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Radnaxelas: A Mata Que Sussurrava

Iniciado por FilipeJF, 04/03/2017 às 20:03

04/03/2017 às 20:03 Última edição: 04/03/2017 às 20:43 por FilipeJF
Eu quero escrever a historia de um personagem atraves de varios contos. Aqui está um que ando escrevendo!




É a terra dos troncos que escalam o vento,
Das folhas que flutuam sobre o mundo,
Das sombras que engolem a cor da escuridão
E das estrelas que brilham por todo o sempre
Na idade daquela altiva terra.

É o Leste muito belo,
Das florestas sem reis,
Indomesticáveis,
Sementes das profundezas incultas de raízes fortes.

É o Leste do povo das lendas,
Do povo que existe apenas nas memórias dos ancestrais,
Do povo que assovia entre os galhos e as folhas
E canta músicas com a melodia do tumulto de seus braços.

O povo que conhece artes magníficas!
E sorri pelo vento, cortando as nuvens, cortando a chuva.
Acompanha o mundo baixo
No reino esvoaçante entre os seus braços abertos.

É o Leste muito belo,
Das florestas sem reis,
Das sombras que engolem a cor da escuridão,
Das estrelas que brilham por todo o sempre
Na idade da terra.

É o Leste dos pássaros,
Dos donos da arte do vento!
É Kaatui Das Muitas Árvores, do povo que voa
E vigia sob asas de penas inquietas.

Ele não falava a nossa língua. Mas conhecia muito bem a língua do aço e do sangue. Embora suas asas estivessem extintas, ele movia-se com a graça dos pássaros, sua suavidade e leveza pareciam transformá-lo em lenda. Era fantástico, não assustador. O espichar do sangue pelas suas mãos não era violência bruta, mas arte.

A Mata Que Sussurrava

I

Spoiler
Há muito tempo,
Quando com palavras cantavam os pássaros,
Antes que o infortúnio irrompesse sobre a face do mundo...

