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Alice Mare – O significado de uma maçã

Iniciado por rafaelrocha00, 23/08/2017 às 21:51


Alice Mare – O significado de uma Maçã
Será meu ultimo post, eu prometo.

Qual é o significado de uma maçã?

Pode parecer uma pergunta ridícula, mas pare para pensar no que esse pseudofruto representa, ou melhor ainda, pergunte as pessoas ao seu redor o significado de uma maçã, seria algo bem simples, se as respostas não fossem tão problematicamente diferentes.

O fruto pode representar os perigos da tentação humana para um cristão, mas se colocada ao lado de frutas vermelhas em uma sala verde ou azul, se torna sinônimo de saudê, bem-estar e até mesmo riqueza. Pergunte para mais duzentas pessoas em situações diferentes e a resposta passa a variar muito mais. Por que há uma intercorrência tão grande entre algo que deveria ser tão simples?

Para entender isso, analisaremos Alice Mare, e como o jogo cria e contesta o significado de uma maçã. Como falha e alcança sucesso em explorar a natureza subjetiva de seu universo e o mais importante de tudo: nos mostra o quão importante é analisar peças de ficção, tal como jogos e livros e retirar dos mesmos um entendimento maior sobre o nosso próprio mundo.

Esse texto analisará os aspectos narrativos do jogo mais do que os mecânicos, uma vez que ele se baseia mais na diegese. Nesse caso, toda a história será contada, incluindo os Spoilers. Então jogue, leia ou assista um vídeo de Alice Mare antes.

Assuntos considerados sensíveis lá embaixo, não leia se tiver problemas com esse tipo de experiência


Um Sonho


"A formiga me contou que o sapo era ruim
O sapo me contou que o gato era ruim
O gato me contou, não,
O coelho é o pior de todos"

Alice Mare não é por nenhum meio perfeito, ele tem vários erros e problemas que são mais que aparentes e eu não vejo sinceramente nenhuma razão para o recomendar em vez de sua Light novel (No máximo se você não entender inglês, já que atualmente não há nenhuma tradução portuguesa da Novel), quem sabe, como um complemento para o livro, mas não há realmente nenhuma necessidade. E isso se deve a muitos motivos, que falaremos logo depois. Mas comecemos pelo começo:

Alice Mare conta a história de Allen Llewellyn, uma criança quieta e tímida que perdeu suas memórias e passou a viver no orfanato de um homem conhecido apenas como o professor. Lá Allen encontra mais cinco crianças, cada uma com sua peculiaridade. Até que um evento misterioso o leva para as terras dos sonhos, de onde ele é obrigado a encontrar uma saída.

Através dessas terras além da compreensão, ele se encontra com criaturas poderosas e começa a explorar os sonhos das outras crianças do orfanato, entendendo um pouco sobre seus passados e como acabaram no lugar em que estão. Cada uma dessas histórias são contadas em arcos narrativos através desses sonhos, utilizando-se de alusões a fábulas, tal como a da chapeuzinho vermelho ou a de Gretel e Hansel (João e Maria no Brasil). Todas essas histórias estão conectadas com um tema em comum, que se torna importantíssimo para entender as motivações do professor e suas pesquisas com a doença do Sono.
   
Muitas pessoas veem Alice Mare como um jogo de Horror, apesar dele não entrar nos moldes desse gênero. O jogo não possui lutas e seus desafios são feitos principalmente através de Puzzles, alguns bons, mas outros nem tanto. A melhor classificação para este estilo seria um de aventura com índoles de horror, uma vez que explora mais as intricarias da mente humana ao invés do pavor que estamos acostumados. Era um jogo aberto a interpretações e lhe dava mais perguntas do que realmente as resolvia, isso mudou um pouco em comparação ao livro, apesar disso.

Seus gráficos atmosféricos e o design dos personagens é incrível, algo já esperado de Miwashiba, criador de LieEater, outro jogo com incríveis princípios estilísticos. Ele possui um aspecto único que se mostra muito bom na hora das ilustrações dos diários.

