Algo fez um barulho numa moita ali perto, ele virou as costas para mim. Em um segundo já havia saltado em sua direção, aplicando-lhe um mata leão de execução perfeita. Mantive sua boca fechada e esperei com aquela mesma paciência até que ele não estivesse mais se debatendo, então até que ficasse completamente calmo. Logo sua respiração se cansou e desapareceu.
Inspirei fundo, peguei o revólver antigo que ele guardava no fundo da calça e arrastei seu corpo até um monte de matos mal organizados já dentro da propriedade. A lua não podia ser vista em lugar algum no céu. Esgueirei até a porta dos fundos e tentei a abrir sem fazer barulho.
Ali ficava a saída de um pequeno armazém gelado feito todo de madeira. Estava escuro. A única coisa que conseguia ver era uma janelinha de vidro na parte superior de outra porta, de onde vinha a luz fosca. Me aproximei e notei que não havia ninguém na cozinha. Imaginei o quão irônico seria encontrar Enrico acordado, procurando um sanduíche na calada da noite.
Abri a porta.
Estava tudo vermelho. Minha cabeça latejava. Meu deus como eram gigantescos os seios daquela mulher.
Eu estava novamente naquele lugar em que nunca havia estado. Um bordel enorme, salpicado de vermelho e amarelo, as cores do fogo, do calor e do pecado. Admito que aquele lugar era impressionante.
— Se quiser posso conversar com ele, poupar o trabalho — falei sem perceber o que estava fazendo. Olhei para o lado e ali estava o senhor que havia encontrado, aquele de feições asiáticas e perigo palpável. Notei então que diante daquele homem eu media cada passo, repensava cada palavra e calculava cada ação. Precisava ser perfeito para conseguir sua confiança, ou tudo iria por água abaixo. Aquele sentimento era vívido, até mais que aqueles seios, se devo ser honesto.
— Não, tudo bem — ele respondeu amigável. Parecia gostar de mim, isso era bom. — Acho que vai ser bom eu conversar com Enrico — minha cabeça latejou de dor. — Afinal, precisamos nos entender. O que aconteceria se toda vez que algum idiota fizesse uma burrice a gente declarasse guerra? De qualquer forma, será bom ter você do meu lado. Nunca vou confiar nesses italianos.
Assenti em silêncio e continuei a segui-lo. Estávamos próximos da porta principal quando ouvi um tilintar. Algo quicando sobre o chão de cerâmica, emitindo o barulho estridente a cada pulo. Virei para trás por instinto e pude ver o que era. Uma forma cilíndrica pintada de verde escuro. Reconheci imediatamente e saltei para trás.
Uma granada.
Onde arrumaram uma granada?
A explosão me deixou surdo, mas de alguma forma, ainda podia ouvir os tiros. O inferno estava pintado de vermelho e amarelo, porém agora havia bem mais vermelho. Um vermelho mais vivo, escorrendo dos mortos.
Ao meu lado estava o senhor asiático, ou o que restava dele. Seu rosto estava quase intacto, mas lhe faltava uma perna e vários pedaços do peito. Ele tentou falar algo, mas falhou miseravelmente enquanto engasgava em sangue. A fumaça estava muito alta, mas podia ouvir alguém falar alguma coisa em italiano.
Tentei me arrastar para a sala de onde havia vindo, procurar abrigo era minha prioridade. Então percebi que havia algo na minha perna. Um pedaço de vidro amarelo do tamanho de minha mão estava preso à parte de trás da minha coxa, pouco abaixo da nádega. A dor subia por minha espinha a cada movimento.
Me permiti olhar para cima. Notei os flashes brilhando naquela nuvem de poeira a cada tiro disparado. Observei enquanto a garota que me beijara mais cedo era jogada no chão. Um dos italianos atirou no seu braço.
Ele começou a tirar as calças enquanto a garota tentava mantê-lo afastado. Ele virou para o lado e percebeu que eu o observava. Rapidamente se vestiu e começou a andar em minha direção, com passos rápidos.
Onde estava minha arma? Não conseguia encontrá-la.
Coloquei minha mão sobre o fragmento de vidro preso em minha perna, tentando puxá-lo. Ele chegou perto demais, nenhum de seus amigos estava próximo. Se preparou para me chutar no rosto, apenas para se divertir. Fui mais rápido que o idiota.
Agarrei seu pé e facilmente tirei seu equilíbrio. Sentindo minha carne ser cortada e meu sangue vazar como se fosse um saco furado, arranquei o fragmento de vidro e o depositei cirurgicamente no pescoço do idiota. Logo ele estava imóvel e sua arma estava em minhas mãos. Se eu queria sair vivo dali, só havia uma forma.
Na sala do chefe asiático havia um cômodo seguro, feito para esse tipo de situação, só precisava conseguir chegar lá. Voltei a me arrastar esperando não chamar atenção. Notei então que a dor na perna havia entorpecido outras. Meu braço estava quase em carne viva, repleto de cortes de aparência aleatória.
