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RPG Maker e Outras Artes

Iniciado por Thife, 07/06/2017 às 20:13

RPG Maker e Outras Artes

[box2 class=titlebg title=Introdução]
Vivemos em um mundo em que o conhecimento é cada vez menos fechado em certas caixas. Novas descobertas são feitas em física quântica se aplicando conhecimentos de biologia, neurologia ajuda a estudar o comportamento de linguagens, psicologia é uma ferramenta usada no mundo do marketing e de alguma forma todo tipo de área se conecta com outras e é impossível negar que jogos de RPG também se ligam a outras formas de conhecimento. Mitologia, arquitetura, sonoplastia, antroplogia, todas essas áreas e muitas outras podem ter elementos que podem ser úteis para a concepção de jogos. A ideia inicial era propor um espaço de debate para pensar como jogos de RPG interagem com outras áreas de saber e como é possível aprender coisas sobre outras áreas de forma a aprofundar a própria concepção dos jogos.

Eu ia fazer uma série de postagens sobre a relação entre criação de jogos e várias áreas do saber e pensei que a primeira deveria ser a área das artes. O motivo para mim era meio claro: quando se fala na questão da numeração das artes (em que o cinema, por exemplo, é a sétima arte), os Jogos Eletrônicos são incluídos como a décima arte. E uma coisa fundamental sobre esse sistema de numeração é que, em geral, as artes posteriores da lista são constituídas por elementos das antes que vêm antes. Se a Música é a arte do som, por exemplo, Teatro e Dança, como artes do movimento, também fazem uso do som. O Cinema engloba o uso do som (música), das cores (pintura), do movimento (teatro), do espaço (arquitetura), etc.. E, mesmo que cada arte possua elementos das demais, elas também possuem elementos próprias que podem influenciar as outras. Parecia-me óbvio que Arte fosse o primeiro tópico a ser abordado, mas também logo vi que era um assunto grande demais para ser tratado em um único texto/debate. Então eu decidi fazer essa pequena introdução e ir postando aos poucos, talvez uma vez por semana, um texto discutindo cada uma das artes e ir atualizando o índice abaixo com o link de cada novo texto nesse mesmo tópico. A ordem desse índice pode mudar ao longo das próximas semanas, mas o objetivo aqui é discutir um pouco que tipo de técnicas e conhecimentos de outras artes são usadas ou podem ser usadas como elementos de composição e concepção de jogos.
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[box2 class=titlebg title=Índice]
1. Música
2. Pintura
3. Escultura
4. Arquitetura
5. Literatura
6. Artes Cênicas
7. Cinema
8. Fotografia
9. História em Quadrinhos
10. Jogos Eletrônicos
11. Arte Digital
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Eu ainda não tenho certeza se essa é a área certa para este tópico, então se não for podem mover para a certa, agradeço.  :T.T:

1. Música

[box2 class=titlebg title=Primeiras palavras]
Tenho de admitir que logo que comecei a mexer com RPG Maker eu não era o tipo de desenvolvedor que se atenta muito para trilha sonora, provavelmente porque eu ainda não tinha parado para me atentar mais a esse elemento, isso é algo que começou a me preocupar realmente há tempos recentes, quando voltei ao mundo Maker, mas quando paro para pensar é um pouco óbvio que música deveria ser algo a ser levado em conta na hora de criar jogos e não só eles. Desde a Antiguidade, na época das tragédias gregas, as composições musicais eram um elemento importante e até hoje não existe uma grande narrativa audio-visual em que música não desempenhe um papel importante. Mesmo que você não as conheça pelo nome, The Imperial March e Hedwig's Theme são duas músicas que basta ouvir os primeiros acordes para que de imediato venham à cabeça cenas de grandes franquias cinematográficas como Star Wars e Harry Potter. Há mesmo casos em que filmes são considerados fiascos, mas há pessoas apaixonadas por suas trilhas sonoras. No mundo dos vídeo-games há também grandes exemplos de trilhas sonoras marcantes, como a dos jogos Grand Theft Auto: San Andreas, The Elder Scrolls: Morrowind, Sonic the Hedgehog, The Sims, só para citar alguns exemplos, que desde a tela título, mesmo sem palavras em suas músicas, conseguem determinar o clima e o tom do jogo. Claro que a escolha adequada de músicas para a trilha sonora de seu jogo é alto importante, mas não é só isso que a música tem a ensinar. Música é uma das mais antigas artes da humanidade e não se conhece uma única cultura humana que não praticasse música. Enquanto poesia e linguagem são, muitas vezes, intraduzíveis, música não precisa de tradução, a melodia, o ritmo e a harmonia são capazes de comunicar sentidos sem a necessidade de palavras. Por isso que mesmo que não compreendamos a letra de certas músicas em outros idiomas, ainda assim podemos apreciá-las e gostar delas.