Convenções de Videogames


Qual será o significado de um jogo de tetris? Seria uma metáfora para a mente quebrada dessas crianças, tentando inutilmente se refazer, mas no final, sempre se rachando? Ou seria que o autor ficou sem ideias? Não consigo me decidir.

Um dos maiores problemas e criticismos do jogo é a sua utilização de Puzzles que não tem nenhuma ligação com a narrativa, que foram adicionados ali apenas para ocupar espaço. O puzzle da passagem pelo rio é basicamente isso, não há um mérito compreensivo ali.
E isso é um problema, que começou a ser resolvido quando o livro foi lançado. Já que o criador não tinha de dar tamanha atenção a essas convenções na nova mídia, conseguiu explorar muito mais a mente daquelas crianças e de personagens que não poderíamos controlar, tal como o professor. Allen ganhou muito mais caracterização e podê-se ler seus comentários sobre o mundo a sua volta. E por isso ele é mais dinâmico.

Alice Mare é um dos poucos casos onde a mídia escolhida acaba limitando seu potencial, não por ser feito como um videogame, não me entenda errado, mas por não ter explorado as tamanhas possibilidades que essa mídia oferece. O final, por exemplo, apesar de ser muito bom em certas partes, que falaremos depois, acaba servindo a nada além de conteúdo inútil, uma vez que ninguém escolheria nenhuma daquelas opções. Assim eu espero.

Mas falar que ele não explorou o que podia dessa mídia seria uma mentira. Um dos pontos mais interessantes quando joguei foi o cuidado que o jogo possui em relação ao seu simbolismo, principalmente com portas. As portas, por as vezes guardarem memórias ruins, permanecem trancadas até que você encontre uma forma de atravessá-las. Seja ajudando um armário ou apenas tendo uma boa conversa com um dos personagens. O jogo dá bastante ênfase nas chaves e no ato de abrir as portas para aquele mundo, nós dizendo que isso traria um impacto muito negativo para aquelas crianças. Que as portas deveriam sempre permanecer fechadas, é isso que o professor faz pela maioria do tempo, ele tenta mantê-las fechadas. Se ele é alguém ruim ou não, falaremos em breve.


Outra utilização muito boa e infelizmente criticada, foi o do uso do XXXX para representar a palavra "amor" nos diálogos. Para muitos servia como um puzzle sem sentido, adicionado para ocupar espaço e criar mistério. A questão importante aqui é que isso nunca foi um puzzle, mesmo para quem não havia lido o livro quando jogou (como eu) era meio obvio o que era. (pelo menos que era um verbo de ação ou emoção, o significado exato realmente não importava.).

Allen havia esquecido o significado dessa palavra, mais que isso, ele tinha perdido qualquer lembrança que poderia ter sobre amor. Sua família e amigos haviam sido apagados. Tal como IB lendo livros de adultos e precisando de ajuda, faz todo o sentido ele não conhecer e registrar essa palavra.

Allen havia perdido algo muito importante, o que lhe convidou a entrar nesse mundo além-terra. Mas e as outras crianças?

Para entendermos o tema principal do jogo e como ele rege todos os acontecimentos, precisamos analisar uma das minhas cenas favoritas de Alice Mare e responder a nossa pergunta inicial. Qual o significado de uma maçã?

A Maçã


"Pessoas ruins deveriam ser XXXX, assim todos ficarão felizes"

A cena em específico ocorre no mundo de Stella. Sendo esse o único diferente dos demais, com túmulos, árvores mortas e uma névoa densa. Algo não muito esperado para os sonhos de uma garotinha, principalmente se comparado ao mundo de doces, que é o primeiro que você visita.

Conforme viajamos e interagimos com aranhas, descobrimos cada vez mais sobre o passado de Stella e o motivo dela amar os mortos e odiar os vivos. Stella vivia em uma comunidade abandonada pelo meio exterior, eram autossuficientes e bastante xenofóbicos. No meio desse lugar isolado, uma praga ataca e começa a se espalhar muito rápido, levando a morte da maioria da população. Stella sobrevive, mas sua família morre e ela é obrigada a viver em um orfanato da cidade, de onde acaba sendo adotada mais quatro vezes. Todos de suas novas famílias morrem, menos ela.