Consegui me colocar de pé.
Senti que tive sorte, o ferimento parecia ter sido menos profundo que havia imaginado. Então corri por aquele carnaval de cores vivas, tão rápido quanto alguém com um buraco na perna poderia correr. Com o canto do olho percebi uma silhueta apontando para mim. Prontamente me joguei atrás do bar que costumava ficar no centro. As balas vieram às centenas.
Esperei calmamente, rezando para não ser atingido. As balas acabaram. Surgi detrás do bar e mirei com o máximo de precisão que consegui. Atirei três vezes. Ouvi três sons. Uma bala ricocheteando no metal. Uma bala atravessando um crânio e uma bala atravessando uma perna. Ao menos foi o que imaginei.
Continuei correndo. A porta da sala já não estava mais tão longe de mim, foi quando ouvi os gatilhos sendo pressionados. Uma saraivada de projéteis veio em minha direção enquanto me jogava dentro da sala. Senti uma dor profunda e aguda. Notei que havia sangue saindo de meu braço direito, de um buraco bem feito nele.
Minha respiração estava pesada demais. Eu precisava viver. Não ia deixar tudo ser jogado fora dessa forma. Michel... Beca! Eu precisava voltar!
Inspirei fundo e me apoiei sobre o joelho. Tranquei a porta. Suspirei aliviado. Abri os olhos. Instintivamente desviei de um golpe que veio em minha direção, arranquei o bastão que estava em sua mão e empurrei-o no chão. Apressado, depositei com todo meu carinho e apreço um chute no rosto de Enrico Mercucio. Usei uma cômoda muito pesada para barricar a porta enquanto ele xingava cobrindo o nariz ensanguentado com as mãos.
Esbocei um sorriso com o canto da boca.
— Não nos vemos faz bastante tempo — murmurei. — Achou que tinha se livrado de mim, não achou? Pois saiba que... — Fui interrompido pelo barulho de algo pesado sendo jogado contra a porta de madeira reforçada e olhei sobre o ombro para a mesma, verificando minha segurança.
Ao me virar novamente ele já estava se jogando contra mim, punhos a altura do rosto, pronto para me golpear. Acertou minha bochecha e o cômodo girou enquanto caí no chão enquanto só podia sentir o gosto salgado de meu próprio sangue.
— Quem é você? — Ele perguntou de pé.
A única luz do cômodo vinha de seu abajur azul e sem graça. Ele tinha olhos castanhos que se misturavam à negridão. Cabelos grisalhos bem destacados e um bigode de mesma cor que não devia fazer sucesso há pelo menos vinte anos.
Tentei alcançar o taco de baseball que tinha tirado de suas mãos, mas fui surpreendido por um chute no joelho. Ele deixou o pé sobre meu peito, pressionando cada vez mais forte, até que mal pudesse respirar. Assim que ele se moveu tentei recuperar meu fôlego, apenas para ser surpreendido com um golpe no rosto que pareceu afundar meu crânio.
Debaixo de todo aquele sangue o velho miserável exibia um sorriso irônico. Ele se abaixou e me deu um golpe no buraco de bala que estava em minha perna. Senti a dor subir por todo meu corpo, ramificando-se em meus membros e lembrando-me de sua presença poderosa.
Ele se sentou em meu estômago e começou a golpear meu rosto. Minha visão se tornava cada vez mais vermelho. Após os dois primeiros murros senti meu rosto ficar inchado e torpe. Depois de mais três golpes senti o sangue escorrendo por meu pescoço. Ao sexto ataque, o desespero tocou em meu íntimo.
Tateei ao redor tentando encontrar qualquer coisa que pudesse usar contra ele, mas não havia nada ali. Então como num golpe calculado, lembrei-me e agi. Enfiei a mão no bolso e tirei de lá aquele bisturi. Prontamente cravei a lâmina no estômago de Enrico. Ele rugiu e gemeu. Empurrei mais o aparato e ele se jogou para trás.
Rapidamente fui em sua direção e arranquei o bisturi.  Me joguei sobre ele, apoiando meu joelho sobre seu peito. O velho estava com dificuldades para respirar, arfando pesadamente.
Dei-lhe um soco no rosto, fazendo-o xingar ainda mais. Outro golpe. Ele tossiu sangue, estava completamente imerso em dor. Senti minha adrenalina subir ainda mais, meu cérebro latejava com tanto prazer, ignorando completamente o sangue que escorria por meu rosto, pingando sobre ele. Não parei de esmurrar, sempre mirando na face. Após alguns golpes estava irreconhecível. Após outros estava se afogando no próprio sangue. Logo, quando mal sabia onde atacar diante de tal deformidade, notei algo. A luz iluminou o quarto, logo depois ouvi o disparo.
Logo não via nem ouvia mais nada.
Torci para ele estar morto, se fosse o caso, iria em paz.



