O TEMA DO FÓRUM ESTÁ EM MANUTENÇÃO. FEEDBACKS AQUI: ACESSAR

Estudando o roteiro: Angellus | Zugzwang

Iniciado por Zugzwang, 20/04/2014 às 10:23

20/04/2014 às 10:23 Última edição: 20/04/2014 às 10:30 por Zugzwang
Eu nunca fui bom com roteiros. Criava sistemas, mas nunca jogos. Além disso, confesso que sou chato para jogar RPG's em geral. Se a atmosfera do jogo não me prender no começo, tendo a abandoná-lo. Ao mesmo tempo, não me sinto capaz de alcançar um bom efeito com meus projetos.

Resolvi analisar o roteiro de um game com, a meu ver, uma ótima história. O texto pode não interessar a todos. Será um spoiler para quem não jogou. E pode soar repetitivo para quem já o terminou. Ele é mais um exercício de um jogador que, apreciando a narrativa, quis entender o porquê de gostar dela. E extrair algumas lições disso. Recomendaria para quem gostou do jogo, e agora quer relembrar de alguns pontos, e pensar no que aprender com eles.

Dividi o texto em três partes. A primeira é uma apresentação básica da história do jogo. A segunda é uma curta problematização do posicionamento ético dos seus personagens. E a terceira é uma comparação entre clichês tradicionais do gênero RPG e o modo como são abordados em Angellus.

Considerações básicas sobre história
O prólogo do jogo começa se referindo vagamente ao seu final, sem sabermos ao certo o que as palavras significam. Dessa forma, ficamos presos ao game, tentando descobrir o que se passa realmente e, enquanto não sabemos, acompanhamos a história de Cello.

Spoiler


Sentimentos,
Sensações e reações de uma alma, resposta a estímulos externos.
Os homens são seres naturalmente sentimentais.
Se eu soubesse que tudo terminaria assim.
Nem mesmo a mais sagrada criatura está livre de cometer erros.
As regras não foram feitas para serem quebradas.
"O amor é o veneno da alma" (Joshua 130 D.H.)
[close]

Julgado por interferir na linha da vida de Orchy, uma escrava, Cello foi condenado à queda. Ele fez isso porque se rendeu a um sentimento humano, antes desconhecido, e sempre perigoso para um anjo, o amor. Cello reagiu a um dilema ético. Escolheu o que achou correto, salvar sua amada, contrariando as regras de sua sociedade. Mas a qualidade do roteiro está no que acontece depois. A decisão de Cello põe em risco seu mundo. Ela tomou proporções incalculáveis. As conseqüencias serão literalmente trágicas. Especialmente por conta dos planos manipuladores de um grupo de demônios para libertar Dibérnia e iniciar uma nova guerra por Martel, o mundo dos homens.

Emitindo um julgamento

O conselho dos Serafins puniu Cello por sua atitude. Ele contou com apenas um voto a seu favor, o de Ayss. Ela a tida pela encarnação de Einglenn, um anjo poderoso que sacrificou sua mortalidade para separar de uma vez o reino dos anjos e dos demônios. Para amarrar bem a trama, o tema do sacrífico é retomado, -- e seu significado é intensificado na conclusão da história. Fica implícita a disputa política entre os Serafins, ponto também desenvolvido posteriormente.

Simpatizamos com o Cello. Tomamos a sociedade angelical por uma hierarquia autoritária e anti-humanista. Talvez isso seja verdade. Mas o problema é que, no final das contas, tudo que Cello fez deu completamente errado. Numa tragédia clássica, não há uma solução positiva. Portanto, não há lado inteiramente correto. Demonstra um impasse dentro de seu próprio universo. Anjos são como Creonte, tentando manter a ordem social por mecanismos frios, e proteger seus respectivos mundos das maldições à espreita. Como Antígona, Cello segue as leis não-escritas. Está dominado por um sentimento inteiramente passional e inconseqüente. É compreensível. Mas termina com o resultado de uma perversão sagrada.


Os cristais e os clichês

Cello perdeu a memória. Não se lembra de quem era e, agora, busca levar uma vida normal. Precisando de dinheiro, ele aceita com Orphy esta missão: vasculhar cavernas estranhas para um grupo de desconhecidos. Entendemos logo do que se trata. As cavernas abrigam chaves especiais que, reunidas, liberam determinado poder. É um clichê. Mas, em Angellus, os clichês estão bem aplicados. A seguir, comentários sobre os lugares-comuns dos RPG's e seu uso por @Matt RvdR.

The shining armor hero with his beautiful princess. Cello tem sua amada, mas está longe de ser um cavaleiro nobre montado num cavalo branco. Além disso, sua decisão de salvá-la, no começo do game, desencadeia os maiores problemas da trama.

Hero's Amnesia. Por causa de radiações extraplanares misteriosas, quase todos os heróis têm amnésia. É mais fácil perder a memória do que pegar uma gripe. Por outro lado, em Angellus, a amnésia de Cello foi propositadamente induzida. O jogador sabe quem o protagonista é. A razão da perda da memória em si nos deixa curiosos. Não é o passado de Cello esquecido que é importante.

Scattered Peices. Recolha os cristais/chaves é um mecanismo clichê. Mas aqui, você foi contratado pelos vilões para fazer isso. Deveria impedi-los, na verdade. De qualquer maneira, a história ajuda a aprofundar esta mecânica simplista.

The Chosen One. Marion foi escolhida por divindade, Leony, para proteger Martel e errr... na verdade, Marion simplesmente não é a verdadeira escolhida! Ela voluntariamente quis seguir o destino de sua irmã por amor a ela e, assim, protegê-la dos males futuros. Destaque: Marion nutre certo ressentimento para com a deusa. É um bom personagem, apesar de sequer apresentado pelo autor no tópico do projeto, e considerada chata pelos jogadores. E sim, chata ela é, mas com uma boa justificativa.

Nostradamus Rule. Aqui, seres considerados celestiais parecem equivocados. Como Einglenn. As profecias, intenções ou previsões são obscuras. Mesmo a conclusão da história apela para algo novo e inesperado, até então, a condição decadente de uma alma salva por um anjo. Isso nos leva ao próximo tópico.


Evil will always triumph, because Good is dumb! É a parte em que os vilões seqüestram a mocinha, e prometem libertá-la em troca das chaves/cristais. Na maioria dos jogos, é um falso perigo, sabemos que o protagonista, depois de disparar tapas e pontapés, colocará tudo no lugar. Mas não é verdade aqui, o perigo é real. Além disso, o ponto foi bem relacionado a elementos exóticos e particulares do mundo de Angellus, a questão da alma humana e os efeitos da alteração de sua linha da vida.

Heads I Win, Tails You Lose. Cara, eu ganho, coroa, você perde. Este game tem apenas um final, e ele é ruim. O que o torna impactante é que ele realmente é o final, e não um truque previsível da narrativa. E você tomou um papel fundamental na sua execução. Enfim, é um final muito bem articulado com todos os elementos do roteiro, conforme abordei acima.

Deus Ex Machina Bosses. O último chefe é inesperado (no caso, uma mulher). Contudo, as explicações dadas para sua aparição são excelentes e tornam o jogo o que ele definitivamente é. É um esplêndido encerramento. Com uma boa dose de sadismo, ela simplesmente diz as mais perfeitas e impactantes frases que um vilão poderia dizer em seu mundo. Vale só por essa experiência!
For all to be accomplished, for me to feel less lonely, all that remained to hope was that on the day of my execution there should be a huge crowd of spectators and that they should greet me with howls of execration.

Spoiler
[close]