Depois da quinta família morrer da praga, ela volta ao orfanato e lá uma freira lhe oferece uma maçã envenenada. O fato é que todas as pessoas naquele orfanato perceberam o quão desesperador é a situação e que a única ação que poderiam esperar era serem mortos pela doença de uma forma horrível e dolorosa. Ao invés disso, eles decidem tomar controle de suas próprias vidas, as encerrando com uma maçã envenenada. Eles dão uma escolha a ela, e a menina a recusa. Logo depois, não só o orfanato mas todo mundo da vila é dado como morto e a única restante é Stella.
   
Nessa cena em específico, no mundo dos sonhos, essa escolha é repetida. Eles encontram o pomar de maças envenenadas, mas dessa vez, Stella decide comer e encerrar sua vida, ela inclusive pergunta a Allen se ele não gostaria de uma mordida (um ótimo uso de escolhas, se você aceitar a maçã, você morre, sua única escolha é continuar ou sair do jogo.), uma vez que ele não parece vivo.    Na primeira vez que vi essa cena, não havia entendido muito bem o que fez Stella mudar sua opinião, assumi que era um dos efeitos ruins em abrir as portas dos sonhos e fazer as crianças terem de enfrentar seus passados. Apenas no final foi que percebi o obvio. Aquilo não era sacrifício e nem mesmo suicídio.
   
O tema principal de Alice Mare pode ser entendido com uma simples pergunta:
   
Qual o significado de uma maçã? E a resposta é igualmente simples: Depende.

Mais importante que tudo, o significado de algo só pode ser encontrado através do contexto em que aquilo está inserido. Não apenas com a maçã, mas tudo no mundo apenas pode ser entendido e valorizado quando posto em um contexto, quando analisado pelas relações entre os diversos fatores desse meio: Uma pessoa no meio do deserto valorizaria água muito mais que alguém em um país desenvolvido, já um livro, seria descartado por alguém morrendo de sede. Nenhum valor é absoluto, e isso é simples, mas importantíssimo para entendermos não só Alice Mare, mas o mundo em que vivemos.
   
Parece meio simplista apenas responder contexto, não acha? Afinal, existem diversos tipos de contexto no mundo. Quase nunca um contexto será igual a outro, ele sempre mudará em relação a cultura, sociedade e tempo de seu meio. As varias sociedades não pensam da mesma forma, ao mesmo tempo. E essa relação é o que ditará o nivel de variação entre diferentes tipos de contexto. Um contexto temporal, por exemplo, terá uma variação muito maior em relação a outro contexto temporal, mas qualquer contexto que vier dentro dele, não variará tanto. É um conjunto que engloba outros conjuntos. É trabalho quase moral de uma analista levar em conta o contexto em que um objeto se encontra, mais ainda uma obra midiática. Por isso existem coisas como falácias anacrônicas. O que Alice Mare faz é, não só entender o contexto de suas alusões, mas aplicar essa ideia no seu próprio fundamento. O contexto da infância.
   

Uma das grandes conquistas do jogo é criar contexto e com isso criar valor. Valor só pode existir diante de um contexto, de uma relação entre um produto e outro. Aguá só pode ser valorizada quando posta ao lado de um deserto e a vida só pode ser valorizada quando analisada aos ângulos da morte. Alice Mare nós confronta com essa ideia, criando uma distorção muito grande entre as crianças, inocentes, e seus passados e sonhos absurdos, terroríficos e desesperadores. Nenhum deles está bem como aparentam, como seria esperado para crianças daquela idade, todos eles passaram por experiências de caóticidade. Foram abandonados pelos que amavam, perderam algo importante. E mesmo assim o jogo nós apresenta seus mundos como fábulas, meras fantasias de crianças, não diferentes das histórias de bruxas. E é essa inocência que se segue ao longo do jogo, e cria essa sensação de alienação, como se aquela crueldade não fosse parte do mundo real. E essa distração é um sintoma obvio de uma doença muito pior. E isso não é acidente, mas sim o principal elemento que conecta todas as crianças do orfanato.
Todas elas perderam algo e por causa disso, renunciaram uma parte de si. Suas experiências não foram apenas sobre morte, mas sobre a falta de significado e de ordem do mundo em que vivem. É uma historia, mais que tudo, sobre perda. De uma hora para outra, eles tiveram que aceitar que estavam abandonadas em um lugar sem leis, sem princípios objetivos.
Tiveram de perceber o quão frágeis eram as bases de suas vidas e o quão fácil é fazer tudo cair.
   