Aparentemente Deus tinha outros planos.
Acordei em um quarto de hospital que exalava a ironia e produtos esterilizados. Ao lado da minha cama estava uma moça em seus trinta e cinco anos, de cabelos cacheados loiros e um sorriso gentil, cheio de esperança recém-encontrada. Fitei-a por alguns momentos, tentando recordar. A memória, como as de Michelle, nunca veio.
— Marco? — Ela falou baixo, com a voz trêmula. Parecia temer que sua esperança a deixasse a qualquer momento. — Querido, como está se sentindo?
— Eu... — Suspirei. Aquela devia ser Beca. Não sabia o que dizer, então fiquei sem silêncio. Assenti com um movimento da cabeça, esperando que aquilo significasse alguma coisa. Qualquer coisa.
Ela tentou esconder a tristeza cobrindo os lábios que tremiam e enxugando as lágrimas. Logo começou a soluçar e se levantou depressa, saindo quase que correndo do quarto. Provavelmente era melhor assim.
Esperei quieto até que mais alguém aparecesse.
Ninguém veio e voltei a dormir.
— Marco? — Uma voz masculina chamou, eu a conhecia de algum lugar. Abri os olhos e reconheci o colega que havia se oferecido para me dar carona no dia anterior. Seu olhar estava inquieto.
— Bom dia — respondi sem me mover. — O que você quer?
— Cara... — ele se deixou cair na cadeira, então se voltando para mim novamente. — O que aconteceu? O que você fez?
Continuei mudo e me ajeitei de lado na cama, observando a parede. Notei pela janela que estava nublado, provavelmente ia chover.
— Ele está morto?
Ele assentiu em silêncio. Suspirei aliviado e então nos mantivemos quietos, sem saber o que dizer. Talvez sem vontade de falar mais nada.
— Eu soube o que aconteceu no apartamento... — ele começou. — Então eu fui falar com Michele...
— Você fez o quê?!
— Ela me disse que... — ele engoliu seco. — Que você estava louco. Ela falou que você estava dizendo que era o namorado morto dela.
— É verdade — respondi seco.
— O quê? Do que você está falando? Nós passamos os últimos seis anos trabalhando juntos e você me inventa uma merda dessas?
— Eu não estou inventando nada — murmurei. — É o que aconteceu. Não sei por que aconteceu, nem como, mas aconteceu. Seu amigo está morto e por uma brincadeira sem graça da vida, eu estou aqui.
Ele ficou em silêncio, completamente imóvel.
— Eu sei que não é fácil, também não é para mim.
Pude o ouvir coçando a barba.
— Quando você chegou aqui, ontem — começou. — Os médicos disseram que você teve uma contusão séria na cabeça, que poderia não melhorar... — ele suspirou antes de continuar coçando a barba. — Eles me falaram hoje, que a contusão podia afetar a sua situação...
— Que situação?
— Ah, claro, Tom, não é mesmo? — Falou de forma irônica, rindo tristemente de si mesmo. — Meu amigo Marco sofria de TEPT, transtorno do estresse pós-traumático.
Deixei minha mente vagar por entre os flashbacks que tive durante minha breve jornada por vingança. Me ajeitei na cama e fitei aquele homem, pensativo.
— Você tem isso desde aquele dia com os chineses... — murmurou para si mesmo. — Por favor... Eu quero meu amigo de volta.
— Seu amigo está morto — falei prontamente, agressivo, me virando novamente e ignorando-o completamente. E permaneci daquela forma até ele sair.
A noite chegou rápido enquanto eu pensava no que ele tinha dito. Seria verdade aquilo? Não, não fazia sentido. Eu tinha minhas memórias. Não conseguia reconhecer Beca enquanto Michelle era, claramente, a mulher mais linda que já encontrara.
Tomei uma decisão.
Tornei minha decisão e fugi do hospital, para nunca mais ser visto. Não interessava quem eu era de verdade, naquele ponto, eu só precisava me distanciar daquilo. Observei as ruas vazias e continuei caminhando por elas até que não pudesse mais.
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[box2 class=titlebg title=Olhos Azuis]
Spoiler
Eles me perseguiam onde quer que eu estivesse. Não importava o que eu fizesse, aqueles olhos azuis claros como o oceano não saíam de minha mente. Queria ficar olhando para eles. Observar a beleza infinitamente, sem me importar com mais nada. Eu tinha que esquecer isso. A última vez que algo assim aconteceu o resultado foi terrível. Não podia deixar chegar àquele nível outra vez. Respirei fundo e liguei a televisão. Talvez a distração me ajudasse a dormir e superar aquilo.