...Aquele misterioso ser envolveu-se em uma intriga na ponte que levava às paisagens róseas e tranquilas do sul de Tkalon, o ciclópico Corpo do Mundo. Sob as eventuais lágrimas que se derramavam das nublosas habitantes do céu sua ferramenta cantou, ao brotar sinistra de dentro de sua capa. Ela pintou o chão e seu próprio corpo, remodelando minimamente a situação do mundo quando seus passes serenos rodopiaram ao relento e despedaçaram os braços e pernas dos inquilinos abusados das estradas. Não houve cerimônia ou hesitação, apenas gritos de horror e arrependimentos terminais de meia dúzia de almas em desespero.
"Eu não sabia da sua alcunha, Radnaxelas", disse uma dessas almas, cansada. "Mas não me arrependo de tê-lo atacado. Vivi assim toda minha vida. Matei muitos viajantes, pobres coitados, que descansem em paz. Mas é chegada minha hora. Morrerei desta maneira. Nada mais justo."
Essas foram as palavras finais do último salteador, ajoelhado no chão, aleijado do antebraço esquerdo. O matador não retribuiu com palavras. Seus olhos eram da cor do pôr-do-sol, não mais escuros do que eram claros, e eles pareceram clementes quando a meia-lua cerrou o ar e raspou a garganta escamosa do graed'r. Partiu-se até a metade, e houve um último grunhido de dor antes que o movimento decepador se repetisse, finalizando, ríspido, uma sexta vida naquele dia. O sangue amarelado espirrou durante um breve momento e cursou sua descida através das escamas, escorrendo borbulhante até os ombros. A cabeça desceu rolando o barranco e afundou no Rio Torto, e então corpo o tombou, em um estalo de correntes de aço empurrando o barro molhado.
Radnaxelas girou o alfanje dentado aos seus pés, cuspindo o calor fulvo na grama banhada, e depois o escondeu debaixo de sua escarcela encouraçada, escurecendo o mundo das saliências pontudas ao amarrar o cordão da capa. Sob o manto, sua mão encontrou-se com a ombreira. Os dedos finos sentiram, como fazem os cegos, as rachaduras que um dos ataques desferidos provocou. Um pouco mais abaixo e suas penas castanhas do braço teriam sido arrancadas pela fúria do aço. Na sua perseguição pelo grupo dos bandidos, acabou tornando-se o alvo, quando eles se esconderam na mata circundante da ponte que alçava Vastomar, a terra de sua morada, com o País das Rosas Altas, no Sul. Mas, os dentes famintos de seu alfanje não eram oponentes quaisquer. Uma vez que são expostos, devem revelar seu espetáculo, que inclui brutalmente a totalidade da plateia; assim, de conseguinte, nessa chuvosa tarde, quando seus passes começaram e a dança se esgueirou no meio dos bandidos, não houve quem visse aquilo e não restasse em pleno silêncio mórbido.
Ao seu redor, estirados pelo chão, estavam seis semi-corpos escamados, todos desmembrados. Enquanto o cheiro do sangue cobria o ar, sua presença vermelha envolvia a estrada e algumas partes do raso matagal florido das extremidades horizontais. A chuva respingava fraca, e os relâmpagos, distantes, piscavam nublados nas nuvens negras do belo Sul. Radnaxelas deu um passo em direção à ponte, e despencou no chão, caindo sobre o corpo do último arruaceiro. O barro lambeu sua capa e a manchou terrivelmente. Suas mãos, trêmulas, limpavam a sujeira úmida de sua roupa, mas em vão. Estava estagnada. Somente uma lavagem séria deixaria limpa a capa de viagem. Sentado sobre o barro, sentiu o corpo inteiro ser envolvido por um frio perturbador. Ele agarrou os braços com força, as costas grudadas com o graed'r morto. Estranhamente, a morte abalava seus sentimentos; no passado, guerreara em muitas guerras, mas agora se sentia mal com o cheiro de sangue. Agarrou a barriga, o estômago se revirando, e vomitou sobre sua capa. Em tempo de deitar e dormir sobre sua nojeira, ouviu um grito na distância.
"Pássaro! Pássaro, onde você está?", chamava a voz. A neblina fosca da chuva proibia uma descrição apropriada, mas, do norte, através da ponte, aproximava-se um grupo de pessoas armadas. Em pouco tempo, Radnaxelas soube identificar a voz. Seus sentimentos disturbados se reestruturavam do pavor da morte, e ele se levantou e abandonou sua capa.
Seus quatro dedos do pé firmaram-se no chão, o menor se enterrando no barro. Um grupo de quatro criaturas, quase todas encapuzadas, cruzou a ponte e se deparou com o Pássaro.
"Pela força de Romda, o que é que aconteceu?", perguntou o responsável pelos gritos incessantes. Era um graed'r de sangue amarelo e cauda longa, parente dos mortos.
"Caí numa emboscada. Ajeen ia à frente, pela mata. Mas não aguardei seu retorno e fui pego de surpresa."
Um dos quatro, caminhando pela carnificina, deu uma risada. Era uma fêmea.
"Você é impressionante! Há quanto tempo não participava de uma caçada? Treze, doze anos?", perguntou, sem curiosidade verdadeira. Agachada, cutucava um antebraço solitário ao pé de um arbusto lenhoso de bouvardias pálidas. "Aqueles dentes devem ter amado o sabor desses bandidos, após um pesado desejum."
"Faça silêncio, Naam", disse o graed'r. "Pela força de Romda, tenha um pouco de noção antes de abrir essa boca pra falar merda."
"Não precisa disso, Palo. Não tem problema. Ela tem certa razão. Foi bom esticar os braços depois de uma pausa tão prolongada."