Letty foi abandonada pelos seus pais na floresta. Obrigada a vagar sozinha, com fome, sem direção e quando finalmente voltou, foi obrigada a ver a casa em que morou vazia, sem seus pais. Ela criou sua múltipla personalidade, Rick, para protegê-la da falta de significado de seu mundo, que antes era tudo. Eles acabam queimando a casa.
   
Chelsy presencia o assassinato de sua vó, provocado por causa de sua confiança em um estranho. E logo depois, presencia o assassinato do assassino pelas mãos de seu próprio pai. Ela é obrigada a encarar um mundo que não conhece, e perceber uma faceta ruim e misteriosa de alguém que conhece muito bem. Ela se fecha em seu quarto.
   
Joshua perde seu pai, não além disso, mas ele o vê colocando a corda no pescoço e se matando. Ele vê o quão rápido e fácil é para uma vida se tornar pálida. Quando ele conta para sua mãe, ela acredita que é apenas mais uma de suas mentiras, brincadeiras que ele contava em primeiro lugar para conseguir atenção. Ele vê seu método de comunicação principal que usava para animar sua mãe se reverter contra ele. Ele se fecha em uma camuflagem de criança obediente.
   
Stella foi a pior, viu todos os que amava morrer, um por um. Sempre que tinha a esperança de conseguir uma nova casa, uma nova família, ela acordaria uma noite e ver ia-os mortos. Perguntar-se-ia quando seria sua vez. Ela foi a única que restou no vilarejo inteiro e viu o resto se matar. Ela odiou os vivos, porque eles desaparecem rápido demais e mesmo assim, foi covarde demais para aceitar a maçã.
   
Como bem colocado pela fala da irmã do professor.
"A menina que renunciou ter de enfrentar a si mesma
A menina que renunciou ter de reconhecer qualquer coisa
O menino que renunciou ter de melhorar a si mesmo
A menina que renunciou ter qualquer apego a vida"

Comentarei sobre o professor e Allen depois, uma vez que eles são essenciais para entender o principal motivo para tudo isso, uma vez que essas são apenas consequências de um mesmo problema e enfrentá-lo é o único jeito de entender a cena da maçã.
No final do jogo, descobre-se que o único jeito de sair do mundo dos sonhos é esfaqueando alguém "ruim" com uma faca, essa pessoa ficará para sempre presa em um mundo de sonhos, se tornando a porta para o mundo real. Então o jogo lhe pergunta, quem aqui é a pior de todas as pessoas? Ele basicamente lhe pergunta, de quem é a culpa?

E você pode fazer a sua escolha e esfaquear uma das crianças, mas isso seria ignorar o ponto principal, e isso seria o mesmo que todas as crianças estiveram fazendo até agora. Mesmo que eu diga que essa escolha não tem peso, isso é mentira. Mesmo que ninguém vá realmente matar nenhuma dessas crianças, essa escolha continua tendo valor, porque lhe faz encarar os problemas e falhas desses personagens e olhar para Allen. A peça principal.

Se você escolher esfaquear o professor, como possível no jogo, todas essas crianças sairão vivas para o mundo real e isso inclui Stella. Se a escolha da menina de comer a maçã fosse suicídio, o bom humor dela não faria sentido algum.
Então, o que a maçã significa?

