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Fina Porcelana

Iniciado por Misty, 20/01/2017 às 20:10

20/01/2017 às 20:10 Última edição: 22/04/2023 às 02:13 por Misty

Fina Porcelana

Spoiler
Todos os dias eram praticamente os mesmos. Já havia perdido a conta de quantas vezes eu o vi atravessar àquela porta, sempre carregando consigo uma velha valise, o mesmo olhar melancólico nos olhos e um doce aroma que exalava de suas roupas. Tudo funcionava como um ritual que jamais poderia ser quebrado.

Assim que estivesse do lado de dentro da loja, ele virava a plaqueta da porta, dizendo que o negócio estava aberto. Logo em seguida, ascendia as luzes e deixava a sua valise atrás do balcão. Para todas as pessoas que passavam em frente à loja, eram apenas gestos comuns, simples ações de um homem tentando ganhar a vida. Mas, para mim, era muito mais do que apenas isso. Era a rotina mais agradável que alguém poderia ter.

Por mais que ele estivesse rodeado de várias outras como eu, não podia deixar de notar a solidão que aquele homem transmitia. Carregava um sorriso automático pendurado em seu rosto, mas por dentro o seu coração estava partido em mil pedaços. Eu sempre analisava, mesmo que distante, todos os seus movimentos. Por mais que eu quisesse, não era capaz de colocar os meus sentimentos de lado, não conseguia deixar de pensar em como poderia ajudá-lo.

Palavras de conforto despontavam de todos os lados, mas eu sabia que não era disso que ele precisava. Dia após dia eu pensava em perguntá-lo, de forma singela, tudo o que eu gostaria de saber. "Você está bem?". "Como se sente hoje?". "Você sentiu a minha falta?". Mas era algo que eu jamais conseguiria.

Havia dias onde ele simplesmente sentava em sua cadeira e trabalhava, sem dizer uma palavra sequer. Os cabelos negros caíam sobre a testa, os olhos castanhos compenetrados, enquanto as suas mãos macias e delicadas sabiam exatamente o que estavam fazendo. Eu poderia observá-lo por horas, dias, até mesmo meses se fosse preciso, mas eu jamais me cansaria de fazê-lo. Durante muito tempo, esses dias repletos de preciosos momentos se repetiram, e eu os acompanhei com carinho, mas jamais imaginei que tudo mudaria de forma tão voraz e repentina.

Em um certo dia que já não me lembro mais, o sino da porta tocou, e aquilo só poderia significar uma coisa. Era uma cliente. Eu nunca me preocupei muito com as clientes que apareciam em sua loja, normalmente eram apenas crianças, ou senhoras com uma idade mais avançada e um sentimento de nostalgia. Não fazia diferença, apesar de sorrir gentilmente, ele só tinha olhos para o que elas traziam para ele. Mais trabalho. Poderia ser desde uma perna quebrada, um vestido rasgado ou até mesmo um rosto com a maquiagem apagada por conta do tempo.

Mas, dessa vez, não foi uma senhora que aparecera, muito menos uma criança. Era uma jovem e bela mulher. Sobre o seu corpo esbelto, carregava um vestido de renda branca muito parecido com o meu. Levava presa aos cabelos uma fita de seda azul, que contrastava com a pele clara e os lábios vermelhos. Por um momento eu cheguei a cogitar a ideia de que ela fosse uma de nós, mas alguma coisa nela me dizia que eu estava enganada, só não saberia dizer o que era.

Os dois conversaram brevemente, por conta da distância, eu não pude ouvir o que eles diziam, mas sabia que era algo agradável, pois nunca havia visto ele sorrir daquela forma. Depois de alguns minutos conversando, ele se dirigiu até a estante onde eu ficava e pegou uma das caixas que ali estavam, logo em seguida a levou até a mulher. Ela parecia feliz com o que havia recebido dele, tirou algum dinheiro de sua pequena bolsa e entregou a ele com um sorriso meigo em seu rosto, logo em seguida deixou a loja.