Acordei sem lembrar em que momento o cansaço havia vencido. Abri os olhos devagar, torcendo para não vê-la novamente. Ali estava. Sentada sobre a cômoda, exibindo um sorriso belo e cruel logo abaixo daqueles brilhantes olhos azuis. Fitá-los era perigoso; eram tão profundos que poderiam sugar sua alma. Claros como a mais límpida das águas, eles também me fitavam.
Fechei os olhos e eles continuaram lá. Ela continuou lá, me observando. Me levantei bruscamente e fui me arrumar para trabalhar. Ela se mantinha absolutamente imóvel a partir do momento que surgia, a única coisa a se mover era sua pupila; ela me seguia aonde eu fosse. No banheiro e depois na sala. Aquela mulher loira portadora dos olhos mais belos estava em todo lugar, como uma estátua que existia somente para provocar em mim a loucura. Durante todo o caminho para o trabalho ela esteve sentada ao meu lado. Novamente imóvel.
Eu não quero fazer isso de novo!
Lembrava bem onde havia encontrado pela primeira vez o perfeito causador daquela maldição. Estava numa cafeteria. Tinha acabado de sair do trabalho e aquela mulher loira havia me atendido. Os olhos dela eram a coisa mais bonita que já havia visto. Perfeitos. Conseguir eles para mim não seria difícil...
Da última vez eles haviam deixado de me assombrar.
Eu estava mesmo pensando naquilo? Inspirei fundo.
Não, você não pode fazer isso. Não de novo.
O dia no trabalho passou relativamente rápido. Consegui me distrair o suficiente, por mais que ter aqueles olhos me observando me incomodasse bastante. Estava no caminho de casa. O trânsito estava horrível e a mulher continuava me observando. O tempo todo. Não havia um segundo em que ela não estivesse lá. Liguei o rádio. Tocava uma música do Elton John, não sei qual.
— Yours are the sweetest eyes — ele cantou.
Eu ri daquilo. Parecia uma piada de incrível mal gosto do universo. Eu precisava parar aquilo. Não aguentava mais ter aquela mulher me observando incansavelmente. Liguei a seta do carro para a esquerda. Minha casa ficava à direita. Parei o carro de frente para a cafeteria e fiquei observando pelas grandes janelas de vidro a jovem de olhos azuis. Não sabia o nome dela. Virei para o lado e não havia ninguém. Por alguns segundos, eu tive paz.
Saí do carro e entrei no café. Me sentei perto da janela e esperei ser atendido. Quem veio foi uma mulher morena de horrendos olhos castanhos. Pedi um capuccino e fiquei observando aqueles olhos enquanto se moviam atentos à todas as mesas. Ela sorriu. Passei mais uma hora ali, bebericando o café, observando-a e eventualmente olhando para meu celular. Quando voltei para casa estava livre.
Dormir havia sido incrivelmente fácil, mas foi o que veio depois que me fez tomar uma decisão. Eu acordei e eles estavam por todos os lugares. Os mesmos olhos azuis replicados em cada centímetro de meu quarto. Me observavam avidamente. Não piscavam, simplesmente estavam ali, atentos. Eu fechei os olhos com força, mas não adiantou. Todo o quarto desaparecera na escuridão de minhas pálpebras, mas aquelas pupilas azuis ainda estavam lá.
Malditas!
Joguei meu travesseiro na televisão e observei enquanto eles estouravam como bolhas. Era só o que eu precisava fazer. Me levantei da cama e joguei o travesseiro novamente, acertando mais deles. Continuei jogando para todos os lados até que o último maldito globo ocular estourou. Então ali estava ela, no meio do quarto. Me observava como os outros. Então ela se moveu pela primeira vez. Enfiou os dedos nos olhos e os tirou. Não saiu sangue. Ela entregou ambos para mim, sem qualquer feição.
Acordei deitado no chão do quarto. A televisão estava jogada no piso e cacos dela espalhados pelo quarto. As janelas quebradas e meu travesseiro desaparecido — imagino onde tinha ido parar. Me arrumei novamente para o trabalho. Por mais atemorizante que aquilo havia sido, fora só um sonho.
Você vê uma mulher em todo lugar, cara. Não está em posição de considerar algo menos perigoso só por ser um sonho.
Cale a boca.
No caminho eu ainda tive paz; na verdade, minha paz durou até o almoço ao meio dia. Eu estava no restaurante em que sempre ia. Pedi o prato. Virei para a comida e quando levantei a cabeça novamente, lá estava ela. Me observando com a frieza contida apenas pela beleza dos olhos. Senti vontade de chorar. Eu só queria que aquilo acabasse, que ela me deixassem em paz. Respirei fundo e continuei comendo.
Eu tentei. Eu juro que tentei. Foram dois dias de terror. Eu só não tinha medo de abrir os olhos porque mesmo quando eu os fechava, ela continuava lá. Eu sabia o que precisava fazer, não ia ser deixado em paz até fazer isso. Peguei as luvas que havia usado da última vez. Guardei a máscara, a colher de pegar sorvete e o bisturi. Dirigi até a cafeteria e esperei. Passaram-se duas horas, mas não fazia diferença. Ia esperar até ela sair. Ficou muito tarde. Imaginava o que ela estava fazendo — ou se ainda estava lá.
A porta abriu e duas mulheres saíram juntas. Uma delas tinha os mais belos olhos azuis, a outra não. A morena entrou no carro e saiu, a loira caminhou à pé pela calçada. Liguei o carro e segui-a devagar. Ela sabia que algo estava errado. Olhei para o lado, os olhos estavam desaparecidos por enquanto. Eu não queria ferrar completamente a vida dela, mas precisava acabar com isso. Coloquei a máscara e as luvas.
Parei o carro pouco à frente da mulher. Ela parou e começou a voltar. Corri até ela e acertei-a com um golpe na nuca. Ela caiu no chão meio desacordada. Coloquei em seu rosto o pano com clorofórmio que havia conseguido e esperei seus belos olhos revirarem e ela dormir. O processo foi complicado. Abri as pálpebras com os dedos enluvados e puxei o globo ocular com a colher de sorvete. Com o bisturi eu cortei as ligações nervosas e tudo que conectava eles ao rosto. Fiz o mesmo procedimento com o outro olho. Haviam ficado danificados, mas aquilo não importava tanto. Corri para o carro e coloquei-os em uma jarra cheia de água. Parti para casa.
Chegando lá guardei a jarra de vidro na dispensa, ao lado da outra. Ali estavam as duas coisas das quais eu menos me orgulhava em minha vida, mas precisava fazê-las, era a única forma de ter paz. E a paz veio, como da última vez. Ela durou por um breve  mês. Eu voltei para a cafeteria e descobri que ela não trabalhava mais lá. Seu nome era Elise. Sua ex colega de trabalho disse que vivia com os pais agora e que o que aconteceu era inimaginável. As notícias relataram o ocorrido como da última vez. A última vez havia sido três meses atrás, quando os olhos começaram a me seguir.
Haviam sido os olhos de um jovem rapaz que eu conhecera. Ele se chamava Bruno e trabalhava comigo, tinha acabado de chegar na empresa. Dopar ele e tirar os olhos tinha sido muito fácil. Eu me sentia mal pelo rapaz, mas não consegui evitar. Era o único jeito.
Naquele exato momento, eu estava feliz. Já fazia um mês que os olhos de Elise me deixaram em paz. Nunca entendi como aquilo funcionava, mas olhar para aquelas órbitas dentro da jarra me acalmava. José, meu amigo na empresa, comentara vez ou outra que a forma esquisita como eu estava agindo havia desaparecido. Eu havia voltado a sair para beber com os amigos, tentar conseguir garotas, esse tipo de coisa. Faziam exatamente trinta e dois dias quando aconteceu de novo. E eu me odiei muito quando aquilo aconteceu.
Estávamos no bar conversando. José era alto, tinha cabelo preto e barba espessa. Ele tinha olhos castanhos. Beberiquei a cerveja e me voltei para ele novamente. Ele falava da garota com quem havia transado alguns meses atrás.
— E sua namorada nunca descobriu?
— Claro que não, cara. Acha que eu sou burro? — abriu um sorriso largo. — O problema é que a garota me ligou ontem. Quer me ver de novo.
— Isso é ruim? — tomei outro gole.
— Não sei... Acho que se eu tomar cuidado não vai ter perigo nenhum.
— Você está com medo de ela estar grávida?
— Se ela me ligou agora, ou eu sou muito bom nisso, ou ela está grávida.
— Ou ela é louca e está apaixonada por você. Só vai parar quando largar sua namorada e se casar com ela.
— Nem fale uma coisa dessas — o sorriso desapareceu. — Cara, espero que ela não esteja mesmo grávida, ou apaixonada, ou qualquer coisa.
— Então vamos torcer para que você seja mesmo muito bom de cama.
Ele riu e terminou de beber a cerveja.
— Ei, mais uma cerveja.
O barman veio e trouxe uma garrafa de vidro com cerveja. Ele usava uma camisa social branca e um colete preto por cima. Ele tinha o cavanhaque com pouca barba, como se tivesse esquecido de fazer. Ele tinha olhos azuis. Não eram como os de Elise, estes eram escuros e enquanto nos dela você imaginava poder ver a alma dela, estes pareciam observar a sua.
— Quer mais cerveja? — ele me perguntou.
Não respondi. Fiquei observando aqueles olhos azuis fascinantes sem conseguir desviar o olhar. José me socou de leve no braço e conseguiu chamar minha atenção. Me virei para ele no susto.