Ela riu novamente. "Pela força de Romda. Cale essa boca, Palo. Sabia que estou odiando sua personalidade renovada? Preferia quando não se importava com qualquer comentário. Agora, você é só um escravo da lei. Que fim horrível!"
"Tola! Quero apenas evitar problemas para nossa gente. Se eu estivesse no lugar do Pássaro, tendo passado por tudo que ele passou, não permitiria comentários abestalhados como os seus. Podemos substituir o aterro de bosta por sua boca."
Ela se levantou, com o antebraço decepado em mãos, e o atirou na direção de Palo. Ele desviou a tempo, mas Radnaxelas, dono de um turbulento passado, recebeu o ataque em cheio, e com um passo para trás, tropeçou em um corpo e levou um tombo. Mais sangue foi espirrado naquele dia, em seu rosto e peitoral, que se encheram do nenhum pouco convidativo aspecto flavescente.
"Pela força de Romda!", rugiu Palo com sua áspera voz. Naam colocou as mãos sobre a cabeça, culpando-se em segredo. Saindo de seu assento no parapeito da ponte, um dos elementos silenciosos caminhou provocando graves rangidos até os rufiões. Empurrou Palo para o lado, na direção de Naam.
"Vá juntar-se com a outra criança, layhpar", disse ele. Ofereceu a mão para o Pássaro, que aceitou a ajuda. Novamente, suas mãos tremiam emaranhadas a um horrendo enjoo. "Excelente trabalho, Pássaro. É um prazer enorme estar ao seu lado numa caçada."
Radnaxelas foi erguido para cima e sentiu que seu braço poderia ter sido arrancado, fosse esse o intento de seu camarada, Euvayr. "Eu o agradeço, companheiro", disse, ajeitando a bainha do alfanje.
A autoridade de Euvayr era clara, e sua voz, ressonante e misteriosa. Parecia vir das profundezas escurecidas de um mar esquecido e carregava uma aura sinistra de titânica sabedoria. Não era emitida de sua boca, pois não havia uma em seu rosto; o seu povo, chamado de optra'wa, surgira por último e de uma peculiar maneira entre os outros ronjiin do mundo. Apesar da semelhança com os outros seres, os optra'wa soavam mais robustos e mais poderosos. A imagem soberana de Euvayr, o Camundongo Que Invadiu Tulu'k, representava com facilidade a estimada colocação: vastos, musculosos trapézios, de onde pendiam gelatinosos opérculos protetores de suas cavidades vocais, escalavam as redondezas do pequeno pescoço, e no rosto, onde deveria existir uma boca, um labiríntico amontoado de tentáculos curtos por onde ele sugava os nutrientes fazia sua ponta. Acima, nas extremidades limiares do rosto, projetavam-se duas saliências obscuras de um preto penetrante, que se moviam em pequenas, quase indetectáveis ondulações, e alguns centímetros mais abaixo, outros dois glóbulos escuros, menores, escapuliam da pele pálida e glandulosa, dotados da tarefa de enxergar.
          No chuvisco despreocupado que caía, a quarta figura, descoberta, era como uma fundação natural do próprio solo. Tinha traços animalescos, entrecortados por unanimidades vegetais como folhas e pedicelos espinhosos que, de vez em quando, sustentavam flores coloridas. Suas pernas eram como troncos velhos, madeiras lapidadas como músculos poderosos, os pés eram raízes livres que passeavam por onde quisessem. Mas a beldade mais fascinante era seu rosto, uma máscara de madeira, um escudo resistente. Nos círculos desprotegidos, os olhos sagazes de uma fera se atentavam aos arredores como um lobo caçador. O esplendor de uma árvore, a astúcia de um predador; esses eram os tkactha, as fundações mistas da natureza. Nasciam da terra, feito uma árvore, ou do leito das correntes entre os vales. Eram criaturas vagarosas, mas mortíferas. Viviam por séculos como suas irmãs, as árvores, e podiam passar muito tempo sem comer.
Euvayr era um amigo íntimo do tkactha. Juntos, fugiram das batalhas que corrompem os campos e os morros em Tulu'k, no Oeste, e encontraram uma morada na aldeia de Radnaxelas, Palo e Naam, os protetores originais dos camponeses indefesos. Pois Euvayr era um criminoso de alto grau, e manter-se noutras áreas era correr enorme perigo. Em seus tempos passados, trabalhou como um espião para Marma'k e seus aliados do sudoeste, onde resistiram orgulhosos aos ataques do Império. Euvayr invadiu Tulu'k como um espião, assassinou generais e líderes insubstituíveis, tornando-se um grande inimigo daquele povo. Fez muitas e outras missões, mas a hora de Marma'k, o mais antigo reino dos graed'r, chegou. O reino tombou sob o poder de Tulu'k, cujo único limite é a morte de seus opositores. Euvayr fugiu, então, com seu camarada, Ktudon, para o Leste, onde as marés da guerra outrora já se derramaram, mas recuaram diante de algum poder secreto.
Eram, agora, a força militar da aldeia que se tornara para eles uma nova casa. Caçavam bandidos e monstros que espreitavam ocultando intenções maléficas nas matas circundantes, sempre a espera da hora certa de atacar. O membro mais antigo da vila era Radnaxelas, que há vinte anos encontrara boas pessoas que o salvaram da maré na última praia oriental de Vastomar. Por sete anos, lutou com tudo para proteger a vila. Mas, dado momento, um terrível acontecimento enlaçou suas batalhas como um domador de feras selvagens.

     A noite aproximava-se. Nuvens escuras trilhavam seus caminhos para o Oeste, e um céu limpo e um clima fresco se acomodava no Leste. Cursando a rota pela estrada que subia para o nordeste, os quatro caçadores e o tatu de Radnaxelas, Ajeen, eram bons e velhos amigos animados sob um pôr do sol tristonho.
"Eu não me incomodaria de caçar um Rankurxin para hoje", disse Palo.
"Eu também não", disse Euvayr, indo na frente, com alguns suprimentos empacotados nas costas. "Mas eles se escondem na noite, em tocas profundas. Podemos caçá-los, mas estaríamos desperdiçando muito tempo. É melhor pescarmos alguma coisa no Rio Torto."
"Vamos entrar aqui, então", disse Radnaxelas, apontando para a direita. "Escuta-se a corrente descendo. Há uma clareira bem próxima dele aqui que eu costumava usar antigamente. Faz muito tempo que não desço até a fronteira com o Sul, mas eu conheço muito bem esta área."
"Então nos guie, por favor", disse Palo.
"Vá na frente, Ajeen."
Radnaxelas entrou no meio dos arbustos espessos, ainda úmidos pelo chuvisco da tarde. Flores espinhentas cobriam o chão, mas seus companheiros eram tão espertos quanto ele e superá-las não significou esforço algum. Passaram entre os troncos altos de árvores velhas e a mata densa, gradativamente, diminuiu até tornar-se rala. As águas espumosas que corriam sem olhar para trás gritavam mais alto, o pio das corujas e o uivo distante dos lobos das montanhas se deitavam na língua do vento.
Alcançaram uma clareira humilde, não muito vasta. Euvayr e Ktudon apressaram-se até o rio, e Radnaxelas e os dois inimigos postaram-se sob as copas das árvores para livrar o chão das folhas e abrir espaço para o fogo. Armaram a fogueira em pouco tempo, e Euvayr, experiente pescador e uma criatura que saiu do mar, retornou com Ktudon com uma respeitável traíra. O manto da noite cobria aquele lado do mundo como um abano brilhante de pequenas fogueiras; sob ele, os amigos reuniram-se, e Naam apanhou sua nyckelharpa. Uma melodia melancólica, mas cheia de esperança, pesou com grande beleza nos ouvidos dos companheiros, enquanto cozinhavam os peixes e a carne-seca que trouxeram na bagagem de Ajeen.
"Vocês sabiam que, há muito tempo, os trovadores eram como magos poderosos?", perguntou Palo, irrompendo sobre a música de Naam.
"Silêncio, seu idiota. Deixe a música continuar", disse Euvayr.
"Estou falando verdade. Quando eu era um menino vagabundo em Marma'k eu costumava ler algumas coisas da biblioteca da minha cidade. Os magos podiam controlar muitos elementos da natureza, assim como o Ktudon, mas eles compreendiam algum Poder enorme que compõe a vida e tudo o mais, chamado nas lendas de Mana."
"Eu ouvi disso também", disse Radnaxelas.
"No Leste?", perguntou Palo, curioso. E ele não era o único. Radnaxelas pouco falava de sua época no Leste, e sempre que esse assunto vinha à tona o interesse de todos era desperto.
"Sim, lá mesmo. Eu fazia parte de uma tribo muito voltada aos estudos místicos. Eu, por outro lado, nunca fui chegado a isso, e acabei me desviando para outro povo. Mas eu me lembro de algumas coisas, e acho surpreendente que as histórias de um passado muito velho sejam tão semelhantes aqui e no Leste que se oculta do mundo."
"Então, como eles falavam dos magos trovadores?"
Ajeen estava deitado por trás de Radnaxelas, dormindo. Era um enorme tatu, uma montaria rara e respeitável. Radnaxelas acariciava-lhe a calda, enquanto seus pensamentos velhos eram acordados de um sono profundo. Memórias e memórias...
"Eles eram conhecedores dos traços da Mana, que passa por todos os mundos existentes como uma corrente que os liga. É um Poder místico que foi gerado quando a Mãe das Vidas botou o ovo do qual nasceu o Universo. Ele é o filho dela, e nós, os filhos dele. Assim, somos todos de uma mesma família, nós e o próprio Universo. Às vezes, a Mana nos ajudava, mesmo quando fossemos apenas tocar músicas. Os trovadores enfeitiçavam as cordas de seus instrumentos com suas propriedades ininteligíveis e quando eles tocavam, ela espalhava-se pelo vento, se entrelaçando nas pessoas. Isso dava força a elas e as protegia dos perigos. Ou as matava."