Em um primeiro momento, nunca imaginei que aquela cena seria o motivo dos meus maiores pesadelos que viriam nas noites seguintes. Todos os dias antes de fechar, ele dava uma volta pela loja. Com um pequeno espanador de pó feito de penas de alguma ave qualquer, limpava as prateleiras diligentemente. Tinham noites em que ele conversava conosco. Não eram assuntos muito importantes ou nada do tipo, e eu mesma só podia ouvir o que ele dizia quando estava bem próximo de mim, mas o doce som de sua voz era o suficiente para me fazer esperá-lo pacientemente no dia seguinte, dia após dia.

Na mesma noite em que a bela mulher visitou a loja, ele sequer se importou em fazer a limpeza das prateleiras. Pegou a sua velha valise, virou a plaqueta indicando o fim do expediente e atravessou a porta da loja logo após apagar as luzes sem olhar para trás. Aquela foi a primeira vez que eu pude perceber que tudo estava mudando.

Outros dias seguiram, cada um diferente do outro. Não sabia mais o que iria acontecer, tudo o que eu havia conhecido sobre ele estava desmoronando aos poucos. A rotina que ele seguia e me trazia felicidade já não existia mais, e as visitas da bela mulher eram cada vez mais frequentes. O homem solitário de olhar gentil se transformava, aos poucos, em um homem de olhar apaixonado e de coração remendado. Eu acreditei que podia esconder tudo o que sentia, mesmo que estivesse odiando-o por um lado, por outro eu não conseguia deixar de pensar em como ele ficaria daquele momento em diante.

Ainda assim, continuei fazendo o que sempre fiz. O observava, distante, pensando se um dia ele seria capaz de ver tudo o que estava acontecendo, e principalmente se eu seria capaz de contar para ele tudo o que eu sentia. Foram dias difíceis, mas nada que eu não pudesse aguentar. Eu era forte, ele me fez forte. Acreditei nisso até o dia em que ele não apareceu na loja.

Não podia pensar em outra coisa além de uma tragédia. Ele jamais deixou de ir até a sua loja, mesmo quando doente, sempre esteve presente. Aquele lugar era como sua segunda casa, não havia nada em sua vida que ele trocaria. Ao menos era dessa forma que acontecia, até o dia em que aquela mulher apareceu. Eu não podia chorar, não podia gritar e muito menos chamar por ele. Sentei-me e esperei com toda paciência que podia ter, aguardei até que ele voltasse, mas eu nunca imaginei que a espera duraria tanto tempo.

Após uma semana sem que ele aparecesse, eu passei a acreditar que alguma coisa havia acontecido. Ele estava tão doente que não podia se levantar, havia sofrido um acidente muito grave, ou qualquer coisa que o impedisse de nos visitar. Acreditei nisso por um tempo, até que meu pensamento mudou depois que o segundo mês de espera havia passado. Aos poucos eu conseguia fazer o que eu sempre quis, conseguia esquecê-lo.

Meus motivos para continuar ali, esperando, já não faziam mais sentido e não tinham mais importância que um dia tiveram. Estava eu, presa naquele lugar, as prateleiras empoeiradas e as caixas ao lado da minha já haviam perdido um pouco da cor por conta do sol. O propósito da minha existência já não existia mais. Resolvi que era a hora de dar um jeito em tudo, se eu não pudesse tê-lo, ninguém seria capaz de me ter em seu lugar.

Eu sabia que seria difícil, mas tentei com tudo o que estava ao meu alcance. A minha caixa estava muito próxima da borda da prateleira, eu estava no lugar mais alto da estante. Não poderia sair de lá de dentro, mas eu não me importava. Impulsionei o meu corpo para frente e o bati contra a parede da caixa. Ela balançou por alguns segundos, mas não foi o suficiente para fazê-la cair. Tentei mais uma vez, mas com toda a força que alguém como eu poderia ter. Não foi muito, mas meus esforços foram o suficiente para rasgar o plástico da caixa onde eu estava, e para que o meu pequeno corpo despencasse da prateleira mais alta.