— Ah, sim. Desculpe. Enche o copo, por favor — tentei parecer menos estranho. O barman preencheu a bebida com um sorriso no rosto, não era um sorriso para mim. Ele provavelmente tinha achado a cena engraçada ou algo assim. Terminei de beber a cerveja e rezei silenciosamente para todos os deuses que aquilo não acontecesse de novo. José riu quando o barman saiu.
— Então você... — ele comentou com a sobrancelha erguida.
— Eu... Ah, não. Não, cara. Você me conhece faz quanto tempo?
— Bastante, mas... Você é meio estranho. E... Quando alguém encara alguém do jeito que você ficou olhando para ele, ou você quer transar com a pessoa, ou você quer matar ela.
— Não foi tão tenso assim.
— Foi, cara. Até ele começou a rir. Você parecia que ia arrancar as roupas dele aqui mesmo — riu alto.
— Não foi nada — virei o rosto aborrecido. — Não vamos falar disso.
— Cara, eu não me importo. Sério, se quiser falar algo, é só dizer. Isso também explicaria porque eu nunca te vejo com uma garota.
— Semana retrasada no bar.
— Eu estava bêbado, eu não lembro de nada.
— Que conveniente — revirei os olhos. Pretendia desmentir aquilo, mas não havia nenhuma razão melhor que gostar daquele cara para ter feito aquilo. Suspirei.
— Você quem sabe — ele comentou e deu de ombros.
— Não é como você está pensando — comentei entre os goles que bebia. — Eu gosto dos dois, não só de caras. Mas só saio com mulheres... Evita problemas.
— Hm... Faz sentido — ficou sorridente de novo. — Não sabia dessa. Se você fosse menos quieto talvez eu soubesse.
— É... — concordei.
Depois daquilo conversamos por mais um pouco. Evitei olhar nos olhos daquele homem, com medo do que poderia acontecer. Se soubesse que já era tarde, não teria me importado. Eu cheguei em casa tenso, torcendo para que não acontecesse de novo. Me deitei e apaguei a luz. Liguei a televisão que havia comprado e assisti um pouco antes de dormir. Ouvi um som e acordei preguiçosamente.
Lá estava ele. A cara levemente enrugada daquele barman. Ele estava sentado na cômoda, curvado com os cotovelos apoiados nos joelhos. Em seu rosto aquele mesmo sorriso de quando notara que eu o observava. Fechei os olhos e a cômoda sumiu, mas ele estava lá. Seus olhos azuis eram de uma força quase acusadora. Observando minha alma sem piedade. Suspirei.
POR QUÊ?! Eu paguei o maldito preço! Por que não me deixa em paz?
Me levantei rápido, sentindo minhas veias arderem com meu sangue que fervia. Atravessei a porta e cheguei à dispensa. Acendi a luz e encarei aqueles dois pares de olhos, analisando-os. Virei para a direita e o barman estava lá, de pé, me olhando. Notei que os olhos de Elise estavam levemente mais danificados que os de Bruno. Era, isso, tinha que ser isso.
Mas como eu tiraria os olhos sem danificar eles? Eu não era nenhum perito, seria impossível fazer aquilo.
Tirando a cabeça inteira.
Aquele pensamento me assombrou, mas estava certo. Se eu tirasse a cabeça inteira eu provavelmente teria muito mais tempo de liberdade. Só precisava fazer isso uma vez e quem sabe por quanto eu não poderia viver em paz? Inspirei fundo e tomei coragem para fazer o que eu ia fazer. Dessa vez eu não queria ter que aguentar aquilo. O constante terror de ser observado em todos os momentos me fazia perder lentamente a sanidade. Primeiro sonhos, depois as alucinações pioravam. Foi como tudo aconteceu da primeira vez. Foi o que me levou ao ponto que nunca queria voltar. Foi o que me obrigou a ferir Bruno pela minha própria vida.
No dia seguinte eu fui para bar novamente, munido dessa vez de clorofórmio e uma faca que devia dar para cortar sua cabeça. A máscara e as luvas ficaram no carro. Eu queria beber antes de fazer aquilo. Fui atendido por ele. O barman sorriu ao me ver, dessa vez amigável.
— Cerveja?
— É...
Ele encheu o copo.
— Costuma ficar cheio nas quartas?
— Não...
— O que você faz depois do trabalho? — perguntei querendo informação e sem notar o quão estúpido aquilo havia sido.
— Cara, eu não... Er...
— Ah, claro. Desculpe — tímido, virei a cara para a bebida. Fiquei ali quieto bebendo por meia hora.
Bebi até sentir minha sanidade esvair. Paguei a conta e voltei para o carro, sentindo o efeito do álcool. Sentei no banco, olhei para todo o equipamento que havia deixado no banco de passageiro e inspirei fundo. Esperei por algumas horas. Ele se despediu de um colega, este saiu pela porta da frente e foi embora, o barman trancou o lugar por dentro.