Albert Camus


"Existe apenas um único problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida significa responder à questão fundamental da filosofia."

Existia um novelista no século 20 chamado Albert Camus. Ele geraria os princípios básicos para uma crença filosófica chamada de absurdismo.
   
O absurdo, nessa crença, é o nome dado a nossa procura por significado em um mundo totalmente vazio. Para Camus, nada tinha valor. Nós estaríamos para sempre procurando sentido e, por consequência, valor em um mundo que é totalmente apático a nossa existência. Para ilustrar isso ele reconstrói o mito de Sisifus:

Por se achar melhor que os Deuses e entregar o fogo a humanidade, Sisifus seria obrigado a carregar uma pedra enorme montanha acima, sempre quando chegasse ao topo, esta pedra cairia e ele teria de recomeçar todo o seu trajeto, sem jamais alcançar o fim de sua missão. Essa é a falta de sentido da vida para Camus, nós seriamos como Sisifus, carregando uma pedra, sem nunca alcançar nada de útil com isso. Para ele, a própria esperança não era nada além de um método fraudulento para tentar negar o absurdo.
E então, caro leitor, se a vida não tem sentido, por que estamos vivendo? Por que não simplesmente acabar com tudo e comer a maçã envenenada? Camus dizia que a única pergunta verdadeiramente importante para a filosofia é sobre o suicídio, julgar se uma vida vale ou não a pena ser vivida seria o único propósito dessa ferramenta.

Para ele, porém, o suicídio nunca é a resposta, porque seria apenas uma forma de negação do absurdo, em vez de realmente resolver o problema.

A crença em um propósito dado por algum Deus maior também não seria uma boa escolha, uma vez que te alienaria dos problemas do mundo real, lhe faria perder o foco e criar propósito aonde não existe nenhum. Para Albert, a única resposta era se revoltar, aproveitar a vida e o momento da melhor forma possível, tornar sua mera existência uma rebelião contra o absurdo. Ele propunha um fim alternativo ao mito: deveríamos imaginar Sisifus sorrindo, porque apenas assim, ele daria um propósito a sua punição.

Alice Mare funciona em um modelo similar: todas aquelas crianças tiveram de enfrentar o absurdo em algum momento de sua vida, eles foram apresentados a natureza sem sentido e caótica do universo muito cedo e não souberam lidar com isso. Eles ignoraram o problema em vez de tentar resolvê-lo, renunciando uma parte de si mesmos. Eles fugiram. Para o professor isso não era ruim, era a única forma de escaparem de seus pesadelos, fechando as portas. Era apenas fazendo com que eles encarassem seus problemas, porém, que conseguiriam melhorar e encarar o mundo.

A maçã, no sonho, não é uma tentativa de suicídio por parte de Stella, mas sim, ela aceitando a inerência da morte. O motivo pela qual ela odiava os vivos, por que ela se dissociava deles de forma tão brusca ao ponto de nem conversar com os amigos, era porque ela tinha medo de perdê-los. Não se apegou a nada vivo, porque sabia que morreriam, em algum momento. Ela mesmo diz, no livro, que temia muito o dia em que a doença a pegasse, ela tinha muito medo do fim. Mas apenas aceitando o absurdo, a falta de sentido e a inerência da morte é que ela consegue destruir o mundo dos sonhos.
Agora, com Allan e com o professor, os extremos mudam de figura.

A chave


"Ser um lixo é receita de sucesso aqui, é mais fácil ficar louco"

Todos os personagens, em algum ponto ou outro, tem de enfrentar a irremediável verdade da morte em suas vidas. Allen, apesar disso, não tem nada com que possa se distanciar, não tem memórias de ninguém, ele é o único que não renunciou uma parte de si mesmo. Passa o jogo inteiro tentando apenas se lembrar, mesmo sabendo que poderia ser mais doloroso assim. Ele jamais deixa de reconhecer os acontecimentos a sua volta, não tenta fugir da verdade. Apenas assim ele é capaz de abrir as portas para as outras crianças. Ele só chega a aceitar o absurdo, quando lembra de seus pais, e como foram mortos pelo coelho branco. (sorte) Ele se lembra do que é amor e que há apenas uma única forma de valorizá-lo, de encontrar significado nesse sentimento. E é através do contraste, do contexto. Ele diz ao professor que o amor não vale nada se você nunca o procura.

O professor aqui, é um personagem importante, mas sua história apenas é apresentada no final. Seu nome é Daniel (Amado), um nome que sempre odiou, por não sentir, assim como Allen, amor. A única pessoa a amá-lo foi sua irmã, que acaba se sacrificando para que ele e seus amigos saíssem do mundo dos sonhos na primeira vez que ele se abriu (a primeira doença do sono). Ele não conseguiu aceitar a morte dela e passou toda a vida pesquisando sobre essa doença, perdendo sua própria.

Ele renunciou a tudo e encontrou crianças em estados similares, as estudou e esperou até que estivessem em um nível de desespero forte o suficiente para abrir o mundo dos sonhos, esperando assim trazer sua irmã de volta. Ele percebe tarde demais que isso não é possível. E através dos esforços de Allen para abrir as portas e confrontar o passado, o professor percebe naquele momento que ele já possuía amor, apenas não havia como perceber, porque nunca o havia procurado. Ele se arrepende e tenta fazer um único ato nobre, se esfaqueando para abrir a passagem no lugar de Allen. Ele aceita que sua irmã não vai voltar, ele aceita a morte, que ele não tem controle, e no final do jogo devemos aceitar que ele não voltará.


O livro


"Você tem de ouvir o seu coração, ou ao contrario, ele te atacará"

O livro, apesar de ser incrivel, negativou algumas partes, isso incluindo o final. Eu realmente não gostei do final do livro. Ele tentou juntar dois finais diferentes do jogo em um e até poderia ter funcionado se não fosse o pouco de impacto posto lá.
O gato de cheshire é um demônio que representa exatamente o caós naquele mundo. Ele se alimenta das almas de crianças e junto com o coelho branco, atrai-as até o mundo dos sonhos. O professor tenta controlá-lo no livro, mas falha, uma vez que esse o desobedece diversas vezes, desfazendo essa ilusão de poder.
   No jogo ele sempre me pareceu uma força da natureza, agindo não como um ser egoísta, mas como um terremoto, um ímpeto amoral que funciona sem próprios sistemas éticos, punindo aqueles que fogem da verdade. No livro, tanto ele como o coelho branco são vilões totais, que passam um ar de maldade aonde passam.
   Um exemplo muito bom é que no jogo existe um final, (com uma localização muito ruim, inclusive. Uma literal toca de gato), onde você pode escolher fazer um pacto com o gato de cheshire, ele promete que se você aceitar, ele mandará todos os que você ama para casa, sãos e salvos. Se você aceitar o pacto, ele toma controle de seu corpo e a sua primeira fala é sobre como o usará para brincar com o professor e matar a todos, te enlouquecendo no processo. É direto, não há rodeios. Você fez uma escolha ruim, cometeu o mesmo erro do professor, tentou não perder nada, foi desleal a falta de controle que você tem sobre esse mundo.

No livro, diferentemente, esse final ocorre logo depois das crianças saírem do mundo dos sonhos. Apenas o professor está dormindo, para sempre, e Allen decidi fazer a maestria de aceitar o acordo. E isso é tão ridículo. É como se o autor estivesse desenvolvendo um tema e depois apresentasse um contra argumento bem nas últimas páginas, mas não o reconhecesse. Uma grande parte do desenvolvimento de Allen como personagem, no livro, veio do fato dele ter de aceitar a falta de controle, o maior descuido de seu professor foi tentar encontrar ordem e controle, mas Allen acaba cometendo os mesmos erros meses depois. O professor inicia toda essa cadeia de eventos ao tentar trazer sua irmã de volta, que havia se esfaqueado para salvar a todos e Allen a confronta e aprende com ela, confronta o caminho de seu professor. A escolha dele no final não faz sentido algum. Tudo bem se fosse algo impensado, irracional, ativado pelo momento, mas aquilo foi pensado, ele teve meses para raciocinar. Não há nenhuma consequência por esse pacto, inclusive, nenhuma muito visível, ao menos.

Estaria o autor cometendo um erro narrativo, ou estaria eu errado? Isso é importante e interessante.
Eu pergunto novamente, qual o significado de uma maçã?

Teoria de valor


"Não é sobre criar um objeto, mas criar uma perspectiva"

Você provavelmente já deve ter visto aquelas imagens ou vídeos onde alguém põe óculos ou algum item aleatório em um museu e as pessoas começam a se acumular e vislumbrar esse item, tentando encontrar significado em algo que nunca o teve. Tirando teorias legais sobre um objeto comum, que eles provavelmente tem em casa.

Me relembro desse caso, onde uma obra de arte era basicamente um telefone que apenas o artista tinha o número, alguém havia ligado, todos se reuniram para ver e ouvir, mas era apenas a empresa telefônica fazendo propaganda da TIM.

Normalmente, esse tipo de coisa é feita para dar risadas, mas eu sempre achei muito interessante. Como podemos nós tirarmos significado de algo simples como um óculos? Algo que possui um propósito obvio e fixo? Isso acontece porque seres humanos tentam procurar significado em todas as coisas, algumas que naturalmente, não o possuem. Esse valor não vem do objeto em si, mas do contexto em que ele está inserido, no caso, em um museu. Eu não acho ruim de forma alguma essas pessoas tentando tirar significado de um óculos, é exatamente porque o valor é externo que o objetivo do autor do material em por ou não aquela interpretação não importa. Se o valor não vem do objeto em si, por que deveríamos nós preocupar com a fabricação, mais do que nossa interpretação?

Me responda, meu caro leitor, se você pôde encontrar um valor em algo que normalmente não o teria, ou ampliar um valor já existente, melhorar seu conhecimento e ampliar sua visão de mundo, realmente importa se aquele valor foi posto ali com algum propósito? Se ele não é objetivo? Para Camus, não. Nada seria objetivo.

É por isso que tudo o que eu disse aqui pode não ter sido pensado pelo autor do jogo, mas isso faria esse conhecimento novo e essa nova visão que você tem sobre o material menos valoroso? Com menos significado? Pode não ser a visão objetiva, nem a mesma que você terá, mas é a visão que cabe aqui.

E é essa a importância de Reviews. É a tentativa de encontrar um significado diferente em algo que normalmente não o teria, encontrar uma nova visão de mundo e procurar motivos pelo qual alguém poderia gostar dessa obra e analisá-la de formas díspar. Um review tenta encontrar os méritos de uma obra, mas como o fazê-lo se o valor é externo ao produto? Ele tem de confiar na sua própria visão e tentar encontrar o que outras pessoas poderiam ver de bom ou ruim sobre seu valor.

O problema principal, para mim, na comunidade de jogo hoje é que ela apenas cria jogos, mas não os joga. Ficamos cheios de material que ninguém irá realmente consumir. Se você não tentar propagá-lo lá fora, ele será perdido entre milhares de outros projetos. Reviews são importantes, porque elas procuram significado em outros jogos, além dos seus, e através desse conhecimento ganho que é possível fazer novas interpretações e criar experiências disconformes.

Então, sobre os puzzles não valorizados do jogo? Teriam eles algum valor para a narrativa e para a história que eu e os outros jogadores estamos perdendo? Não sei. Mas a mera possibilidade já os faz interessantes.

Então eu lhe perguntou, meu caro leitor, qual o significado de uma maçã? É o mesmo de agora? De dez minutos atrás? É o mesmo do significado que eu, o autor, atribuo?

E o mais importante, é realmente uma maçã? E se não? Que valor podemos tirar de uma brincadeira de fingimento? Que valor podemos tirar de sua laranja? De seu pêssego?

E o que você acha?