"Nunca pensei que fosse ouvir tanto sobre o Leste falando com você", disse Euvayr. Ktudon concordou.
"Acha que consegue fazer isso, Naam? Aposto que os namtulim conseguiam", disse Palo, provocador. Naam estava imersa demais para incomodar-se.
"Eu prefiro tocar minha música sem ter uma magia que pode matar os outros me incomodando. Eu faço isso para relaxar, seu idiota. É melhor assim."
"Você é chato demais, Palo", disse Euvayr.
Palo riu, erguendo-se para ver dentro da panela sobre o fogo crepitante. "Obrigado. Mas se não tivesse eu aqui, tudo seria monótono demais. Ktudon não fala nada. E isso aqui já parece estar bom."
"Mas não está", disse Ktudon.
"Você nem está vendo."
Ktudon nada falou. Levantou-se devagar, como que brotando do chão, e se escondeu no escuro.
"Eu também não vou olhar. Kate é como um mago trovador, mas sem um instrumento. Já era hora de saber disso, seu tolo. Avise-nos quando estiver bom, Kate", disse Euvayr, deitando-se de costas sobre seu saco de dormir.
"Eu já devia ter dado o fora daqui há muito tempo. Vocês me odeiam tanto!"
"Mas eu te amo tanto!", exclamou Naam, melódica. "Ah, graed'r, eu te amo tanto e gostaria de te agarrar."
Era uma rima fraca, mentirosa e debochada. Palo sorriu com uma bela falsidade e ficou calado. Radnaxelas deitou-se sobre Ajeen, as costas relaxadas sentindo a respiração de seu amigo. Todos ficaram em silêncio. Na beira do rio que acompanhava as notas da nyckelharpa com um cantar calmo e espumante, Kate sustentava-se como uma verdadeira árvore na penumbra. As flores às suas costas estavam inquietas ao vento do norte, e ele era como uma estátua decorada pelas brisas do Tempo.
O uivo dos lobos, o pio das corujas e o som das notas melancólicas sob as fogueiras do breu eram a beleza daquela noite. O uivo dos lobos!
"Está bom", disse Kate com sua voz dura.
Euvayr ergueu-se para tirar as panelas do fogo.
"Há algo de sinistro acontecendo hoje. Escutem os lobos", disse Radnaxelas. Palo virou-se para o leste, na direção dos uivos.
"É uma noite feliz para eles! Cantam alto em um ritmo adorável."
"Não, idiota!", disse Naam, parando de tocar sua música. "Não é uma noite feliz para eles. Eles estão muito mais perto do que costumam estar, e uivam sem parar, de maneira estranha, faz muito tempo. Eu também acho que haja algo de sinistro acontecendo hoje."
"Sabe o que isso está me parecendo, Naam?", perguntou Radnaxelas, levantando-se com cuidado para não despertar Ajeen. Naam assentiu.
"Sussurros na floresta! Sussurros de lobos..."
"Sussurros!", exclamou Euvayr. "Isso é verdade. Não é como se os lobos estivessem uivando realmente. É quase como se eu os ouvisse ao meu redor, no fundo dos meus ouvidos. É uma sensação estranha. Alguns uivam ao leste, mas também aqui, ou no meio das árvores, alcançando o fundo dos meus glóbulos. O que é isso?"
"Eu me lembro de algumas lendas sobre isso", disse Palo. Naam revirou os olhos.
"Lendas que também leu no seu tempo de vagabundagem? Chega, Palo."
"Não! Lendas que eu escutei da Celia na aldeia."
"A filha do lenhador?", perguntou Radnaxelas. "Ela é sábia! O que foi que ela lhe disse?"
"Ela me disse que seu pai, quando criança, ouviu uma vez sussurros na floresta de baixo. Sussurros de animais ou de vozes ásperas dos graed'r e das vozes graves do optra'wa, como se fossem parte da mata."
Naam virou-se para Radnaxelas. "Você já passou a noite aqui?"
"Já, algumas vezes. Mas nunca ouvi nada como isso."
Euvayr, sentando-se, tirou um pedaço do peixe, enfiando na boca. Depois passou a panela para Palo.