A porta dos fundos.
Dei a volta andando e carregando tudo que ia precisar. Ele havia acabado de sair do lugar e estava caminhando na direção oposta à minha. Com muito esforço, consegui me aproximar sem ele ouvir. Tapei seu rosto com o pano banhado em clorofórmio e ele desmaiou. Olhei atento ao redor e ao notar que não havia mais ninguém, comecei a cortar. A faca atravessou fácil a pele, o problema foram os ossos. Com alguns golpes rápidos consegui partir o que faltava e finalmente tirei sua cabeça. Minha roupa estava toda suja de sangue — aquele trecho da calçada inteiro estava —, mas tinha dado tudo certo. Coloquei a cabeça em uma sacola e voltei para casa.
Havia uma caixa de isopor cheia de água esperando por ela. Não tinha pensado direito nos efeitos de deixar a cabeça submersa, ou ainda em como guardaria ela. Os olhos sumiram, isso é tudo que importa. Ele não estava mais lá me observando, estava naquela caixa enquanto parte dele estava jogada em uma rua. Não me orgulhava daquilo, mas era o que eu tinha. Era a única coisa da qual eu tinha certeza. Tirando os olhos, eles me deixavam em paz.
Depois daquilo minha vida ficou normal por dois dias. O que aconteceu foi diferente do esperado. Eu não fiquei fascinado com os olhos de ninguém. Acho que estava livre daquela maldição por um bom tempo, eu tinha feito tudo certo dessa vez. Ou achei que tinha feito. Eu estava em casa quando a campainha tocou. Dois policiais entraram e mandaram eu colocar as mãos para alto.
O susto foi grande, mas me contive. Levantei as mãos e inspirei fundo. Um deles veio por trás e prendeu minhas mãos em uma algema. O outro começou a andar pelos cômodos da casa, procurando por alguma coisa.
— Você está preso pela morte de Matheus Oliveira, tudo que disser pode e será usado contra você — o policial falou como se tivesse nojo de mim.
— Matheus?
— Você nem sabe o nome dele? — quase pude sentir a força que fez para conter o soco que queria me dar. — O barman decapitado.
O choque foi forte. Meus olhos bem abertos observaram ao redor. Estava tudo acabado. Talvez agora eu fosse ter paz. Preso, eu não veria os olhos de ninguém. Eles teriam que me deixar em paz. Inspirei fundo e soltei o ar lentamente. Sabia que encontrariam hora ou outra.
— Na dispensa — falei calmamente.
O outro policial entrou lá. Ouvi o barulho da caixa de isopor e ele saiu correndo de lá tapando a boca com a mão. Não entendi aquela reação, eram só uma cabeça e dois pares de olhos.
— A cabeça... — ele falou tentando se recompor, apoiando com as mãos em meu sofá azul. — E dois pares de olhos. Era ele também. Vou mandar a perícia vir aqui... Não quero mexer nisso.
— Tudo bem, vamos levá-lo.
Ele assentiu e veio até mim. Parou à minha frente. Me encarou com asco e acertou um soco em meu estômago. Me contorci para frente e tentei superar a forte dor que se espalhava por todo meu dorso.
Você merece isso.
Eles me guiaram até a viatura. Todo o processo correra bem rápido. Não havia forma de provar minha inocência — e se houvesse, eu não estava tão interessado em tal. Em pouco tempo recebi minha sentença. Cinquenta anos que seriam reduzidos aos máximos trinta anos de cadeia aqui. Finalmente me transferiram para o presídio estadual, onde eu passaria mais trinta anos de minha vida.
O guarda que me guiou até minha cela usava óculos escuros e a farda comum. Era alto e tinha pele clara. Barba mal feita proposital e um sorriso sarcástico no rosto. Ele praticamente me jogou para dentro da cela e fechou-a. Ficou parado ali me examinando enquanto um sorriso pretensioso se formava em seu rosto. Tirou os óculos. Por trás das lentes escuras, estavam profundos olhos azuis.
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[box2 class=titlebg title=Seja Deus]
Spoiler
Acordei assustado com alguma coisa, apesar de não conseguir sequer imaginar o que causara aquela reação. Olhei ao redor e meu quarto estava intacto, as cortinas balançando ao vento, a mesa no lugar, o computador ligado — baixando músicas ilegalmente — meu ventilador soprando de um lado para o outro em movimentos lentos, a garota de feição asiática me olhando...
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To Die Is To Find Out If Humanity Ever Conquers Death