Não sentia dor, ou talvez apenas não a percebesse, pois, nenhuma dor seria maior do que a que sentia em meu peito muito antes da queda. Não a entendia, talvez ela sequer fosse real, mas a angústia queimava mais do que o fogo. Apesar da minha dedicação em terminar com toda a agonia, nada havia mudado. Estava eu, jogada ao chão, olhando para o teto da antiga loja de bonecas, mas sem ter o que eu mais queria. Nunca mais pude ouvir o som do sino da porta tocar, muito menos sentir o doce aroma de suas roupas.

A quantidade de poeira que se acumulou sobre meu pequeno corpo era inimaginável. Depois do quinto ano esperando, o teto da loja era a única imagem que acreditei existir. Mantive a mesma posição durante dez anos, desacreditada que alguma coisa pudesse mudar. Porém, mais uma vez, tudo se transformou repentinamente, sem que eu imaginasse.

Durante uma tarde tranquila, como todas as outras eram, como todas as manhãs e nem um pouco diferente das noites que se passaram nos últimos dez anos, ouvi um som que acreditei que jamais ouviria novamente. O sino da porta havia tocado. A luz do sol invadiu o lugar com um pouco mais de intensidade. Naquele momento, não sabia o que fazer, estava tão apreensiva e ainda assim não podia mover o meu corpo.

Ouvi alguns passos, pela quantidade de diferentes sons e intensidades, parecia ter ao menos três pessoas dentro da loja. Consegui identificar duas vozes. O tom doce de uma voz feminina, e um tom ainda mais delicado de uma voz masculina. Eu sabia que havia ouvido aquelas vozes em algum lugar antes, mas elas estavam tão diferentes do que me lembrava, não eram as mesmas que pensei ter ouvido no passado.

Pequenos passos se aproximavam de mim. Não podia me mexer, e a poeira sobre mim era tanta que me impedia de ver com clareza que gostaria. Contudo, notei um pequeno rosto que me observava de cima. Era um rosto sereno, os cabelos lisos e negros estavam caídos sobre os ombros. Era uma garotinha. Ela trajava um pequeno e gracioso vestido de renda branca, assim como o meu — que não estava mais tão branco como antes — e uma fita vermelha amarrando os cabelos. Por um breve momento cheguei a cogitar a ideia de ela ser uma de nós, mas justamente por estar naquela situação me lembrei de já ter cometido esse erro antes. Ela tinha uma feição delicada, tão doce e inocente quanto as feições que ele carregava em seu rosto, no passado.

A garota que me observava se inclinou para frente e chamou por alguém. Ela não mencionava nenhum nome em específico, mas repetia a todo momento com sua voz aguda a palavra "pai". Pude ouvir mais passos, mas dessa vez eram passos firmes e fortes. Logo em seguida, consegui captar o rosto de um homem um pouco mais distante e iluminado pela luz do sol que entrava pela porta.

Os cabelos negros com alguns fios grisalhos despontando aqui e ali caíam sobre a testa. Os olhos castanhos me olhavam fixamente, a barba malfeita dava um ar mais velho para o seu rosto, mas eu jamais o confundiria. Ele abaixou e eu senti suas mãos em meu pequeno corpo, apesar de não serem mais tão delicadas como antes, ainda eram macias, e o doce aroma que exalava de suas roupas era o mesmo que sentia dez anos atrás. Era ele. Ele finalmente havia voltado.

Se eu possuísse um, poderia jurar que os cacos do meu coração estavam sendo remendados, um à um. Ele levantou comigo em suas mãos e me virou para a terceira pessoa que estava na sala. Também não podia confundi-la. Era a bela mulher que fez tudo o que um dia amei mudar repentinamente. Ela sorriu para ele, mas não disse nada. Apesar de um pouco mais grave do que era antes, ele sussurrou, com sua voz doce e gentil:

— Como será que você veio parar aqui? — Ele olhava diretamente em meus olhos. — Vocês não fazem ideia do quanto eu senti falta de vocês.