"Muito estranho", disse, com a boca cheia. "Será que devemos sair daqui? Kate?"
"Eu sei o que é isso", disse Kate, a estátua sob as estrelas. "Há algum mago trovador por aqui, mas sem seu instrumento."
"Um tkactha?", perguntou Euvayr. Todos os outros se viraram para o silencioso ser estendido diante da água corrente.
"Um tkactha, sim, Euvayr. Ele deve viver por aqui."
"Seria isso possível? Eu já deveria tê-lo visto alguma vez", disse Radnaxelas, passando os olhos ao redor. Seu alfanje repousava perto de Ajeen, envolto num pano vermelho.
"Acredito que não, Pássaro, a não se quer fosse essa a vontade dele, pois nós, filhotes de Tkalon, podemos nos disfarçar entre nossas primas. Alguns podem alterar sua forma, outros, alterar o próprio mundo."
"E o odor dele seria como o de uma árvore. Nem Ajeen poderia encontrá-lo."
"É o que eu penso", disse Kate, saindo da penumbra.
Palo terminou de comer e passou a panela para Naam, mas ela recusou. Estava preocupada, atenta aos sussurros sinistros. Tinha se levantado e estava com a espada em mãos. "A pergunta que não quer calar, Ktudon: ele está nos atacando?", perguntou ela. Mas Kate apenas grunhiu, a visão de caçador vagando com fervor pela escuridão entre as árvores.
"Eu não saberia dizer."
"Então vamos dar o fora daqui", disse Palo. Euvayr se levantou depressa.
"Eu concordo. Devíamos nos mover. O clima está ficando estranho."
Alguma aura mística de teor tenebroso recobria, de fato, o clima naquele momento. Os uivos sussurrantes de lobos secretos assolavam as mentes dos guardiões sãos, com exceção de Ktudon, um tkactha de menos poder que desafiava a força que se escondia nas entranhas torpecidas da floresta. E, ao reflexo do fogo, o aspecto áureo e robusto de Naam, uma das mil namyalim, estava em alerta total, notificando o assombro na noite. Ela e o resto do grupo levantaram acampamento, guardando uma tocha para cada um, e ela guardou os suprimentos nas costas de Ajeen, que tremia de medo diante do desconhecido e da névoa que se espessava; uma névoa amaldiçoada, pois o tempo estava limpo e a época de início de ano não representava neblinas. Unidos, os caçadores entraram no meio da floresta com Ktudon à frente, menos temeroso. Os lobos uivavam, no leste e em suas cabeças, as árvores e os galhos altos, escuros, rangiam sobre a neblina, as folhas pingavam do céu e rebolavam no relento, dançando às músicas dos lobos secretos. Todos estavam assustados, mesmo o guia, Kate.
"Este é mesmo o norte?", perguntou Palo, levantando sua tocha. "Eu não sei de mais nada!"
"Não sei. Acho que sim. Não consigo encontrar o caminho para a estrada", disse Kate, e todos que estavam atrás se entreolharam aflitos.
Um vento passeava pela neblina, e ela permanecia ali, como uma presença viva que transportava as falas de animais. A floresta era um novo ronjiin, um novo Povo do Mundo, mais que um tkactha, mais que um optra'wa. Viesse ela e suas maldições da mente de um tkactha, tudo isso já haveria de ter transcendido o alcance máximo de pensamentos comuns. Pois ela estava além de Ktudon, um sábio de eras, e além de Euvayr, um soberano da idade do Império de Tulu'k.
"Dizem que o Império alcançou estas regiões, mas que alguma coisa os mandou de volta para o Oeste", disse, de repente, o Pássaro, e a consciência de todos foram abençoadas por um assustador esclarecimento. Os uivos dos lobos sumiam devagar, como se os animais estivessem partindo para o leste em busca de presas, e uma voz dura e ríspida vinha tomando seu lugar, como uma cantiga de povos antigos.


Quando do Oeste vieram,
No Leste minha vida contava mais de cem séculos.
Oh, mas não falo somente dos Caçadores de todos os dias!,
Pois eu trato mesmo é dos visitantes que fugiram;
Que, no leito da minha morada, fizeram suas casas.

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fear is the mind-killer