(Aliás, lembrem-se que não sou um especialista em música ou nada disso, só alguém pensando um pouco nessas questões  :uu: )
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[box2 class=titlebg title=Trilha Sonora e Ambientação]
Jogos de estilos diferentes exigem trilhas sonoras distintas. Essa parece uma afirmação meio óbvia, mas é possível explorar muitas ideias em cima disso. A primeira coisa a se destacar é a capacidade de melodias e ritmos de inspirar certos sentimentos. Metal e baladas românticas possuem estilos de ritmo e melodia bem distintos e às vezes mudar o estilo de uma música para outro acaba fazendo com que ela soe completamente diferente. É bem comum a situação em que, ao se ouvir uma música, tem-se a impressão de que ela passa certa sensação, mas ao se ler a letra se percebe que ela fala de algo completamente diferente. Muitas vezes isso isso pode ser proposital, para causar um efeito de ironia (Ironic de Alanis Morrissette é, provavelmente, o maior exemplo das últimas décadas de uma grande ironia musical) ou mesmo cômico (é a graça de certas paródias, em que se pega uma melodia com uma significação específica e se sobrepõe a ela uma letra completamente aleatória, subvertendo a música original).

Existem casos, no entanto, em que isso se dá pelo simples fato de que a interpretação da música é sempre subjetiva. Mesmo que uma melodia não seja uma linguagem verbal (e, portanto, não possa ser chamada de algo intraduzível), uma mesma música não tem o mesmo sentido para todos que a ouvem. A música ativa em cada um que a ouve emoções, lembranças, fantasias e históricos culturais próprios de cada um, o que também explica porque alguns podem amar uma música ou odiar outra. Ainda assim, há algo de universal na música, talvez por compartilharmos de um grande repertório musical comum e ter alguma ciência de que repertório é esse pode ajudar a saber escolher que música escolher para que momento de seu jogo ou para ele como um todo.

Pense em um jogo de estilo épico medieval, por exemplo. Se ele se pretender como um jogo mais sério e histórico, sobre batalhas contra exércitos, o estilo musical desse jogo vai ser praticamente dominado por fanfarras e músicas que lembrem essa ambientação de batalha, com melodias bastante dramáticas, com grandes variações melódicas que combinem com o clima grave e "épico" desse tipo de jogo. Um jogo que já deslize para o lado da fantasia poderá combinar esse tipo de ambientação com temas mais alegres ou melodias misteriosas. Um jogo mais infantil terá melodias mais simples, animadas e repetitivas, expressando um clima mais alegre, com ritmo mais acelerado. Jogos de suspense precisam de um tipo de música mais lento, com eventuais acelerações em momentos de maior tensão e jogos de som que podem simular efeitos de sussurros ou de sons não muito claros que ajudem a imergir o jogador na atmosfera de que a qualquer momento algo pode ocorrer e jogos futuristas podem fazer um uso mais elaborado de músicas eletrônicas e sons computadorizados. E dentro de todos esses estilos haverá momentos em que você precisará de músicas mais agitadas (seja para cenas mais alegres quanto sequências de ação) ou mais lentas e melancólicas (para momentos mais tristes emocionais).

Nunca se esqueça de que música está inserida no tempo, no espaço e na cultura e fazer uma boa pesquisa acerca da ambientação do seu jogo nunca é pecar demais. Se você quiser fazer algo que se passe na Idade Média por que não ouvir músicas do período e tentar simular esse estilo de musicalidade no seu jogo? Seu jogo se passa na Seul contemporânea? Não deixe de colocar músicas à moda estilizada e dançante do k-pop, por exemplo. E mesmo se seu jogo se passa em um mundo completamente ficcional, tente pensar em um período e um local da história da Terra que mais se aproxime do que você quer e ouça músicas desse período ou melodias de sagas ficionais parecidas e tente usar isso como base para compor sua própria musicalidade para seu jogo. Nada impede também que você brinque com a musicalidade do jogo também de forma irônica ou ajudando a construir uma reviravolta. E se a tela título e as músicas das primeiras partes te derem um clima de um jogo animado e infantil, mas de repente ocorrer uma virada na narrativa e ela se tornar mais sombria, como um suspense? A música do jogo, obviamente, precisa acompanhar essa virada e pode ser uma ferramenta para compor ela. Música não precisa ser só um suporte, mas pode ser uma ferramenta e um dispositivo fundamental para contar sua história e criar o conceito do seu jogo.

Apenas a título de exemplo, convido você a ouvir essa música, uma das músicas recentes preferidas minhas. Ignore a letra e preste atenção apenas na melodia, na entonação da voz. Essa é uma música que possui uma "pegada" mais acústica, você consegue ouvir as cordas do violão sendo tocadas claramente. A modulação da voz é soprada, em um tom rouco, quase como um sussurro e mesmo no refrão não há grandes prolongações de notas, como é comum em baladas românticas, sobretudo com um teor mais dramático. Isso, junto com os murmúrios e todo o conjunto, dá à música um aspecto mais íntimo. Não é uma música que está sendo tocada para um grande público em um palco para impressionar com o alcance vocal. É uma música sendo tocada para uma pessoa diretamente, dentro de um quarto fechado, quase de improviso. Se você parar agora para ler a letra vai perceber que ela fala de coisas como memória, familiaridade, intimidade, há um alinhamento entre a melodia e o significado da letra.
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[box2 class=titlebg title=Ritmo e Narrativa]
Uma das definições mais consensuais sobre música é a de que ela é o som projetado no tempo. Som é um elemento importante na música, mas o tempo também é um elemento significativo. Tempo está bastante integrado à noção de ritmo. É fácil perceber que diferentes estilos de música possuem diferentes ritmos e alterar o ritmo de uma música, em geral, provoca uma mudança no mínimo suave de seu sentido. Um exemplo é se comparar as versões da Cindy Lauper e do Phil Collins da música True Colors. Enquanto a primeira versão, a original, sendo mais lenta e com notas mais prolongadas, soa mais melancólica, dando mais foco na parte da música que fala sobre se sentir deslocado e pequeno diante do mundo, a segunda versão, mais rápida e um tanto mais animada, apresenta uma abordagem mais alegre, com uma mensagem mais otimista de superação, mesmo que as notas e a letra sejam exatamente as mesmas em ambas as versões.

O que isso tem a ensinar a você, caro desenvolvedor de Jogos? Se estilos de música diferentes exigem ritmos diferentes, jogos de estilos distintos também demandam ritmos diferentes. Definir o ritmo de seu jogo é uma questão importante para seu planejamento e a execução do seu roteiro. E como é possível definir um ritmo mais lento ou mais rápido para o jogo? Através do encadeamento dos acontecimentos. Um jogo em que se passe um grande tempo entre um grande acontecimento e outro acaba sendo mais lento e se a sua história tiver uma abordagem mais suave, manter um espaço maior entre uma grande cena dramática e outra ajuda a deixar sua narrativa mais lenta. Diálogos longos também ajudam a desacelerar a narrativa, dando a ela um tempo próprio mais lento. O mesmo pode ser dito no sentido contrário: quando muitas cenas com reviravoltas e revelações acontecem rapidamente ou os diálogos são mais rápidos, objetivos e ligeiros o ritmo do jogo também é acelerado. Saber dosar isso é fundamental para que seu jogo não fique muito lento a ponto de os jogadores se entediarem nem muito rápido a ponto de as coisas acontecerem tão depressa que o jogador sequer tem tempo de entendê-las ou apreciá-las. Mais importante que tudo é pensar quando acelerar e quando desacelerar o ritmo da sua narrativa.

Pense na estrutura de uma canção, que geralmente começa mais lenta na introdução e na estrofe inicial e então começa a acelerar e ganhar mais dramaticidade na ponte para chegar a seu ápice no refrão e depois, após o refrão, voltar a desacelerar antes de sofrer uma nova aceleração gradual. O refrão é em geral o ápice de uma música, mesmo naquelas que não tem letra, é seu momento mais triunfal, podemos dizer. Você pode organizar o ritmo do seu jogo como o ritmo de uma música, mais lento em determinados pontos e mais acelerado naqueles que são os pontos-chave da sua história, como se fossem o refrão. Pode até mesmo fazer uso de ferramentas como as repetições que as músicas também tem para retomar informações ou referências de cenas anteriores e até jogar com isso, podendo contrastar o primeiro e o último encontro com um boss ao fazer com que eles possuam elementos similares entre si, o que pode ajudar a mostrar a evolução do seu personagem.

Chegamos então a uma reflexão fundamental para se pensar quando falamos de música: a capacidade dela de contar histórias. Seja em seu encadeamento de ritmos ou dos sentidos que as diversas melodias vão impondo, uma música bem estruturada é capaz de contar ela mesma uma história, mesmo que nenhuma palavra seja dita (ou entendida). Um exemplo muito bom para se perceber isso (e bem clássico) é essa composição de Mozart, aqui numa versão resumida porque a versão completa tem quase uma hora. Não vou pedir para você ignorarem a letra porque não vou supor que você tenha entendimento fluente de Latim, mas se tiver, ignore a letra. Preste atenção nas vozes, na melodia, no ritmo. Perceba como a música começa mais lenta e baixa, melancólica e vai progressivamente, a partir de certo ponto, ganhando um tom mais dramático. De repente a música tem uma virada e se torna muito mais rápida, com ataques mais ligeiros ao instrumento, o ritmo sobe e é quase possível sentir o coração acelerando junto. A sensação que esse segundo momento passa é de desespero ou eminência de algo. Desse desespero as vozes se elevam para algo que soa como um rogo, um pedido desesperado, todas essas mudanças em menos de três minutos de música. Eu poderia parar para analisar o resto, mas acho que você já deve ter pegado o que quero com esses minutos iniciais. A sobreposição de tempo e son, ritmo e melodia, cria uma sequência que começa melancólica, passa para a suspensão de algo prestes a acontecer e então alcança o desespero e o rogo. Essa música é um Requiem, ou seja, uma míssa fúnebre. Muitos dizem que essa peça teria sido composta pelo próprio Mozart para que fosse seu próprio Requiem, obcecado com a ideia de que morreria cedo (o que de fato ocorreu). A música transmite sentimentos sobre a tristeza diante de se perceber o quão curta é a vida, a antecipação enlouquecedora da morte, o choro desesperado pela vida, tudo isso está contido na melodia e na tessitura musical.

Parar para analisar e escutar alguns exemplos de estilos de música distintos pode ajudar a entender melhor e aprender outros estilos de narrativa e ritmo de narrativa. Música barroca, por exemplo, possui um estilo muito próprio, com estruturas bem demarcadas e que podem ser usadas para criar seu próprio ritmo de narrativa. Isso é algo que já se faz em literatura, por exemplo, em que livros e romances são escritos seguindo a estrutura de uma música e não a linearidade de Começo, Meio e Fim que histórias típicas costumam ter. Não é uma receita de bolo e não há como explicar um meio como fazer uso de ferramentas da música para compor seu roteiro, mas isso não impede que você escute, pense, experimente. Se você conseguir criar sua própria fórmula, pode ser o diferencial que faça seu jogo se sobressair entre outros. Que tal tentar?
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[box2 class=titlebg title=Dica Bônus:]
Música erudita, folclórica, barroca, popular ou, em geral, músicas de mais de cem anos ou que sejam propriedade coletiva de um povo costumam ser elementos de domínio público. Que tal integrar elas nos seus projetos? Claro, sempre credite as fontes de onde você as conseguiu, mas por que não dar a seu jogo passado na Idade Moderna músicas da própria Idade Moderna?
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