26/02/2017 às 20:56 #1 Última edição: 26/02/2017 às 20:58 por Joseph Poe
Muito legal ver um trabalho desses! Como estou sem (boa) conexão aqui, prometo que baixo amanhã e vou comentando conforme leio. Já adiantando Seja Deus, porque microcontos colaboram até para isso:

Parece fácil, mas é um inferno conseguir escrever essas coisinhas. Gostei muito do seu, porque segue exatamente a proposta deste estilo. Você sugere o meio, início e fim são por conta do leitor.

Spoiler
Se me permite dar um palpite, eu removeria algumas palavras:

"Acordei assustado com alguma coisa" : Essas últimas sugerem um terceiro elemento, enquanto o narrador ainda avalia o cenário. Perceba que se você removê-las, o ritmo não perde nada.

" - baixando músicas ilegalmente - " : Este trecho é excelente para identificação do leitor. Quase todas as pessoas (com acesso à um computador e internet em casa) já o deixaram baixando alguma coisa. Se você cortar essa parte, fica implícito o porquê de o computador estar ligado, o que não altera o ritmo e aumenta a variedade de interpretações.

Mas isso é bem pessoal. Eu tenho mania de cortar tudo quando me pedem uma avaliação. Em minha defesa, eu levo em conta a dor nas mãos na hora do registro. Rubrique 1800 páginas e vai entender do que estou falando.

Spoiler
Obs: Já vi essa capa em algum lugar. Andou divulgando pelo Facebook? :será:
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Salve Poe. Sim, eu tenho feito bastante divulgação desse livro no facebook, até um pouco demais, na verdade.
E valeu pelas dicas, vou dar uma olhada nisso aqui e cuidar pra prestar atenção nesses detalhes quando for revisar algo. c:
E obrigado pelos comentários acerca do Seja Deus, já sobre baixar o livro, fico no aguardo de seus comentários sobre a obra.
To Die Is To Find Out If Humanity Ever Conquers Death

Simplesmente magnífico. Queria eu ter ideias e disposição suficientes para poder engajar em uma jornada de pequenos contos (escrever uns dois já me leva muito tempo e, em muitos casos, eu desisto no meio do caminho).

Eu gostaria da versão impressa (nada melhor do que ter o livro em mãos), mas importar da Amazon gringa vai sair um pouco caro, e orçamento atual não está para isso. hahahah

De qualquer forma, meus parabéns. Mas, sinceramente, eu não esperava menos de você. <3

Muito obrigado, Misty. c:
A propósito, não deu pra colocar todos os contos no tópico.
Eu até tinha colocado, mas a crm comeu parte dos contos e eles não aparecem na versão final do tópico. xD
To Die Is To Find Out If Humanity Ever Conquers Death

02/03/2017 às 19:46 #5 Última edição: 02/03/2017 às 20:03 por Joseph Poe
Eu de novo, para falar sobre Olhos Azuis.

Spoiler
Começa muito bem. O estilo é claro e dá para ter uma noção geral da história logo no terceiro parágrafo. Notei poucas palavras sobrando, e uma única faltando (não sei se foi intencional, mas seria "tempo", na página 49), que ajudariam no ritmo das frases.

Este, alias, também segue muito bem, dando espaço para a construção do personagem.
Gostei especialmente do diálogo na página 43, que não só resumiu umas boas horas, como descreveu o estado do narrador, o efeito desse estado sobres as pessoas em redor dele, como elas reagiram e como ele reagiu em resposta.

O fim, apesar de previsível, não deixa de ser bom. Antes um fim modesto e bem estruturado que uma narração megalítica e caótica. No geral, está muito bom. Casual, efetivo e bem escrito. Minha lista de paranoias agora inclui: use óculos o tempo todo.
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Citação de: Joseph Poe online 02/03/2017 às 19:46
Eu de novo, para falar sobre Olhos Azuis.

Spoiler
Começa muito bem. O estilo é claro e dá para ter uma noção geral da história logo no terceiro parágrafo. Notei poucas palavras sobrando, e uma única faltando (não sei se foi intencional, mas seria "tempo", na página 49), que ajudariam no ritmo das frases.

Este, alias, também segue muito bem, dando espaço para a construção do personagem.
Gostei especialmente do diálogo na página 43, que não só resumiu umas boas horas, como descreveu o estado do narrador, o efeito desse estado sobres as pessoas em redor dele, como elas reagiram e como ele reagiu em resposta.

O fim, apesar de previsível, não deixa de ser bom. Antes um fim modesto e bem estruturado que uma narração megalítica e caótica. No geral, está muito bom. Casual, efetivo e bem escrito. Minha lista de paranoias agora inclui: use óculos o tempo todo.
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Não tinha percebido o lance da palavra tempo, vou ver o que faço aqui (o lance de já ter publicado complica alterar,
apesar de seus comentário serem muito relevantes e me fazerem querer passar outra revisão na obra). :v

Sobre o diálogo, fui até reler aqui. Ficou legalzinho mesmo, preciso voltar a escrever assim.
E o final... Ficou previsível assim?  :T.T:
E boa sorte usando óculos o tempo todo, depois me diga como foi a experiência :V
To Die Is To Find Out If Humanity Ever Conquers Death

Tipo, sobre o final não tem muito remédio. Quase todos os contos (que li) nesse estilo são previsíveis. Exemplo da estrutura da narrativa:

Este Spoiler contém Spoilers sobre a história. Se não leu, não leia.
O personagem em questão, muitas vezes o narrador, tem problemas que o fazem cometer algo. Não seria a primeira nem a última vez. Consequentemente, ele irá se ferrar hora ou outra. No final, sempre existe aquele último gancho. Às vezes, para mostrar que o narrador ainda tem problemas. Outras, para deixar uma clássica "próxima vítima" na linha de frente.
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Volto assim que ler mais um o/