As palavras dele ecoavam em meus pensamentos infinitamente. Eu era apenas uma boneca, nós vivíamos em mundos diferentes, tão distintos que ele nos trocou por uma boneca do mundo real. Mas eu posso dizer, com toda certeza, que os dez anos que tive que esperar para estar novamente em seus braços valeram cada segundo. Pena que ele jamais poderá me ouvir dizer que o amo.
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Muito boa história, com palavras rebuscadas e inteligentes, no meio do texto que eu entendi do que se tratava. Me lembrou a relação do Andy com seus brinquedos no Toy Store.

Tive que parar a leitura pra pesquisar o significado de valise no google aushshuahusa

Enfim, história incrível, como sempre, seus trabalhos são magníficos !

Uma leitura muito agradável, a riqueza dos detalhes ajudou na indagação... Quem será que está narrando a história? Será uma admiradora oculta do homem que ali estava? Será um animal que observava? no meio da história comecei a ligar os pontos, mas ainda pensava que eram anjos de porcelana ou algo assim, e, de fato lembrou a ligação do Andy no Toy Story mesmo...

Parabéns pelo ótimo conto xD
Anyway
See yaa'
.

Concordo com eles. O texto tá excelente. Ele ficou rico em detalhes e longo, mas não ficou cansativo de ler, pelo contrário, dava vontade de terminar e ver do que se tratava. A ideia de ser uma boneca não me veio durante o texto inteiro, da metade para o fim é que comecei a considerá-la :D

Espero mais textos, viu? o/

Citação de: Selitto online 20/01/2017 às 20:22
Muito boa história, com palavras rebuscadas e inteligentes, no meio do texto que eu entendi do que se tratava. Me lembrou a relação do Andy com seus brinquedos no Toy Store.

Obrigado pelo comentário! Fico feliz em saber que gostou.
Eu sequer lembrava de Toy Story, mas acho que é um tanto diferente as relações. Aqui se tratava mais de amor, paixão, enquanto no desenho era algo mais de carinho e afeto, como uma família.

Citação de: Shephiroth online 20/01/2017 às 20:39
Tive que parar a leitura pra pesquisar o significado de valise no google aushshuahusa

Enfim, história incrível, como sempre, seus trabalhos são magníficos !

Uma leitura muito agradável, a riqueza dos detalhes ajudou na indagação... Quem será que está narrando a história? Será uma admiradora oculta do homem que ali estava? Será um animal que observava? no meio da história comecei a ligar os pontos, mas ainda pensava que eram anjos de porcelana ou algo assim, e, de fato lembrou a ligação do Andy no Toy Story mesmo...

Parabéns pelo ótimo conto xD
Anyway
See yaa'

Que bom que gostou. Essa foi a intenção sobre o narrador, deixar aquela dúvida de quem seria.  :XD:

Citação de: Manec online 21/01/2017 às 09:25
Concordo com eles. O texto tá excelente. Ele ficou rico em detalhes e longo, mas não ficou cansativo de ler, pelo contrário, dava vontade de terminar e ver do que se tratava. A ideia de ser uma boneca não me veio durante o texto inteiro, da metade para o fim é que comecei a considerá-la :D

Espero mais textos, viu? o/


Obrigado, moço. A ideia era deixar pistas durante o texto, para o leitor ir considerando a ideia das bonecas.
Quanto a mais textos, eu juro que vou tentar, mas eu sou preguiçoso demais para escrever textos assim. hahahaha
Obrigado. <3

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Obrigado pelo comentário! Fico feliz em saber que gostou.
Eu sequer lembrava de Toy Story, mas acho que é um tanto diferente as relações. Aqui se tratava mais de amor, paixão, enquanto no desenho era algo mais de carinho e afeto, como uma família.

Da fato aqui a relação é mais amorosa, lá é mais de amizade do garoto ser dono deles, me lembra o 3 onde ele fica adulto e os brinquedos ficam esquecidos.. Só que no fim é sempre feliz rs, de qualquer maneira lembra, mas não digo que é a fonte de inspiração.

Revivendo apenas para dizer que eu dei uma ajeitada no texto. :XD: