Limiar - Finalizada

Iniciado por Moon[light], 17/11/2013 às 23:18

17/11/2013 às 23:18 Última edição: 05/08/2014 às 20:04 por Moon[light]


"Foi quando me encontrei com aquela serpente", talvez dissesse caso perguntassem quando foi que tudo começou. Mas isso não seria muito mais do que uma mentira.
A verdade era que tudo começara muito antes, num tempo que em que as memórias não penetravam direito. Era, porém, inegável, que todos os problemas haviam começado após o encontro com a serpente. Se perguntassem, portanto, quando todos os problemas começaram, poderia seguramente dar aquela mesma resposta.
Entretanto, para dever de entendimento, não convém começar daí a história da garota chamada Emile Kato, de seus problemas e de seu contato com o mundo que havia do outro lado.

Um garoto que a salvou.
Uma serpente mágica.
Uma organização terrorista.
Um desejo.
Se qualquer um desses elementos fosse removido, talvez nada disso tivesse acontecido e muitas dores de cabeça tivessem sido evitadas. Mas não foi assim que aconteceu.
Agora, começo a contar como realmente tudo se sucedeu.
Em uma última nota, "Emile Kato" e "a narradora dessa história" são uma única entidade.
Um.
  Dois.
   Três.
    Começa.



Spoiler
Se alguém tentasse prever que algo anormal aconteceria naquele dia, e apostasse nisso vinte e cinco centavos, essa pessoa ficaria vinte e cinco centavos mais rica no fim do dia, porém ninguém jamais faria isso, pois, para todos os efeitos, aquela era uma manhã perfeitamente normal. O Sol nascera no lugar certo, os telefones funcionavam e até mesmo os relógios marcavam o horário correto. Tão correto, de fato, que um deles, na hora em que havia sido programado, começou a tocar. Primeiro foram apenas soadas leves, como pequenas batidas numa xícara. Logo, eram quase pancadas num sino.
De baixo de algumas cobertas, uma mão se esticou para bater no telefone. Não era uma mão grande, muito menos uma mão com garras ou tentáculos. Era apenas uma mão normal de uma garota normal. Se havia algo de especial nela era o fato de que aquela mão era minha. As cobertas também eram minhas, assim como o despertador e o quarto. E quando, depois de uma pancada bem aplicada, o despertador parou de tocar, o silêncio também era meu.
Naturalmente, não havia como aproveita-lo. No fim das contas, se um despertador toca, é obrigação da pessoa que o programou se levantar. Por um momento, enquanto ainda estava deitada, queria não ser essa pessoa. Mas o destino não é tão gentil, e minha identidade não tão problemática para que eu conseguisse muda-la com tanta facilidade. Ou ao menos era o que eu achava sobre a última parte, mas isso não importa agora. O que importa agora é que, sendo eu a pessoa responsável por programar o despertador, cabia a mim o dever de "se levantar". Não se tratava de um ato de coragem ou de responsabilidade, mas de simples relação contratual. O despertador tocava, eu me levantava. Era o nosso combinado.
No fim, por mais que os meus desejos dissessem o contrário e as cobertas tentassem com todas as suas forças me agarrarem, consegui sair da cama. Meu corpo estava dolorido, meus olhos pesados, meus cabelos bagunçados. Olhei para o meu imperdoável companheiro contratual e o sorri.
— Você não perdoa, não é?
Abri o armário e as gavetas e peça a peça escolhi minhas roupas. Nada demais, porém. No fim das contas, eu não esperava me encontrar com ninguém especial enquanto estivesse usando aquelas roupas, então acho que era justificável não me preocupar demais com elas.
Dito isso, acho que se algum aficcionado por moda me visse, provavelmente ficaria horrorizado e tentaria me despir e me colocar dentro de outros panos. Mas não tinha jeito. Não importasse o que eu escolhesse para vestir, provavelmente isso aconteceria. Bem, na verdade não, afinal seria estranho que alguém saísse tirando minhas roupas no meio da rua. Pelo bem ou pelo mal, a vida não é um anime ecchi.
Acho que estou divagando demais. De volta aos trilhos.
Depois de me vestir, escovar os dentes e pentear o cabelo, desci para cozinha. Meus pais ainda estavam dormindo, provavelmente, então tive que fazer meu café sem barulho. Em outras palavras, nada de liquidificadores. Não que eu pretendesse usar um, mas limitações são limitações. Fui pelo caminho mais simples. Torradas, manteiga, café e uma maçã. Nada demais, como eu falei.
Os relógios marcavam algo por volta das nove horas. Faltava uma hora até minha aula começar. Tempo o suficiente. De casa até a faculdade, usando o metrô, não demorava mais que uns vinte minutos. Em outras palavras, havia acordado na hora certa.
Parabéns, Emile.
Se bem que quem deveria ser creditado era o despertador, afinal, ele acordou antes de mim para me tirar da cama. Ou talvez ele nem dormisse. Talvez devesse perguntar um dia desses. Não que esperasse que ele fosse responder. Falta de cordas vocais não ajuda na fala.
Quando estava saindo de casa, ouvi passos descendo as escadas. Ao me virar para trás, lá estava a minha mãe. Ela era menor do que eu, algo bastante impressionante já que eu mesma não era exatamente enorme, tinha cabelos curtos, usava óculos por cima de olhos puxados.
— Bom dia – ela me disse.
— Bom dia.
— Já vai sair?
— É. Acordei cedo e resolvi aproveitar. Acho que vou andando do metrô até a faculdade.
Ela desceu até perto de mim, segurou minha camisa e ficou mexendo na gola por uns momentos. Quando terminou, abriu um sorriso.
— Você está animada hoje – ela disse.
— Estou?
— Tem algum motivo para isso?
— Acho que eu dormi bem.
— Entendo, entendo. Vai trabalhar hoje?
— Vou sim. Mas não devo chegar tarde, não, se tudo der certo.
— Não, tudo bem. É que eu e seu pai vamos sair e só vamos voltar de noite.
— Algo que eu deva saber?
— Nada demais. Vamos visitar um amigo dele que vai se mudar. Acho que ele está indo para os Estados Unidos ou algo assim. Vamos jantar lá.
— Certo então. Nesse caso, acho que vou jantar fora. Tudo bem por você?
— Tudo bem.
— Estou indo agora. Bom dia, mãe.
— Juízo.
Ditas as despedidas, amarrei meus tênis e lá fui eu, desbravando um mundo fascinante numa jornada valorosa.
Era o que eu gostaria de dizer, porém isso seria uma grande mentira. A menos que você considere dez minutos de caminhada pelas ruas de uma cidade grande uma jornada valorosa. E se você faz isso, provavelmente tem sérios problemas, portanto, por favor, experimente sair um pouco mais de casa. Não que eu tenha o direito de me meter na vida alheia, mas, ei, só estou tentando ajudar, ok?
De um jeito ou de outro, naquela manhã a cidade estava... normal. Não normal como num filme de terror em que as coisas estão estranhamente normais e você fica esperando o monstro aparecer e começar a destruir tudo. Mais na linha de normal normal. O trânsito estava pesado e o ar seco. Não chovia tinha algum tempo, então a cidade parecia mais laranja do que em outros dias, mas isso não era nada notável.
Enfim...
Àquela hora o metrô não estava lotado. Consegui sentar sem ter que empurrar ninguém e até mesmo deu para ficar vendo o que passava nas televisões instaladas no trem. Não que tivesse nada de particularmente interessante lá, mas descobri que pessoas não explodem no vácuo e que a Vênus estava em Aries, portanto aquele seria um dia de grandes mudanças e de uma decepção romântica. Aquele era um dia em que Vulcano não deveria estar particularmente feliz e Fobos, Eros, Deimos e Adrestia estariam se reunindo à mesa para conversar sobre suas conquistas. Não sei onde Harmonia e Anteros ficam nisso tudo, mas tenho certeza de que alguém pensou nisso.
— Com licença – alguém do meu lado disse.
Só aí notei que estava na estação final. Era aí que eu deveria descer, portanto, foi o que eu fiz. Corri para fora do vagão antes que as portas se fechassem e no processo esbarrei em alguém.
— Desculpa! – falei para ela.
Depois disso, saí da estação correndo com mais cuidado e segui andando até a faculdade. Eram vinte minutos de caminhada por um trecho tranquilo. Algumas pessoas costumavam fazer jogging dentro do campus, outras preferiam ciclismo. Um trecho pelo qual eu costumava passar estava em obras, então tive que cortar caminho por outro lugar. Não que isso fosse um problema considerando quão aberto era o campus. Era uma das coisas que eu gostava nele. Não havia limites definidos para as faculdades, bastava um pouco de vontade e se poderia chegar a qualquer lugar.
Era como uma fita de Möbius.
Cheguei ao prédio da minha faculdade quinze minutos adiantada. Achei melhor ir direto para a sala ao invés de ficar passeando.
Ou ao menos era o que eu teria feito se não tivesse me encontrado com ela no meio do caminho.
Ela era minha veterana, uma garota de cabelo multicolorido, roupas largas e jeito de menina. Era uma visão engraçada ela andando pelos corredores da faculdade. Parecia meio deslocada, uma existência à parte de tudo. Assim que me viu no corredor, ela começou a acenar e correr na minha direção.
Com alguma sorte ela não esbarraria em mim.
Só um pouco de sorte.
Vamos, não custa nada...
Não.
A meio metro de mim, ela tropeçou em seus próprios pés e, como um avião desgovernado, me derrubou no chão. Os olhos todos caíram em cima da gente, as risadas foram inevitáveis.
No fim, não havia escapatória. Certas coisas são definidas pelo próprio destino.
— Foi mal – ela me disse. – Acho que eu tropecei.
— Eu também tropeçaria se andasse com os sapatos desamarrados... Sua vida seria bem mais simples se você aprendesse a dar nós.
— Eu sei amarrar meus sapatos. Eu não amarro para deixar eles livres.
E para esbarrar em mim, aparentemente.
— Acho que seus sapatos não se importariam em ficar um pouco presos, não é? Na verdade, acho que eles adorariam isso. Vamos lá, prenda seus sapatos!
— Ninguém gosta de ficar preso!
— Então use botas!
— Aí eu perderia a desculpa para esbarrar em você!
Como eu pensei.
Era como estar numa comédia barata cujo humor depende de refrãos, piadas e chavões. Exceto que eu não recebia para fazer parte disso. Pelo contrário, pagava o caro preço da minha moral e imagem.
O mundo certamente é um lugar inflexível.
— De qualquer jeito, eu queria falar com você – minha veterana disse.
— Sobre o quê?
— Aqui não. Podemos ir na cafeteria?
— Faltam cinco minutos para começar a aula.
— Não faz mal chegar atrasada uns minutos. Além do que, seu professor sempre chega tarde, não é?
— Isso é.
— Então pronto. Não vou demorar, eu prometo.
Provavelmente iria me arrepender daquilo, mas mesmo sabendo disso, aceitei. Ao menos um pouco de café me faria bem.
A cafeteria não estava lá muito cheia. Muitos dos alunos já deviam ter ido para as salas então até algumas das (poucas) mesas estavam livres. Eu pedi um café e pegamos uma das mesas.
— Então, o que você queria?
A veterana me olhou como quem queria dizer alguma coisa, mas não sabia exatamente como então ficava reformulando as frases na cabeça até encontrar as melhores palavras. O que provavelmente era o caso. Depois de quase um minuto assim, ela sorriu e começou a falar.
— Como vai o seu trabalho?
— Meu trabalho? Ah, vai bem. Peguei uns alunos chatos semana passada, mas nada demais. Por quê?
— É que então, lá onde eu trabalho estão contratando. Meu chefe me perguntou se eu sabia indicar alguém e na hora pensei em você. Você estava planejando sair de casa no ano que vem, não é?
— É, estava, sim. Mas com o que eu ganho não daria para me sustentar decentemente.
— Então, por isso eu pensei em você. O trabalho é turno completo, mas só entra à uma da tarde e não fica longe daqui. Se você quisesse, podia até ir andando e chegaria a tempo. E o salário é bem melhor do que você ganha. Não daria para alugar um apartamento sozinha, mas se você apertasse um pouco e seus pais te dessem uma mão, provavelmente teria como se virar.
— Não sei. Eu quero sair de casa para parar de depender dos meus pais. Pedir dinheiro para eles para morar fora não faria sentido para mim.
— Achei que vocês se dessem bem.
— Achou certo. Eu não quero sair de casa por isso.
— Pelo que então?
— É complicado.
Ela fez um muxoxo, mas não questionou.
— As entrevistas vão ser hoje de tarde – minha veterana falou. – Se quiser ir, me manda uma mensagem que eu te passo o endereço.
— Eu não devia enviar o currículo antes?
— Já fiz isso por você.
— Desde quando você tem o meu currículo.
A veterana de cabelos multicoloridos e roupas largas riu e, se levantando, foi saindo.
— Ei! Onde você conseguiu meu currículo?
— Se você conseguir o emprego eu prometo que te conto!
Ela nem se deu ao trabalho de olhar para mim quando disse isso. Francamente. Terminei meu café e fui para a sala. Passava cinco minutos das dez, logo minha aula iria começar. Com um pouco de sorte, chegaria antes do professor.

Minha sorte, porém, não estava no seu auge naquele dia, como eu descobriria em pouco tempo...
[close]

Spoiler
Após uma boa quantidade de acontecimentos que não devem ter parecido os mais interessantes para qualquer um que não seja eu, finalmente cheguei à aula. Imagino que comparando com uma aventura épica, esse parece um avanço bastante trivial e pouco excitante, mas fiquem tranquilos, as partes agitadas já chegam.
Como eu mencionei, aquele não era exatamente meu dia de sorte, portanto naturalmente meu professor já estava na sala quando cheguei, o que me garantiu um olhar bastante severo, que, eu já sabia, seria o mesmo com que ele olharia a minha monografia. Era tudo que eu precisava...
Tentei chamar o mínimo de atenção possível indo direto para uma cadeira. E enquanto vasculhava em busca de um lugar, vi um garoto sentado num canto perto da janela. Se tivesse que descrever ele, diria que era o exato oposto da minha veterana. Se ela era um elefante indiano no serrado, ele era um cameleão numa floresta densa, o tipo de pessoa que ninguém percebe a menos que esteja procurando por ele. A cadeira ao lado dele estava vaga, então achei que não fosse má ideia me sentar ali.
— Bom dia – murmurei para ele enquanto me sentava.
— Ah, oi – ele respondeu.
Ele parecia alguém que havia acabado de acordar quando disse isso, com um sorriso um pouco confuso e aquele jeito desconcertado de olhar.
— Considerando a sua resposta, vou supor que você não dormiu direito essa noite – falei. – Por acaso passou a noite inteira acordado procurando pornografia na internet? Ou quem sabe tenha saído por aí pulando de telhado em telhado tirando fotos de garotas dormindo.
— Eu não sou algum tipo de personagem pervertido de um anime dos anos 1990, sabia?
— Oh.
Não nos falamos muito mais pelo resto da aula. Não estava a fim de provocar o professor mais do que já havia provocado chegando atrasada. Não podia me dar ao luxo de arriscar uma reprovação e um semestre a mais. Ou talvez fosse mais correto dizer que eu não queria arriscar um semestre a mais. Na prática, era a mesma coisa, acho. Enfim. Como nada de relevante aconteceu nessa aula e em meus limitados conhecimentos de narrativa eu acredite que falar sobre lógica modal não seja algo muito apreciado em pleno segundo capítulo de um livro, vou adiantar isso e ir para o próximo evento razoavelmente interessante.
E esse aconteceu no restaurante da faculdade. Eu costumava almoçar lá todos os dias por que a variação de cardápio me agradava, além de ser uma ótima oportunidade de interação social e criação de laços que me ajudariam bastante caso tivesse que despertar a personificação do meu Ego. Obviamente, isso não vai acontecer. Sinto muito se você tinha alguma expectativa ligada a isso.
De todo modo, era costume daquele garoto almoçar lá também. E agora notei que ainda não dei o nome dele e é bastante problemático ficar chamando ele de "garoto", já que mais alguém que poderia ser chamado assim está prestes a entrar na história e confusão é a última coisa que quero causar no momento. Portanto, saibam que o nome do garoto com que me encontrei na sala era Daniel. E para evitar problemas futuros, irei dizer o nome de todas as personagens que forem introduzidas daqui em diante, considerando que isso não seja um spoiler e que eu saiba qual é esse nome.
Adiante.
Como sempre almoçávamos juntos e aquele era um dia completamente normal, fomos andando juntos até o restaurante. Fazia Sol e havia pouco vento, deixando o dia ainda mais quente. Sentia como se eu fosse derreter dentro das minhas roupas.
— Como você aguenta ficar de casaco nesse calor? – perguntei a Daniel, que estava usando um casaco naquele calor.
— Costume, eu acho. Além disso, não está tão quente assim.
— Oh. Suponho que máquinas do futuro mandadas para assassinar o líder da rebelião sejam feitas para resistir a altas temperaturas. Sem dúvidas, isso explica muito bem a situação. Me desculpe pela pergunta estúpida.
— Pode parar com as referências esdrúxulas. Eu só me dou bem com o calor. Isso não é tão estranho assim. Um monte de gente prefere o calor.
— Você não parece uma pessoa assim.
— Não?
— Não. Você parece uma pessoa que gosta de dias frios. Tenho certeza que você se daria muito bem esquiando no gelo.
— Talvez eu devesse te dar um gelo.
"Dar um gelo"? Quantos anos você tem?
Uma gíria tão antiquada. Um rapaz de tempos tão modernos. Absurdo!
Ou talvez ele tenha apenas resolvido fazer uma piada com a minha própria frase.
Que intelecto afiado!
— Como anda o seu trabalho? – ele me perguntou.
— Bem. Sem nenhum problema considerável, pelo menos. Na medida do possível, é um bom emprego. Apesar disso, estou pensando em ver outro.
— Não estão pagando bem?
— Não é isso. Bem, é isso, na verdade. Eles pagam bem, mas não o bastante para eu morar sozinha. Acho que esse emprego novo pode ser melhor para isso. Uma amiga me conseguiu a entrevista e eu pensei, bem, posso ao menos tentar. Se não der certo, tudo bem. E você? Trabalha?
— De certo modo.
— De que modo?
— São meio que bicos. Trabalhos que faço quando eles aparecem.
— Um freelancer?
— Pode-se dizer que sim.
Estranho.
— Engraçado. Você não parece o tipo que faria freelancing. Por alguma razão, é mais fácil te imaginar como um empregado de alto escalão de uma empresa ou alguma coisa do tipo.
— Acha mesmo?
— Acho, sim.
Talvez seja só uma primeira impressão permanente. Quem sabe...
Um momento depois, já estávamos na porta do restaurante, praticamente. Por alguma razão, parecia que o tempo funcionava de um jeito diferente naquele curto trecho de espaço que separava meu prédio e o restaurante.
Quando nós dois chegamos, quase não havia mais lugares onde sentar. Tivemos que caçar uma mesa enquanto carregávamos as bandejas e só encontramos porque, por sorte, alguns colegas já estavam lá e na mesa que ocupavam ainda sobravam três lugares. Os três que estavam sentados eram velhos conhecidos e uma aluna mais nova.
E agora, as descrições dos três.
O primeiro deles, alto e forte, era um dos nossos veteranos que por razões que não convém contar cursava algumas matérias conosco. Sempre usava camisas sem mangas e bonés, todo mundo o chamava de Coiote por causa de uma camisa do Coiote do Papa-léguas que ele usou uma vez. Ao lado dele, estava um rapaz mais baixinho, meio gordinho, de óculos e jeitão de amigo de todos, cabelo espetado, roupas largas e um escapulário ao redor do pescoço. Esse era o Dênis. Por fim, a terceira pessoa que estava naquela mesa era uma garota de dezessete anos, cabelos curtos assim como seu vestido preto, o tipo de pessoa para quem os param para olhar na rua. Bom, até eu pararia se visse, já que não é comum ver garotas com quase um metro e oitenta andando por aí em vestidos curtos. De todo modo, ela se chamava Paula e era nossa bixete.
E com isso, termino a descrição dos três. Espero que tenha ido bem nisso.
Cumprimentamos os três de longe e nos sentamos com eles.
— Quanto tempo, vocês dois! – Denis disse. – Andaram sumidos. Ficaram ricos e esqueceram dos pobres?
Disse o garoto rico.
— Não é nada disso – Daniel falou. – Eu ando almoçando mais tarde e a Emile me acompanha.
— Alguma razão para isso? – Coiote perguntou.
— Eu gosto da comida fria daqui.
— Para alguém que dorme nas aulas isso é mais do que suficiente. Agradeça e seja feliz ou talvez eu tenha que cortar sua comida pela metade.
— Metade?
— Talvez um quarto.
— Como você quer que eu sobreviva.
— Quem falou em sobreviver?
Todos começaram a rir. Paula enrolou o braço ao redor do meu pescoço e me puxou para perto dela. Por um momento, eu pude jurar que meu pescoço ia partir ao meio...
— Como eu senti falta de vocês! – ela disse. – Almoço nenhum tem graça sem vocês!
— Isso é exagero seu – eu falei. – Agora eu preciso realmente respirar...
— Ah, certo. Desculpa. Às vezes eu me distraio.
— Para o bem da minha saúde e da paz mundial, por favor, tome mais cuidado. Você provavelmente conseguiria quebrar o pescoço do Hulk desse jeito.
— Não exagera – Denis disse. – Ninguém consegue quebrar o pescoço do Hulk.
— O Super-Homem consegue – Coiote falou.
— E lá vamos nós de novo – Paula comentou.
Os dez minutos seguintes se resumiram a uma série de discussões confusas e interconexas, passando da gravidade de Krypton ao empuxo magnético de uma supernova e por fim parando num comentário particularmente notável sobre como Nietzsche perderia uma queda de braços contra Gandhi. O que Gandhi estaria fazendo numa disputa com Nietzsche, porém, ninguém soube explicar.
De fato, o mundo é cheio de mistérios.
Acontece que quando toda essa estranha linha de conversa chegou ao fim, foi a vez do silêncio desconfortável chegar, cheio de manha, sentando conosco e ficando ali nos encarando, se espalhando, como se não tivesse nada para fazer. Por alguma razão, ele gostava de fazer isso. Mas Denis não gostava do silêncio desconfortável desde que ele começou a acompanha-lo toda vez que tentava conversar com uma garota, e por isso tentou se livrar dele na primeira chance que teve.
— Ei, Dan, ouvi dizer que você está saindo com alguém – foi a maneira que ele encontrou de assustar o silêncio.
Os olhos e ouvidos de todos na mesa se voltaram para aquela conversa como se fosse algo que jamais tivessem ouvido antes. O que provavelmente era o caso.
Na verdade, nem eu tinha ouvido isso antes.
Vai ver é uma piada.
— Quem te disse isso? – Daniel perguntou.
— Um amigo meu. Ele disse que te viu andando com uma garota num shopping um dia desses.
— É sério? – Paula perguntou. – Você está saindo com uma garota?
— Por que você está tão surpresa com isso?
— É que eu sempre achei que você, sabe, que você fosse gay.
Coiote e Denis começaram a gargalhar enquanto Daniel encarava Paula como se tivesse acabado de descobrir que ela era uma alienígena disfarçada que pretendia se infiltrar no grupo para separa-lo.
— O que te fez pensar isso? – Daniel perguntou-a.
— Sei lá, você nunca saiu com ninguém, sabe? Sempre ficou todo lá, na sua. Você não pode me culpar por pensar isso.
— Cara, me diz que alguém gravou isso! – Dênis disse.
— Qual é! Eu errei, ok? Acontece.
— Mas é verdade? – eu perguntei. – Você está mesmo saindo com uma garota?
Daniel desviou o olhar de mim como se estivesse tentando esconder alguma coisa. Talvez realmente estivesse, mas, no fim, acho que ele desistiu da ideia.
— É, é verdade – ele disse.
Dessa vez, ninguém riu. Houve algumas tapinhas nas costas e umas exclamações surpresas. Teve até um gritinho de alguém, mas risadas, nenhuma.
— Quem é ela? – Coiote perguntou. – Alguém que eu conheço?
— Ela é bonita? – Denis perguntou.
— Não, você não conhece ela. E, sim, ela é bonita, embora eu tenha a impressão de que não deveria dizer isso para você.
— E como você conheceu ela? – Paula perguntou.
— É... complicado.
— A gente tem tempo.
— Nem todos – eu disse.
Peguei minha bandeja, minha mochila e me levantei.
— Eu tenho que ir – falei. – Foi mal sair assim. Não quero chegar atrasada.

E com isso, eu saí do restaurante. Agora, suponho que vocês estejam se perguntando qual parte disso tudo foi importante para o desenvolvimento dessa história. Não posso revelar isso, mas garanto que o desenrolar desses eventos foi o responsável por boa parte de tudo mais que aconteceria comigo nos dois dias que se seguiriam.

De todo modo, assim que saí do restaurante, corri até o ponto de ônibus na expectativa de pegar o próximo e chegar cedo ao trabalho. Para o meu azar, porém, nenhum ônibus apareceu depois de quase vinte minutos esperando. Estava quase na minha hora. Dificilmente iria conseguir chegar a tempo, mas precisava tentar. Se o ônibus não vinha, teria de ir a pé.
Eram três quilômetros de onde eu estava até o metrô. Tinha meia hora para chegar ao trabalho. Apertei os cadarços dos meus tênis, prendi firme a mochila e lá fui eu.
Para minha sorte, tanto meu fôlego quanto minha velocidade eram acima da média. Com bastante esforço, eu poderia facilmente ultrapassar uma bala numa corrida de cem metros. Ou a menos conseguia ser mais rápida que a maioria das pessoas, mas tenho certeza de que vocês entenderam o que eu quis dizer. Fui correndo pelo trajeto inteiro, ouvindo todos os barulhos da cidade passando pelos meus ouvidos.
Buzinas, motores, conversas, pássaros, eletricidade, portas, mangueiras, cachorros, vento, folhas, insetos, passos, batimentos cardíacos, freios, bicicletas, sirenes, semáforos, toques de celular, óleo fritando, caminhões descarregando produtos, sinetas de portas, choro de crianças. O mundo era cheio de sons. O mundo era feito de sons. Mesmo que eu fechasse os olhos, eu sabia que tudo estava lá. E só precisava continuar correndo. Sem parar. Sem pensar. Esquecer tudo e correr. Correr até o fim do mundo era o que eu queria fazer e depois continuar em frente, atravessar a estratosfera e correr até a Lua.
Mas eu não podia fazer isso. Infelizmente, um contrato de trabalho exige um empregado esteja na Terra para que possa ser reconhecido como um funcionário. Por essa e outras razões que não importam, tive que parar no metrô. Ainda tinha mais ou menos vinte minutos. Se nada mais desse errado, ia chegar na hora.
Naturalmente, como eu disse que estava sem sorte naquele dia, tenho certeza de que vocês já imaginam que mais coisas deram errado. E se imaginaram isso, parabéns, recebam meus mais sinceros e sarcásticos parabéns.
O que deu errado dessa vez, como talvez alguns possam ter previsto, é que o metrô também demorou a chegar. Segundo as conversas entre as pessoas que esperavam o trem chegar, alguém havia caído nos trilhos do metrô e levaria bastante tempo até que os funcionários conseguissem colocar a situação, com o perdão da piada, de volta nos trilhos.
Em outras palavras, inevitavelmente iria chegar atrasada.
Enquanto estava parada esperando e imaginando uma maneira de justificar meu atraso para meu chefe, em algum lugar as primeiras notas da marcha imperial começaram a tocar. Depois de dois segundos, notei que esse lugar era meu celular. Era uma mensagem da minha veterana com o endereço do emprego dela.
Não bastasse enviar meu currículo sem me informar, me mandou o endereço sem que eu pedisse. Intrometida e forçosa, definitivamente. Mas até que isso é fofo. De todo modo, eu já estava atrasada mesmo e o tal endereço não era difícil de acessar. Já que essa era a situação em que eu estava, podia faltar ao trabalho e ir fazer a entrevista. Poderia pensar numa explicação mais tarde.
Esperei o metrô voltar a funcionar e lá fui eu.
O tal local da entrevista não era perto do centro e o prédio ficava um tanto quanto isolado do resto da vizinhança, mas isso não era um grande problema. Me apresentei na portaria e eles me indicaram para onde deveria ir. Havia um bom número de pessoas além de mim atrás daquele emprego. A maioria adultos com famílias, vestidos em ternos e com livros de autoajuda em baixo dos braços.
Fácil demais.
Fiquei quase uma hora esperando o entrevistador chegar e no momento em que ele finalmente apareceu, começaram as "dinâmicas". Jogos entre pessoas. Simulações incompetentes de cenários reais. Deveriam ser difíceis, desafiadores, forçar as pessoas a usar suas mentes para superar os problemas. Na verdade eram só chatas. Depois das dinâmicas, o entrevistador começou a chamar um a um para conversar. Ordem alfabética, naturalmente. Levou uma hora até chegar em mim. Fiquei dez minutos na sala respondendo perguntas bobas até ser liberada. Infelizmente, aquilo não era o fim da maratona de testes chamada entrevista de emprego.
Espero que o salário valha a pena...
Já estava escuro quando o entrevistador dispensou todas as pessoas prometendo ligar no dia seguinte para os selecionados. Àquela altura eu nem sequer me importava mais. Estava cansada, estava com fome, precisava ir ao banheiro. Fiquei cinco minutos andando pelo prédio da empresa procurando um banheiro que funcionasse e não estivesse num estado indescritível de sujeira. Ainda passei na cantina que tinha dentro da empresa, peguei uma garrafa de água e um pão de queijo. Comi e só aí fui embora.
A essa altura, todos os entrevistados já tinham ido embora. Eu estava andando sozinha na rua, no meio da noite. Quando eu cheguei, não tinha notado, mas os postes ali não funcionavam e com a falta de casas próximas, a rua inteira parecia abandonada há anos. Estava mais frio do que eu esperava que fosse estar e eu não tinha levado nenhum agasalho. Provavelmente, se eu corresse conseguiria me esquentar, mas não quis arriscar chamar atenção. Nunca tinha ido ali e nem sabia nada sobre a região. A última coisa que eu precisava era ser assaltada.
Fui andando. Refiz o caminho que tinha usado para chegar no prédio, mas, por alguma razão, não achei a estação em que tinha descido. Provavelmente tinha errado em algum ponto. Sem pontos de referência ou conhecimento, me restava procurar alguém para pedir informação. Comecei a procurar pessoas, porém nenhuma aparecia. Ninguém, absolutamente ninguém. Eu até entendo poucas pessoas quererem passar por uma região mal iluminada a noite, mas tinha um metrô e uma empresa perto. Tinha que ter alguém. Devia ter alguém. Mas, por alguma razão, nem uma alma viva aparecia enquanto eu procurava.
Peguei meu celular e liguei para minha veterana. Encontraria um lugar para ficar e pediria para ela me encontrar depois. Devia ter feito isso desde o começo. O telefone chamava, chamava e sempre caía na caixa postal. Droga. Não sabia mais o que fazer. Mandei uma mensagem para  o Daniel com o meu endereço, pedi para ele me buscar.
Por que eu fiz isso?
Minha cabeça não estava no lugar. Era só isso. Eu estava nervosa por estar perdida. Era só isso. Queria chegar logo em casa, me enfiar no banho, jantar e esquecer aquele dia. Tudo estaria melhor amanhã. Era só questão de chegar em casa. Eu só não sabia como.
Fui atrás de um lugar para ficar. Uma lojinha, lanchonete, até um bar servia. Só não queria ficar no meio da rua mais um minuto. Mas não tinha nada. Nada. Nenhum tipo de negócio estava aberto. Era como se, de repente, todo mundo tivesse decidido que era hora de ir dormir.
Azar tudo bem, mas isso já é demais.
Continuei procurando e procurando até que cheguei a uma estação de metrô, a mesma pela qual tinha chegado ali. Quase morri de alívio na hora. Ia mandar uma mensagem para o Daniel dizendo que não precisava mais ir me buscar, mas estava sem sinal. Tudo bem. Faria isso na próxima estação.
Ao menos era o meu plano.
Só que a estação estava vazia também. Não só não tinha nenhum usuário, mas nem os funcionários estavam em qualquer lugar a vista.
Definitivamente, isso não é normal.
Fui direto para as catracas, passei meu cartão e acabou que ele foi aceito. Desci as escadas correndo, torcendo para ver ao menos uma pessoa em algum lugar ali. Nada. Nem nas plataformas, nem em lugar nenhum. Meu celular ainda estava sem sinal. Eram quase oito da noite. A essa altura, se Daniel tivesse visto minha mensagem, ele já devia estar chegando ali. Ainda ia ter que explicar essa situação para ele.
Droga, Emile, o que deu em você?
Dez minutos e nada de um trem aparecer ou alguma pessoa aparecer. Nada! Nada, droga! Tinha alguma coisa errada. Era como se eu estivesse presa em algum tipo de filme de terror.
O que diabos eu fiz para isso acontecer?
Nessas idas eu já nem me importava mais em chegar em casa. Tudo que eu queria era ver alguém, qualquer um. Qualquer um.
Eu não quero ficar sozinha!
E então as luzes da estação piscaram. Não uma nem duas delas. Todas elas. Como num filme antes do monstro aparecer.
A heroína está sozinha na estação de metrô. As luzes falham uma, duas, três vezes e não acendem mais. Ela pega seu celular e o usa como lanterna. Ela está assustada, seus batimentos disparados, sua respiração pesada. Ela ouve um barulho e grita. Alguma coisa se arrastando. Alguma coisa muito grande. Ela vai se afastando com cuidado, tentando não fazer barulho. Uma luz aparece no escuro. Verde, brilhante. Como olhos. A heroína derruba o celular. Ela quer gritar, mas se segura. Não pode fazer barulho ou o monstro irá vê-la. Tem que ficar calada. Totalmente calada. Andando, ela bate as costas numa parede. Não tem mais volta. As luzes estão se aproximando. O celular caído no chão ilumina um pedaço do monstro. A heroína vê escamas. Verdes, grandes, brutais. As luzes piscam e um vislumbre do monstro aparece.
Longo, grande, assustador, terrível.
Só impressões. Nada claro. Ainda não é hora de matar. Por enquanto, só sustos, só medo. As pernas da heroína falham, ela se senta no chão. Ela quer desaparecer, escapar do pesadelo. Ela já consegue ouvir a respiração do monstro. Ele está perto. A heroína tapa a boca com as mãos para segurar o grito entalado na garganta. Ela só quer que tudo aquilo acabe logo. Um pedido tão simples. Ela está desesperada. O medo tomou a cena. As luzes piscam novamente, dando outro vislumbre da criatura.
Uma boca sedenta, presas horrendas, olhos vorazes.
Os barulhos param. Depois de alguns instantes, a heroína recupera um pouco de esperança. Ela acha que o monstro foi embora. Ela acha que pode escapar. Esperança. Não muita, mas é necessária. Fazer acreditar. E então, quando as luzes se acendem, a heroína vê o monstro. Suas mãos falham e o grito escapa.
Era uma serpente, mas não podia ser real. Uma serpente jamais poderia ser tão grande. Ela mal cabia na estação. Algo como aquilo não podia existir. Jamais. Era um pesadelo, só um pesadelo. Num pesadelo, aquilo poderia existir. Não de verdade. Nunca. Nunca. Aquela criatura, aquela serpente negra rajada de veios, aquela serpente cujos olhos vertiam sangue, aquela serpente não podia ser real. Algo como aquilo não podia existir segundo as regras do mundo.
Era grande demais.
Era assustadora demais.
Mas estava ali, bem à minha frente. Eu a via com meus próprios olhos, claramente como via a mim mesma. Ela não podia ser real, mas eu a via.
Nada daquilo fazia sentido.
Eu só tinha uma certeza.
Eu ia morrer ali.
[close]

Spoiler
Era o fim. Eu só conseguia imaginar que aquele era o meu fim. Que eu ia morrer ali, devorada por uma serpente que não devia existir. De todas as mortes que eu conseguia imaginar, essa era provavelmente a mais estranha e cruel.
Eu não queria morrer assim.
Eu não queria morrer.
Eu não queria...
A serpente abaixou a cabeça e me encarou. Ela não tinha olhos, mas eu sabia que ela estava me vendo. Era algo que eu sentia dentro de mim, como agulhas furando minha espinha.
Tinha uma palavra. Eu não conseguia me lembrar de qual era, mas tinha uma palavra que eu queria lembrar.
Por que eu estou pensando nisso?
A serpente abriu a boca. Eu fechei os olhos.
Eu não precisava ver aquilo. Ao menos esse direito eu podia me dar. Mas se pudesse mesmo desejar uma coisa, se tivesse alguém me ouvindo e eu pudesse gritar alguma coisa, só tinham duas palavras.
Salve-me.
Mas ninguém estava lá para me ouvir. Eu estava sozinha. Por isso fechei os olhos e esperei que tudo acabasse logo. Era tudo que eu podia fazer. Desejar, torcer. Se era para morrer, que pelo menos não doesse.
Qual era a palavra mesmo?
— Meu nome...
Eu pensei ouvir alguém falar comigo, como uma voz lá no fundo na minha cabeça. E era uma voz como uma fotografia de criança.
Quem está aí?
— Qual é o meu nome?
A voz insistiu como se realmente estivesse lá. Mas não tinha ninguém ali. Só eu. Eu e a serpente. Talvez...
Eu abri os olhos. A serpente ainda estava ali, parada, me encarando com seu rosto sem olhos, suas escamas brilhando como se me questionassem. Ela não me atacou. Ela não me matou. Eu estava viva.
— Qual é o meu nome? – a serpente me perguntou.
Uma cobra estava me perguntando qual era seu nome. Uma cobra no meio de uma estação de metrô abandonada estava me perguntando qual era seu nome.
"Decifra-me ou devoro-te", foi tudo em que eu consegui pensar. Uma esfinge. Mas eu não sabia a resposta. Como eu podia saber? Como eu podia saber como aquela serpente se chamava? Por que tinha uma cobra me perguntando esse tipo de coisa? O que ela queria comigo? O que fazia ela pensar que eu sabia a resposta?
Calma! Eu preciso ficar calma! Calma? Como diabos eu posso ficar calma?
Eu não sabia a resposta. E porque eu deveria saber? O que isso tudo tinha a ver comigo? Isso não faz sentido. Nada disso faz sentido! Por que você está me perguntando isso? Isso não tem nada comigo! Não é problema meu! Você não é problema meu!
— Qual é o meu nome? – a serpente gritou.
A serpente se recolheu e atacou. Corri para longe antes que ela me atingisse. A parede atrás de mim se espatifou. Parte do teto cedeu sobre a serpente. A cauda dela veio contra mim. Eu pulei. Ouvi mais concreto cedendo, tentei correr para longe, atravessar as catracas, subir as escadas, talvez escapar para a rua. A serpente veio atrás de mim, me cercou, esmagou as catracas, se recolheu e deu um bote. Escapei. Não faça ideia de como, mas escapei. Corri. Alguma coisa agarrou minha perna, me puxou para o ar. Quando percebi, estava pendurada de cabeça para baixo, de frente para a serpente.
— Qual é o meu nome?! – a serpente rugiu.
— Eu não sei! – eu gritei de volta. — Eu não sei qual é seu nome!
A serpente chiou furiosa. Meu corpo subiu. Jogada. Eu tinha sido jogada para o alto pela serpente. Dentes e escuro. Milhares, milhões de dentes num túnel escuro.
Por que eu não consigo lembrar qual é aquela palavra? Droga...
Se eu pudesse voar, eu poderia sair dali.
Era um pensamento estúpido.
Era uma ideia idiota.
Humanos não podem voar.
Quando jogados para o alto, humanos só podem cair.
E morrer.
"Decifra-me ou devoro-te".
Por que tinha que ser assim?
Por que uma pergunta tão complicada?
      "Qual é o meu nome?"
Como eu podia saber?
Eu não quero morrer assim...
   Alguém, por favor...
Nos filmes, quando alguém está caindo, o herói aparece e salva essa pessoa. Mas eu só estava caindo. Não tinha heróis. Não tinha ninguém. Só eu e a serpente sem nome.
E então o universo tremeu.
Não como num terremoto, não como numa explosão. De repente, o universo parecia todo estar tomado de uma febre, como se um corpo estranho o tivesse penetrado. O ar girou e rugiu, o chão trincou.
Como se algo a tivesse atingido, a serpente foi jogada contra a parede, atravessou o concreto e desapareceu.
Eu caí. Não na garganta da serpente, não no chão. Nos braços de alguém. Eu estava salva. Eu estava salva. Céus, eu estava realmente salva. E então eu olhei para o rosto da pessoa que me segurava.
Perdi o ar.
— Daniel?
— Desculpe a demora – ele disse. – Você conseguiu se meter num lugar bastante estranho dessa vez.
— O quê? Como? O que está acontecendo? Aquela cobra... como você...
— Ele explica depois – alguém disse.
Eu nunca tinha ouvido aquela voz antes. Era uma garota. Cabelos escuros, olhos escuros, roupas justas, uma faca na mão. A garota se aproximou de Daniel e de mim. Daniel me deixou no chão.
— Ela está certa – ele disse. – Eu explico tudo mais tarde. Isso ainda não acabou.
— O quê? – eu perguntei.
Mas ele tinha razão. Ainda não tinha acabado. A serpente reapareceu do meio do cimento, corpo retesado, postura violenta.
— Eu vou chamar a atenção dela – Daniel disse para a garota. – Cuida da Emile. Toma cuidado.
— Não sou eu quem vai encarar o monstro gigante – a garota retrucou.
Daniel mudou de postura. Mais que isso. Tudo mudou. Era quase como se não fosse a mesma pessoa, como se o camaleão tivesse se tornado numa águia. Uma águia que agora se preparava para atacar. Ela estendeu as garras, abriu as asas e voou ao ataque.
E então ele atacou a serpente. O soco atingiu a serpente que estava a mais de trinta metros em menos de um segundo. O impacto balançou a estação inteira.
Rápido demais.
Forte demais.
Um humano jamais poderia fazer algo assim. Mesmo que treinasse por anos e anos, mesmo que jamais descansasse e dedicasse sua vida apenas a se tornar mais rápido e mais forte, um humano não alcançaria aquele nível. Era simplesmente impossível, algo além dos limites de pessoas comuns.
Mas ele havia feito. Bem ali, na minha frente, ele havia feito.
Em meio a uma estação vazia, ele havia atingido uma serpente gigante e forçado ela a recuar. Ele podia derrota-la. Se ele continuasse tentando, ele poderia matar a serpente. Como nas histórias.
A serpente sabia disso. Ela sabia que aquela pessoa diante dela podia mata-la. Toda criatura sabe disso. A sensação de encarar um inimigo que se sabe ser seu predador natural.
Porém, ela não tentou lutar contra ele. A serpente não tentou se defender dos socos ou feri-lo de volta. Ela o ignorou. Ela o ignorou e se atirou na minha direção.
Um trem passou ao meu lado. Se tivesse me atingido, eu estaria morta. Contudo, eu estava viva. Olhei para o lado. E então, eu gritei.
A garota que estava ao meu lado era o alvo. Foi ela quem a serpente atacou.
Meu estômago quis se atirar pela minha garganta.
Toda a metade do corpo dela do umbigo para cima não estava mais lá. Partida ao meio. Rasgada. Devorada pela serpente em um único bote.
A serpente estava atrás de mim, preparada para uma nova investida. Ela iria me atacar dessa vez. Me atacar com a força que arrancou metade do corpo de uma pessoa como se não fosse nada.
Eu gritei.
Alguém me agarrou.
O trem passou outra vez, e outra vez me errou.
— Toma cuidado! – disse a voz que eu não conhecia.
Era a garota. A garota que havia sido partida ao meio. Ela havia me puxado. A garota que eu tinha visto morta um segundo atrás havia salvado minha vida.
Um pesadelo. Era um pesadelo. Não havia outra possibilidade.
Mas da cintura para cima ela estava nua. Da cintura para cima, como a parte que a serpente devorou.
Uma cidade vazia.
Uma serpente que pergunta seu nome.
Um garoto rápido e forte demais.
Uma garota que estava viva depois de ser rasgada ao meio.
Nada disso podia existir. Nada disso podia ser real. Então por quê? Por que eu estava vendo essas coisas?
A serpente atacou outra vez com a mesma força. Não havia tempo para desviar dessa vez. A garota me empurrou para trás dela. Por cima de seu ombro, eu vi quando Daniel apareceu em nossa frente, estendeu os braços e agarrou a serpente pela cabeça, estendeu seu braço direito e...
O vento explodiu. Se não fosse pela garota ter me agarrado, eu teria sido arrastada pela rajada de vento.
Do outro lado da estação, a serpente estava caída. Porém, ela ainda se movia. A serpente levantou a cabeça e olhou para mim. Mas ela não atacou. Não dessa vez. Ela apenas rastejou rapidamente para os trilhos, desaparecendo no túnel.
Ela tinha fugido. A serpente tinha fugido.
Daniel veio na minha direção. Não. Não era para mim que ele estava vindo. Era para a garota. Ele tirou o casaco e estendeu para ela.
— Você está bem? – ele perguntou-a.
— Já tive cólicas piores que isso – a garota disse.
Ela vestiu o casaco, tirou um elástico do bolso e prendeu o cabelo num rabo de cavalo.
— Como você consegue agir assim? – eu falei. – Você foi rasgada ao meio! Era para você está morta!
— Eu sou péssima nessa coisa toda de morrer – ela disse. – Além disso, eu não quero chamar atenção.
A garota apontou para trás dela.
Tinha um grupo de pessoas conversando ali. Perto deles, estava um guarda e mais algumas pessoas sentadas nos bancos. A estação toda estava cheia de pessoas. O teto, as catracas, as paredes estavam inteiras. Como um pesadelo. Mas não era. As calças da garota estavam encharcadas de sangue.
Aquilo tudo realmente tinha acontecido.
Meu estômago virou do avesso. Meus joelhos bateram no chão. O chão começou a rodar.
Minha cabeça doía. Doía! Doía! Doía!
— Respira, respira – uma voz me disse.
Inspirei. Aspirei. Inspirei. Aspirei. Fundo, me enchendo de ar, me esvaziando. Mante a cabeça no lugar. Tinha que manter a cabeça no lugar. Apenas ficar inteira.
— Ela está bem? – o segurança do metrô perguntou para Daniel.
— Eu estou bem – eu respondi.
Usei Daniel como suporte para me levantar e fingi um sorriso para o segurança.
— Foi só uma tontura. Acontece de vez em quando. Eu estou bem.
O segurança não questionou e foi embora. Me sentei no primeiro banco que achei. Queria enfiar minha cabeça entre as pernas, parar de respirar e esquecer toda aquela confusão. Céus, isso era tudo que eu queria.
Daniel se sentou ao meu lado, colocou a mão sobre o meu ombro e ficou parado ali, como se já estivesse acostumado com aquilo.
Um mentiroso sempre vai mentir. Um fingidor sempre vai fingir.
— O que... O que foi aquilo? O que aconteceu? O que é ela?
— As clássicas – a garota murmurou.
— Essa sua atitude não vai ajudar agora – Daniel disse.
— Certo. Faça do seu jeito então.
Aquela garota me encarava como se me detestasse. Havia uma raiva fria nos olhos dela que eu nunca tinha visto antes. Como se tivesse alguma coisa muito escura escondida dentro dela. Quando o olhar dela cruzava com o meu, sentia como se uma faca cortasse minha garganta.
— Quem é ela? – eu perguntei a Daniel.
— Eu estou ouvindo, sabia? – ela reclamou.
— Ei! – Daniel chiou. – Desculpe. Ela é meio difícil às vezes. O nome dela é Lavínia. Ela é minha namorada.
Qual era a palavra?
— Namorada? – eu perguntei.
Cabelos pretos ondulados, rosto fino, olhos grandes, corpo ágil. Como uma pantera. Bonita, ameaçadora. Mas, por quê?
— A coisa que te atacou – Daniel falou. – A serpente. Ela era uma anomalia.
— Anomalia?
— Sabe nas histórias em que há monstros que quebram as leis da natureza? Coisas como dragões, casas mal assombradas, vampiros, esse tipo de coisa? Essas criaturas, essas entidades, ou como preferir chamar, costumam chamar elas de anomalias. Falhas no sistema. Criaturas nascidas das dúvidas e do mistério e alimentadas pelas lendas e histórias.
— O quê? Vampiros? Está me dizendo que existem vampiros?
— Você não faz ideia... – a garota, Lavínia, disse.
Anomalias. Monstros. Esse tipo de coisa, essas criaturas que enchem as histórias de crianças, era real. Era como uma piada ruim, uma peça idiota pregada por algum programa babaca. Um monstro, uma serpente gigante, tão grande que nem cabia direito numa estação de metrô, no meio de uma cidade. Não era nem mesmo engraçado ou divertido ou qualquer coisa do tipo. Era só absurdo.
Toda aquela história era absurda.
— Como? Como essas coisas existem? Como eu nunca soube disso?
— Anomalias são... elas são complicadas. Na prática, para ser franco, elas não existem de fato.
— Você acabou de dizer que elas existem!
— Eu disse que era complicado. Sabe como quando acontece um terremoto? Você diz que o terremoto aconteceu naquele momento, mas não podia dizer que ele existia antes ou depois, certo? Como um fenômeno, você pode dizer que terremotos existem, mas eles só se realizam, eles só conseguem interagir com o mundo real, quando as placas tectônicas colidem. Anomalias são iguais. Você pode dizer que elas existem, mas elas só afetam o mundo real quando as condições estão certas. Poucas pessoas olhando, estar escuro, em alguns casos coisas mais específicas, como datas, climas, localidades, fases lunares. Tudo depende da história.
— Histórias?
— É como eu disse, anomalias são alimentadas por histórias e lendas. Quando alguém explica um fenômeno usando uma criatura ou uma divindade, ela está criando uma anomalia. Desse jeito. Elas são coisas criadas pela mente das pessoas.
Meu cérebro já estava rodopiando. Metade daquilo era impossível de entender. A outra metade, se eu me esforçasse muito, até conseguia abstrair. Eu  queria ir para casa. Mas eu tinha que saber tantas coisas.
— Então aquela serpente...
— Ela era uma anomalia. Não sei exatamente de que tipo, mas era uma anomalia, com certeza.
— E ela? – eu disse olhando para a garota.
— Não é educado falar dos outros como se eles não estivessem te ouvindo, sabia? – a garota reclamou. – É, eu sou uma anomalia também. Assustada?
Ela sorriu para mim como se quisesse me devorar.
— Como você sabe de tudo isso? – perguntei a Daniel.
Ele fez aquela cara de quem não sabia bem o que dizer e ficou girando ela por aí até provavelmente pensar num jeito decente.
— Eu sou um mago – ele disse como se fosse a coisa mais comum do mundo. – E eu protejo essa cidade de anomalias.
Quando ele falou isso, de cara, não consegui levar a série. Daniel era um mentiroso. Um mentiroso que sempre mentia. Uma mentira a mais não seria nenhuma novidade. Era apenas uma ocorrência natural, uma eventualidade, algo que simplesmente tinha de acontecer.
Porém, acreditar no que ele dizia explicava muita coisa.
As coisas impossíveis que ele acabara de fazer.
As explicações evasivas para as perguntas.
O cansaço quase constante.
As mentiras.
Tudo isso fazia muito mais sentido se eu aceitasse que aquela revelação continha uma verdade. Se a frase "eu sou um mago" tivesse valor de verdade positiva, então seria simples solucionar todos os problemas.
Ainda assim, simplesmente não tinha como não ser uma mentira.
Alguém como ele, uma pessoa que simplesmente desaparecia na multidão, não poderia ser um mago. Era só um garoto normal demais, simples demais, genérico demais.
O garoto que desaparecia na multidão e o garoto que derrotou a serpente.
O camaleão e a águia.
Não havia como esses dois serem a mesma pessoa. Era algo que eu não podia aceitar. Uma ideia inconcebível, inaceitável, impossível.
Mas naquela noite em que uma serpente gigante me atacara e uma garota amarra seu cabelo num rabo de cavalo após ser rasgada ao meio algo assim se tornava apenas mais uma ocorrência normal.
O impossível era possível. O mundo operava à revelia do sentido.
Era como se, de súbito, eu tivesse escorregado para outra realidade, uma com suas próprias regras e sua própria lógica. O outro lado de um espelho estranho.
Porém, não era nada disso. Não, a verdade era bem mais simples.
O mundo jamais tivera sentido. Eu apenas tinha tomado noção disso agora.
Literalmente, eu tinha despertado.
— Você disse que você cuida dessas coisas... dessas anomalias, certo? – eu perguntei. – Então, me diz, por que aquela serpente veio atrás de mim?
— É difícil dizer. Existem muitas possibilidades. Coincidência, maldições, algum aspecto familiar, o lugar, alguma atitude ou até uma ligação entre ela e você. Sem saber o que ela era não dá para dizer.
— A serpente... ela falou comigo.
— Falou?
— Foi só uma pergunta. Ela ficou repetindo o tempo todo "qual é o meu nome?".
— Uma anomalia sem nome? – a garota disse.
— Eu sei, é estranho – Daniel disse.
— Por quê? – eu perguntei.
— É como eu disse, anomalias se alimentam de histórias e lendas. Mas para isso, é preciso que elas identifiquem aquelas em que elas aparecem. Ás vezes por algum aspecto visual, por alguma característica ou poder, mas geralmente é mesmo pelo nome. Nomes são muito importantes, porque eles carregam associações e, portanto, poder. Se aquela serpente não sabia o nome dela, é possível que ele tenha sido roubado ou ela tenha sido forçada a esquecer.
— Então ela é ainda mais forte que aquilo? – a garota disse. – Que lindo. Era tudo que eu precisava.
— Vamos dar um jeito nela antes que ela se lembre do nome – Daniel falou. – Mas acho que antes disso seria melhor falar com o meu pai.
Daniel se virou para mim e me olhou com uma confiança esquisita, como se quisesse me convencer de alguma coisa com o olhar.
— Eu acho que você devia vir com a gente – foi o que ele falou. – Meu pai é um mago. Ele pode saber alguma coisa sobre essa serpente e porque ela te atacou. Se você puder dizer para ele como aconteceu tudo, tenho certeza de que isso vai ajudar a resolver essa situação toda.
Não só ele como também o pai dele era um mago. Aparentemente, naquela ocasião a senhora noite estava seriamente disposta a me surpreender, mas ao invés de me premiar com números da loteria ou um carro zero, ela optou por magos, serpentes e garotas imortais. O que vinha depois? Terroristas? Macacos?
Era problema demais para minha cabeça. Estava cansada. Estava irritada.
— Eu só quero ir para casa – eu falei. – Um banho gigante, um monte de chocolate e fingir que nada disso aconteceu. Não quero saber nada de serpentes, anomalias ou sei lá o que. Eu não sou uma maga ou um tipo de...  seja lá o que ela for.
— Ei! – a garota reclamou.
— Eu sou só uma mulher normal. Se eu me cortar, eu vou sangrar. Se alguém me bater, eu posso desmaiar. E se eu for partida em duas, eu não vou voltar. Na verdade, nem precisa ir tão longe. Eu não sou o melhor exemplo de resistência que tem. Não quero me meter com nada perigoso. Eu quase morri hoje. Desculpa, mas não. Eu vou pra casa.
Esperei Daniel dizer alguma coisa, porém tudo que ele fez foi aceder com a cabeça. Sem discussão. Meio decepcionante até.
— Pelo menos deixa eu te acompanhar até a sua casa – ele falou.
— Não precisa. Eu estou legal. E, depois de tudo isso, eu quero um tempo sozinha. Eu posso até não parecer, mas estou bastante abalada.
Isso era uma mentira.
Provavelmente.
— Tem certeza? – ele insistiu. – A maioria das pessoas entra em choque depois desse tipo de coisa.
— Não me subestime. Ouvir algo tão condescendente de alguém como você é particularmente ofensivo. Por favor, evite esse tipo de comentários.
Ele sorriu. No fim, ele acabou acreditando nisso. Ou ao menos quis fazer parecer que acreditava. Sei lá. Dali, eu fui direto para casa. Enquanto eu esperava o próximo metrô chegar, eu conseguia sentir os olhos daquela garota nas minhas costas. Se o trem tivesse demorado mais um pouco, acho que o olhar dela teria me furado. Por sorte, aquele não seria o dia da minha morte.
Embora aquela noite estivesse bastante longe de desistir de me surpreender, como eu descobriria em breve.
Mas isso é assunto para o capítulo seguinte.
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Eu realmente estou ficando muito babaca... ou muito velho. Você decide.

Algo que começou a escrever? Apenas continue. Continue mesmo, Moon. Acho que ainda não tive a oportunidade de te dizer isso, mas você é um escritor fantástico, embora já saiba, provavelmente. Enfim, gostei bastante do... Primeiro capítulo? Acho que posso chamar assim. De qualquer forma, ficou superinteressante, a começar pelo suspense que você causou e que se apoderou de mim. Eu simplesmente preciso saber o que aconteceu com a dita cuja e os desdobramentos que esse acontecimento implicará, haha.

Particularmente, adoro personagens como a Emile, que conseguem ser tão normais e, ao mesmo tempo, tão exóticos que mal sei definir. Ela parece ser uma garota desapercebida qualquer, sem importância no contexto, ainda que tudo, meio que naturalmente, se contextualize por ela. Contudo, certos elementos a incutem um ar diferente do convencional. Não sei exatamente o porquê, mas ela me lembrou a Aomame, uma personagem de um livro chamado 1Q84, do Haruki Murakami. Não sei se você conhece, mas se não conhecer, indico a leitura.

Em todo caso,espero que continue a escrever, pois fiquei curioso com o desenrolar da trama. Um grande abraço e vejo você por aí!

Kazuyashi.

1Q84 é um dos meus livros (ou série de) favoritos, então tem mesmo um pouco de Aomame e um pouco de Fukaeri nela, ainda que boa parte eu tenha pego da Senjougahara de Bakemonogatari. E fico muito feliz que tenha gostado. Muito mesmo.

Eu realmente estou ficando muito babaca... ou muito velho. Você decide.

Yo. Bumpando(?) o tópico para avisar que agora que terminei o segundo capítulo, que já está no tópico. Acabou ficando um pouco mais longo do que eu esperava, mas estou satisfeito com o resultado, considerando que terminei ele mais rápido do que pensei que fosse... De todo modo, é isso aí.

Eu realmente estou ficando muito babaca... ou muito velho. Você decide.

 Nossa cara, me ensine a escrever meu deus. *-*
Com certeza vou acompanhar a história até o final.
[user]Nocive[/user]


Não sei se eu saberia ensinar. Sou um péssimo professor. Mas, hey, obrigado. E desculpe pela demora em responder. Não queria fazer double post, então esperei terminar o capítulo 3 para postar.
Bem, o capítulo está aí.
Nos vemos.

Eu realmente estou ficando muito babaca... ou muito velho. Você decide.

  :'0': Nossa cara de todos com certeza esse foi o melhor capitulo até agora. Como já disse você é ótimo no que está fazendo e... Vou acompanhar sempre que puder.
[user]Nocive[/user]


Ok, isso é chato, é repetitivo, mas precisa ser feito novamente: Tú é foda, cara. Sério, muito bacana a historia, das melhores que vi por essas bandas. Estou seriamente pensando em comprar O jardim de todas as coisas, porque seu estilo já me ganhou aqui, haha.

Enfim, ótimo trabalho e vou acompanhar o desfecho desta historia com certeza! \o




@Nocive: Valeu. Foi um capítulo bastante divertido de escrever.
@Guilherme: haha. Não sei se é uma boa ideia, hein. O Jardim tem uns dois anos já. De lá para cá mudei pacas. E obrigado.

Eu realmente estou ficando muito babaca... ou muito velho. Você decide.

Hullo. Como o tópico chegou ao limite de caracteres, não vou ter como colocar os capítulos diretamente lá mais. Então vou deixar o link dos capítulos no Wattpadd no tópico principal e, enquanto isso, vou postando os capítulos nas mensagens de atualização.
Bom, é isso.

O mundo era todo sombras
Spoiler
Desci do metrô e corri para fora da estação. Àquela altura, pouco me importava o que qualquer pessoa poderia pensar ao ver uma garota saindo correndo no meio de uma estação lotada. Se quisessem chamar os guardas que chamassem, eu não ligava. Se eu pudesse chegar em casa logo, tudo bem. Valia o risco.
Chegar em casa. Era um objetivo simples, mas que naquele momento parecia algo praticamente impossível. O caminho parecia grande demais. O mundo parecia grande demais, cheio demais, barulhento demais. Não importava para onde eu olhasse, havia alguém ali, e uma sombra perto dessa pessoa. Havia sombras em todos os lugares. O mundo era todo sombras.
Eu continuei a correr até que meu corpo não aguentou mais, meus músculos pararam de responder e eu caí. Meus pulmões ardiam junto com a minha garganta como se eu tivesse engolido algo quente demais para mim, algo que agora meu corpo lutava para expelir.
Expandindo, explodindo.
Até o sangue no meu corpo fervia.
É como estar viva...
Se eu tivesse de dizer que estava bem, se eu tivesse de falar que não tinha acontecido nada, iria falhar. Falhar miseravelmente como uma criança que tenta esconder que roubou doce. Mesmo que eu tentasse com todas as minhas forças, qualquer pessoa iria saber que eu estava mentindo e eu não conseguiria não falar a verdade.
Então, por favor, todas as pessoas que estavam me vendo, nenhuma delas podia se aproximar da garota caída no chão. Que importa se ela está resfolegando e parece assustada? Deixassem-na em paz!
Se intrometer na vida alheia, olhar para os outros como se tivessem algum direito de julgar. Era sempre assim. Aquele tipo de olhar que jogava todas as culpas em cima de alguém, expurgava os maus do próprio corpo e os transferia irresponsavelmente para o alvo da vista. Era odioso. Era revoltante. Mas se isso significava que ninguém iria se aproximar, que fosse assim. Eu aguentaria todos os olhares de ódio do mundo só para ser deixada em paz.
Devo ter ficado caída ali por um bom tempo. Uma vez que minhas pernas melhoraram, me levantei e coloquei-as para trabalhar. Decidida a não parar até chegar em casa, disparei a correr. Cem, duzentos, trezentos metros. Eu poderia ter morrido com todo aquele esforço. Não seria exagero dizer que muitas pessoas morreriam por muito menos. Não eu, porém. Mesmo que eu corresse muito mais que aquilo que forçasse cada pedaço de mim a trabalhar a toda a sua potência, eu não iria morrer. Era assim que meu corpo operava. Eram as regras que ele seguia. E graças a essas regras, chegar em casa foi uma tarefa executada sem chamar mais atenção do que o estritamente necessário.
Depois de um dia problemático e cheio de coisas, depois de quase ser morta por uma serpente e descobrir que magia existe, eu estava outra vez pisando no limiar entre a minha casa e o resto do mundo. Procurei a minha chave na minha bolsa. E continuei procurando. E não parei de procurar, comecei a revirar minha bolsa, tirei tudo que tinha dentro dela para fora tentando encontrar aquela maldita chave, mas nada dela.
A chave não estava lá.
Mas um buraco estava. Um buraco bem no fundo da minha bolsa. Redondo e furado, vazado, tão grande que dava para ver o outro lado. Um buraco no fundo da minha bolsa. Provavelmente minha chave tinha caído dali.
Em outras palavras, estava trancada do lado de fora de casa.
Obrigado, fadas.
Demorou um pouco até eu perceber que nem tudo estava perdido. Ainda havia alguma esperança. Peguei meu celular e disquei o celular do meu pai. Esperei a ligação completar e...
"O número chamado está desligado ou fora da área de serviço".
Ainda não era momento para desespero, porém. Restava uma alternativa. Dessa vez, disquei o número da minha mãe.
"O número chamado está desligado ou fora da área de serviço".
Foi esse o momento em que percebi que tudo estava perdido. Não havia mais nenhuma esperança.
Definitivamente, aquele era um dia absurdamente azarado.
Certa história diz que uma vez por ano a sorte de alguém se inverte transformando-se em azar. Se essa história fosse verdade, aquele era provavelmente um dia desses.
Cansada, estressada, irritada e trancada do lado de fora da própria casa. Até meus pais chegarem, esse era meu destino. Ao menos, considerando que minha sorte normal não era exatamente algo de que alguém pudesse se orgulhar, eu tinha confiança de que mais nenhuma ocorrência estranha tomaria lugar naquela noite.
Era no que eu gostaria de acreditar, pelo menos.
Sem ter para onde ir ou qualquer coisa que fazer me rendi e fiquei sentada no limiar da porta esperando e olhando para o céu inestrelado.
Ei, Emile, que tal sair daí e dar um jeito de entrar em casa?
Não, Emile, não tem como. Não tem por onde escalar e nem por onde pular.
Ei, Emile, você podia pelo menos tentar.
Não, Emile, porque levando em conta tudo que aconteceu hoje em provavelmente cairia e quebraria alguma coisa que não ia ficar direito depois.
Nossa, Emile, como você está hoje.
Olha quem fala, Emile.
Olhei para o meu relógio. Eram quase oito da noite. Não sabia que horas meus pais iam chegar. Era até possível que eles não chegassem naquele dia. E se isso acontecesse, eu teria que dormir ao relento. E essa era a última coisa que eu queria naquele momento.
Levantei-me e me decidi. Era hora de encontrar um lugar para ficar. Procurei na minha lista de contatos o número da minha caloura loura favorita e disquei o número. Dessa vez pelo menos a ligação atendeu.
— Oi! – Paula gritou do outro lado.
Afastei o celular da minha orelha para evitar que meus tímpanos se suicidassem.
— Você fala alto demais... – eu disse.
— Desculpe – Paula disse, agora menos gritantemente.
— Apenas não faça novamente. Não sei a mais quantos desses meus tímpanos aguentam antes de serem destroçados.
— Vou lembrar disso.
Não. Você não vai.
— Deixando isso de lado, eu te liguei porque preciso te pedir um favor – eu disse.
— Um favor? Que tipo de favor?
— Eu meio que fiquei presa fora de casa. Na verdade eu fiquei presa fora de casa. E meus pais não vão voltar hoje. Estou sem um lugar para dormir.
— Ah! Sério? Caramba! Tudo bem, pode vir para cá! Você pode dormir no meu quarto.
— Não precisa de tudo isso. Posso ficar no sofá.
— Não, tudo bem. Minha cama é grande. Cabemos nós duas.
— Se você prefere assim...
— Eu faço questão.
— OK. Obrigada. Eu chego daqui a pouco.
— Tudo bem. Toma cuido, tá bom? Tchau.
E dizendo isso ela desligou o telefone. Oficialmente, não iria dormir ao relento naquela noite.
Parabéns, Emile!
Da minha casa até a casa da Paula eram quatro estações de metrô, uma baldeação, duas estações de metrô e um ônibus. Se nada desse errado, estaria lá em mais ou menos quarenta minutos.
Agora, imagino que vocês esperam que eu diga que aconteceu alguma coisa no caminho, não é? Algo como o aparecimento de alguma criatura estranha ou qualquer congênere. Bem, sinto informa-los de que, não, minha viagem até a casa de minha cara bixete foi até que bastante tranquila. Isso é, se você desconsiderar as cotoveladas e os apertos, porém para quem quase foi devorada por uma serpente gigante, aquilo era um alívio tremendo.
Da estação em que desci até a casa dela não era lá uma caminhada muito grande. Só alguns minutos andando. Nada demais. Já perto da casa, vi Paula vigiando a rua de sua janela. Ela provavelmente me viu, porque logo desapareceu da janela e antes que eu batesse, a porta abriu e ela apareceu.
Por favor, não pule em cima de mim.
Infelizmente ela não era capaz de ouvir meus pensamentos, portanto, ela pulou em cima de mim. Quase caí no chão. Se tivesse caído, provavelmente não levantaria mais, considerando quanto minha sorte estava contra mim naquele dia. Apesar de que eu tenho a impressão de que já disse isso ou algo bastante parecido. Sensação esquisita essa.
Ah, bem.
Onde eu estava?
Certo, certo. Paula tinha pulado em cima de mim e quase me derrubado no chão, o que teria sido ruim. Muito bem, prosseguindo.
— Cuidado... – falei para ela. – Você devia mesmo aprender a controlar essa força.
— Eu não sou tão forte assim.
É isso que você pensa.
— Mas, entra – ela disse. – Já jantou?
— Não. Aconteceram alguns... imprevistos essa noite.
— Melhor assim. Podemos jantar juntas!
O fato era que eu estava com fome e um jantar àquela hora cairia incrivelmente bem. Por isso e por algumas outras razões a possibilidade de recusar não apareceu na minha mente. Espero que me perdoe, senhora Modéstia. Deixei meus sapatos na entrada da porta e fui entrando. Logo na sala, os pais de Paula estavam assistindo TV no sofá. Aparentemente era a novela, considerando a quantidade de tapas e atores que por alguma razão não pareciam com pessoas dos estados que deveriam estar representando.
Se quiserem saber como é a sala da casa de Paula, só posso dizer que é uma sala normal de uma pessoa de classe-média alta. Se não sabe o que isso significa, por favor, ignore essa parte e imagine como a casa daquele seu amigo rico. Se você não tem um amigo rico, apenas imagine um monte de móveis e enfeites sobrando, uma televisão moderna e uma prateleira lotada de livros. Não é muito diferente disso. Mas como passei pouco tempo na sala, isso é uma informação completamente irrelevante. Por favor, ignore-a.
Indo direto para a cozinha, também cheia de móveis e enfeites sobrando, porém também com eletrodomésticos sobrando, Paula foi preparar o jantar enquanto eu colocava a mesa. E com preparar o jantar entenda-se colocar um prato no micro-ondas. Dois minutos depois estávamos comendo.
— Então – Paula começou entre um copo de água e uma garfada de macarrão – o que aconteceu?
— O quê?
— Para você estar aqui. O que aconteceu. Você parece bastante cansada, sabe?
Provavelmente parecia mesmo. Cansada e suja de pó, ainda por cima. Me pergunto como ela não ficou assustada ao me ver assim. Educação? Talvez. Não importa.
— É aquilo que eu te expliquei – eu disse. – Meus pais não estão e eu perdi minha chave porque aparentemente minha bolsa tem um buraco e eu não tinha notado isso.
Provavelmente porque ele apareceu hoje enquanto eu estava tentando não ser morta por uma serpente gigante.
— Eu precisava de um lugar para ficar e você foi a primeira pessoa em que pensei.
— Jura? – ela disse quase como se estivesse cantando.
— Bem, sim. Era o mais natural, não era? É a casa mais fácil de chegar e você é uma das poucas amigas  que eu tenho. Eu até podia pedir para Lu, mas não acho que seja seguro para qualquer um dormir no quarto dela.
Numa nota avulsa, Lu, ou Luciana, é o nome da veterana de cabelos multicoloridos que esbarrou em mim dois capítulos atrás. Tenho certeza de que se lembram dela.
— Faz sentido mesmo – Paula falou. – E fico feliz que tenha pedido ajuda para mim. De verdade.
— Sério? Por quê?
— Porque isso significa que você confia em mim. Isso é bem legal.
Vou confessar que não entendi bem o que ela estava tentando dizer com aquilo, mas, de todo modo, dei meu melhor e mais encorajador sorriso em resposta a ela.
— Você vai querer tomar banho depois? – Paula me perguntou. – Eu posso te emprestar umas roupas também. Devo ter alguma coisa que caiba em você.
— Obrigada. Eu preciso mesmo me livrar dessas roupas. Elas estão imundas. Me sinto como se tivesse tomado um banho da última vez ano passado. Meu corpo todo dói.
— Ah, nossa. Nesse caso, pode ficar quanto tempo quiser no chuveiro, tá bom? Não se preocupe com terminar rápido.
— Obrigada. Você salvou minha pele.
— Sem problemas, sem problemas. Esse tipo de coisa é supernormal entre amigas, não é?
Isso é uma pergunta?

Terminamos o jantar e eu fui tomar banho. Toalhas, shampoo, calcinha, robe, calcinha, tive que usar tudo emprestado. Infelizmente não teve jeito quanto ao sutiã. Usar um dos da Paula ou nenhum não faria diferença nenhuma. Seria o mesmo que colocar uma maçã num saquinho feito para melões.
O que você está pensando, Emile?
No fim, teria que ficar sem. Era só por um dia mesmo. Não tinha trabalho no dia seguinte então poderia simplesmente voltar da faculdade e ir para casa. Ninguém nem ia notar. O importante mesmo era que aquela noite acabasse logo.
Por volta das onze e alguma coisa da noite, finalmente fui me deitar. Confesso que dividir a cama com alguém do tamanho da minha cara bixete era algo com que dificilmente conseguiria me acostumar, mas, tudo bem, não fazia mal. Era só daquela vez.
Deitei a cabeça e fiquei olhando para o teto. Era estranho, sabe? As coisas pareciam tão diferentes daquela vez. Mas era só o teto que tinha mudado. Ou ao menos era o que eu pensava.
Batidas. Essas são as próximas coisas de que me lembro. Batidas como se houvesse alguém andando em algum lugar. Mas não tinha ninguém além de mim ali. Não tinha barulho. Não tinha nada para ver. Era escuro, frio e silencioso. "É ela". Eu conhecia essas palavras. Da onde mesmo? Não lembrava. Era estranho. Eu realmente não conseguia me lembrar.
Qual era a palavra mesmo?

Acordei com minha cabeça doendo. Estava escuro. Ainda era de madrugada. Todos estavam dormindo. Saí da cama tentando não acordar Paula. Desci até a cozinha para beber água antes de voltar a dormir. Enquanto descia, sentia algo subindo pela minha perna, como uma aranha. Não tinha nada lá. Preferi não acender as luzes até chegar à cozinha. Não sabia quão sensíveis os pais de Paula eram. Acordar meus anfitriões não seria nada gentil depois deles me acolherem. Se não fosse por isso, teria apertado o primeiro interruptor que vi só para me livrar daquela porcaria de sensação de insetos subindo pela minha pele. Quase tropecei. Naquele escuro, meio zonza, não enxergava nada.
Tateei o armário atrás de um copo. Na terceira tentativa consegui pegar um. A geladeira foi mais fácil de achar. Deixei a porta dela aberta, peguei a jarra de água e ia até a mesa.
Quase larguei a jarra. Um grito ficou engasgado na minha garganta.
Olhos marrons, cabelos dourados, um sorriso. Mãos. Olá.
Uma pessoa sentada na mesa. Uma pessoa estava sentada na mesa. Uma mulher. Uma mulher estava sentada na mesa. Mas não era ninguém da casa. Não podia ser. Eu sabia. Sabia isso só de ver.
Ela era como a Serpente.
A mulher sentada na mesa moveu os lábios e palavras que eu não entendia saíram da boca dela. Ela repetiu as palavras, mais devagar, com mais cuidado. Eu ainda não entendia. Ela continuou repetindo e devagar elas foram tomando forma na minha cabeça. Ela falava em inglês.
— Boa noite, Emile – era o que ela estava dizendo.
Meu nome. Ela sabia meu nome. Minhas costas bateram na geladeira fechando a porta.
Escuro.
Eu ainda via os olhos dela. Eu ainda ouvia a voz dela.
— Assustada? – ela dizia. – Está tudo bem. Não vou te machucar se você não quiser, tá bom? Eu não sabia onde você estava. Foi difícil te encontrar. Calminha, tá?
As aranhas subiam pelas minhas pernas, uma delas tentou saltar no meu braço. Sacudi para escapar das garras dela.
— Quem é você? – eu sussurrei.
— Desculpa. Não falo sua língua. Você me entende, né? Disseram que você é esperta. Você sabe o que eu estou dizendo, certo?
— Quem é você? – eu repeti, dessa vez em inglês.
— Ah, isso. Engraçado, sabe? Nunca entendi essa pergunta que as pessoas fazem. Se alguém quer te matar ou te pegar ou sei lá o quê, ela não vai responder isso. Pensando bem, isso mesmo já torna a pergunta válida. É, realmente, não é uma pergunta ruim. Que tipo você acha que eu sou?
— O quê?
— Acha que eu vou responder a pergunta ou não?
— O quê?
— Isso não é a resposta certa. Vamos. Qual? Que responde ou que não responde?
Minha voz não saía. A cozinha começou a girar e o chão quebrou em baixo de mim. Eu despenquei como um rato jogado no lixo. Alguma coisa me agarrou, apertou minha garganta com garras frias. Estava me perguntando alguma coisa.
Isso de novo?
Isso de novo?
"Vamos lá!", a coisa insistia. As aranhas continuavam escalando minha pele, entrando pelas pernas da calça, por dentro da camisa, no meu cabelo, dentro de mim. Eu estava presa numa teia com uma aranha me fazendo perguntas.
— Não... – eu murmurei para a aranha. – Não.
A mulher que antes estava sentada na mesa sorriu para mim enquanto dava tapinhas na minha cabeça.
— Acertou.
Ela se afastou de mim e no mesmo momento mãos me agarraram, amordaçaram, levantaram. Tentei chutar, gritar, arranhar. Minhas mãos estavam amarradas. Minhas pernas também. Fui arrastada para fora da casa por dois homens. Na rua, tinha um carro parado e ao lado dele dois homens armados de rifles. Os homens armados levantaram o porta-malas, os que me carregavam me atiraram lá dentro. O porta-malas bateu em cima de mim. Tentei me atirar contra ele, romper as cordas, gritar, fazer qualquer maldita coisa e nada funcionava. Nada!
Bati a cabeça quando o carro arrancou. Ele corria, dava para sentir que ia rápido demais. Minha cabeça doía, meus pés giravam, meus braços doíam.
O que é está acontecendo?
Gritos não saíam. Mordi a mordaça como pude, mas ela também não saía. Tateei meus bolsos caçando alguma coisa. Meu celular. Meu celular estava no meu bolso. Não ia servir de nada. Sair dali. Sair dali era o que eu tinha que fazer. Depois, pedir ajuda. Como? Sair dali como? Carro em movimento, pessoas armadas, presa.
Droga! Droga! Droga! Droga! Merda! Por quê? Por que isso está acontecendo comigo? Merda! Merda! Merda! Primeiro a cobra e agora isso? Droga! Por quê? Por quê?
Por que eu não consigo lembrar? Por que eu não consigo lembrar qual é a palavra?
Que palavra? Não importa agora! Importa! Importa! Qual é a droga da palavra? Qual a porcaria, qual a merda, qual o cassete da palavra!
Dor. A mordaça engoliu o grito quando minhas costas bateram na parede do porta-malas. E outra vez. E mais duas vezes e mais três vezes. 
Batida. A tampa do porta-malas voou quando o carro estourou no chão. Um rugido, um bramido, sei lá que som era aquele, arrebentou os tímpanos da noite. Depois disso, tiros. Gritaria. Sangue. Eu sentia sangue na minha testa. Rolei para fora do carro. Tinham ferragens perto. Rasguei as cordas das minhas mãos. Arranquei a mordaça. Gritei. Desamarrei as pernas. Daí eu olhei para trás.
Carne, arame, sangue, gritos, dentes, garras. Era como um gorila sem pelos. Não. Um monstro de Frankenstein, um gorila feito de partes de animais costurado com arame farpado, gritando, sangrando enquanto as balas o furavam, estraçalhando carros, pessoas, sem diferenciar. Não tinha olhos. Agarrou um dos homens pelas pernas, rasgou-o em dois. A mulher, a mesma de antes, foi na direção dele. Andando que nem fosse fazer compras. O gorila, a coisa, o que diabos fosse aquilo, espancou ela.
Uma mão. Ela parou o braço dele com uma mão.
Chega!
Para o inferno com tudo isso. Quero ir embora. Sair daqui, esperar, respirar, dane-se tudo! Dane-se! Para o inferno! Que se exploda essa noite! Eu não quero saber!
Corre, Emile, pelo amor de Deus, corre!
Pulmão, coração, pernas. Não aguentava mais. Desabei no chão. O Sol estava nascendo. Que horas eram? Meu celular. Peguei-o no bolso. Cinco e tantas. Horas. Tinha corrido por horas. Estava longe. Devia estar. Tinha que estar.
A noite tinha acabado. A noite tinha acabado. A maldita noite tinha acabado.
Abri a agenda do celular e fiz a chamada. Não sabia o que dizer. Não sabia nem se ia atender. Não sabia de nada. Só liguei. Chamou. Chamou. Atendeu.
— Emile? – Daniel falou do outro lado da linha.
— Me ajuda.
Depois disso, mais nada.
[close]

Eu realmente estou ficando muito babaca... ou muito velho. Você decide.

TRIPLE COMBO!!!
Atualizando com o capítulo cinco e tals.
Spoiler
Após um dia estranho e uma noite absolutamente absurda, eu podia, com completa sinceridade, dizer que o meu mundo não tinha mais cima e baixo. Era como se as próprias leis que regem o Mundo tivessem parado de funcionar, me atirando para dentro de alguma fantasia estranha, um espaço de regras esquisitas e pessoas distorcidas. Parecia tudo algum tipo de Alice no País das Maravilhas às avessas.
Mas, de qualquer jeito, eu não pensei em nada disso enquanto estava desmaiada no meio da rua. Na verdade, eu pensei nessas coisas agora enquanto escrevia, já que naquela situação quem iria pensar numa analogia complicada? Isso seria terrivelmente irreal. Irrelevando essa questão, vamos adiante no enredo.
Acontece que, quando eu acordei, não estava em nenhum lugar que conhecia. Pelo contrário. Estava nos pijamas de outra pessoa, deitada na cama de outra pessoa, no quarto de outra pessoa. O que funciona como um ótimo resumo da minha situação, aliás. Meu corpo ainda doía como se eu tivesse sido surrada por um gorila e meus pensamentos estavam inundados de mulheres estranhas e homens mascarados. Tive que me levantar devagar para não arriscar uma dor de cabeça, mas isso não funcionou muito bem.
Alguém me dá um analgésico, por favor.
A porta do quarto não estava trancada, então pelo menos sabia que não tinha sido sequestrada. Ou se tinha, que meus sequestradores eram fortuitamente incompetentes, o que na prática era a mesma coisa. O corredor apertado do que parecia ser o primeiro andar de uma casa de subúrbio apareceu do outro lado da porta. Tinha outro quarto ao lado do que eu estava, porém não valia a pena me arriscar a investiga-lo. Minha direção eram as escadas. No andar de baixo tive a certeza de que estava numa casa de subúrbio, provavelmente do tipo que servem de casa e loja. Uma sala com móveis velhos e baratos, um televisão nova, mas também barata, e quadros provavelmente só baratos. Não parecia o tipo de lugar que serviria de cativeiro. Nada naquela situação, aliás, apontava para isso. Não me restava outra escolha que não eliminar a possiblidade de que eu tivesse sido sequestrada.
Viu, Emile? Senhora Sorte não te abandonou completamente.
Naturalmente, isso levantava outra questão. Afinal, onde eu estava e por que estava ali? Era o que eu poderia descobrir. E o melhor jeito de fazer isso seria tentando ir embora sem que ninguém me visse. Ao menos foi o que me pareceu uma boa ideia no momento. Procurei a saída da casa passando por uma cozinha, depois voltando pela sala em direção à outra porta, indo enfim parar... numa loja. Não qualquer loja. Um antiquário. Uma dessas lojas esquisitas, cheias de prateleiras abarrotadas de coisas velhas, que você se pergunta que tipo de clientela recebe. Nada ali parecia ter valor nenhum exceto alguma história bizarra possivelmente atrelada a um objeto, fosse real ou só enrolação. Uma loja de estranhices, definitivamente. Mas tinha uma saída e isso era o que me importava.
Embora sair na rua de pijama fosse algo que de todo modo gostaria de evitar, naquela situação não via outra saída. Literalmente. Aquela era a única porta para fora e dava numa rua. Me enchendo de coragem, abri a porta, pisei firme na calçada e de cabeça erguida tomei todos os olhares estranhos jogados em mim pela multidão de passantes.
Ou teria sido isso que eu teria feito se tivessem passantes. Do lado de fora, só havia um ou outro gato pingado e o eventual cachorro perdido. No fim, nada de triunfante. Só saí, um tanto aliviada por não ser vista.
Ou teria sido isso que eu teria feito se eu não tivesse ouvido alguém me chamar. A voz era funda, experiente. Voz de quem sabe o que fala. Me virei na direção dela.
Corre.
Corre, agora!
Eu teria corrido. Teria saído daquela loja em disparada, descalça, de pijamas pelo meio da rua, sem me importar com o que qualquer um pensasse, dissesse ou fosse lá o que fosse. Eu teria. Se eu conseguisse. Mas não dava. Minhas pernas, meu coração, meu cérebro. Tudo parou. No fundo do meu corpo, eu sabia, uma sensação muito antiga, muito primal tinha despertado. Provavelmente a mesma sensação que uma formiga tem quando se vê diante de um tamanduá, de um peixe sozinho no mar com um grande tubarão branco. Eu sabia, no mais profundo do meu código genético, nas bases da constituição do meu ser, que aquele era um inimigo contra o qual eu jamais poderia lutar.
Como o lobo gigante de tantas mitologias ou um dragão invencível, aquela pessoa que eu via diante de mim estava completamente além do meu alcance.
Os olhos diziam isso. Aqueles olhos estranhos que gritavam "morte".
Mas então os olhos desapareceram atrás de vidro. Não. O certo seria dizer que foram escondidos. Escondidos pelo homem que os tinha.
— Eu sinto muito – ele disse. – Isso não deve ter sido muito confortável para você.
Só quando ele já estava com os óculos eu consegui ver mais nele do que o olhar. E só aí percebi algo de familiar naquele rosto, uma vaga similaridade com alguém, embora endurecido, mais experiente. Um rosto que havia visto sangue.
— Não se preocupe – o homem disse. – Eu não vou te tocar.
Eu tentei montar uma frase, só que nenhum som se formava direito. Ainda sentia como se tivesse sido sufocada até a morte.
Respira. Respira. Isso. Tudo bem.
— Que lugar é esse? – eu perguntei.
— Só uma loja de coisas velhas num subúrbio. Não é um lugar com que você deva se preocupar.
— Então por que eu estou aqui? Eu estava...
As lembranças vieram de uma vez, como uma onda gigante varrendo uma praia. Monstros, tiros, homens estranhos e aquela mulher. Eu tinha desmaiado. Certo. Desmaiado e agora estava naquele lugar com o qual não devia me preocupar.
— Não se force demais – o homem disse. – Você passou por muita coisa em um único dia. Tem bastante sorte de estar viva. Muita sorte.
— Acho que sim... mas você não me respondeu. Por que eu estou aqui?
— Te trouxeram aqui. Para te esconder.
— Quem trouxe?
— Você realmente conhece tantas pessoas irresponsáveis a ponto de se envolverem com terroristas para salvar alguém que nem é tão próximo?
Incômodo.
— Daniel – eu falei. – Foi ele, não foi? Nesse caso, você deve ser o pai dele.
— Então ele falou de mim. Gentil da parte dele. Quanto ele te contou?
— Pouco. Disse que você era um mago e que podia me ajudar a tentar entender o que está acontecendo.
— É o suficiente.
O homem de óculos levantou a tampa do balcão e veio até mim. Minhas pernas tremiam, minhas mãos queriam abrir a porta. Apertei os lados do pijama para me controlar. Ele parou na minha frente e ficou me encarando como se eu fosse algum objeto estranho. Me sentia dentro de um tomógrafo.
— Então... – eu disse. – Cadê o Daniel? Se ele me trouxe para cá, então ele deveria estar aqui.
— Na verdade, não. Ele te deixou aqui e foi embora. A essa hora, provavelmente deve estar na faculdade. Não se preocupe, ele vai vir aqui mais tarde.
— Como você sabe?
— Meu filho tem um hábito de trazer garotas estranhas para minha casa. Infelizmente ele é incapaz de ignorar uma mulher em apuros.
— Eu entendo.
Por alguma razão, sentia que aquilo estava certo. Alguém que não consegue dar as costas para um pedido de ajuda. Acho que era uma boa descrição. Mas, ainda assim...
Qual é a palavra?
Percebi que o homem ainda estava me olhando daquele jeito analítico. Eu estava num pijama muito grande sem usar um sutiã. Aquele olhar simplesmente não cabia. Incômodo. Era a sensação. Não conseguiria descrever como qualquer coisa mais que isso. Era estranho. Parecia haver algo escondido atrás daqueles olhos. Algo que não devia estar lá.
— De qualquer jeito, seria melhor eu ir para casa – eu disse. – Meus pais devem estar preocupados já.
Espero.
— Não acho que isso seria inteligente – o homem disse. – Qualquer um pensaria em procurar alguém em sua casa.
Ele deu as costas para mim e começou a mexer em alguma coisa numa das prateleiras, tirando um objeto pequeno de lá e colocando-o em cima do balcão.
— E, além disso – ele continuou. – seria consideravelmente chamativo ver alguém vestido desse jeito andando no meio da rua. E tenho certeza de que você não quer chamar atenção.
Essa era a última coisa que eu precisava. Infelizmente, não havia outra opção que não solenemente admitir que, sim, ele tinha razão. Era possível que aquela mulher estivesse atrás de mim ainda. Isso se ela estivesse viva. Aquele gorila...
Céus... o que está acontecendo?
Espera...
Peguei meu celular e liguei para casa.
Eu devia ter pensado nisso antes!
Chamou. Chamou. Chamou. Ninguém atendeu. Era impossível que meus pais não tivessem chegado em casa ainda.
Pegaram eles.
Foi a primeira coisa que eu pensei. Era uma ideia absurda, terrível. Não podia ter acontecido. Não. Não. Se eles tinham sido pegos era para me atrair. Seria possível? Ainda não tinham ligado. Se tinham mesmo pegado meus pais porque não ligaram ainda? O que estava aparecendo?
O que diabos está acontecendo?
Senti uma mão no meu ombro. Por cima do ombro vi aquele homem perto de mim, me olhando como se quisesse dizer "não adianta ir atrás deles".
Eu sei disso...
— Se eles querem você tanto assim, eles não vão tocar nos seus pais – ele disse. – Enquanto você estiver escondida, eles vão estar seguros.
— Como... Como você sabe disso?
— Você não está escondendo isso. Se estivesse, ninguém perceberia, mas não está então fica óbvio. É um talento estranho esse seu.
Eu não fazia ideia do que ele estava dizendo. Isso não mudava o fato de que ele tinha razão. A lógica era razoável. E mesmo que eu tentasse fazer algo... não. Não tinha como nem pensar em tentar faze nada. Eu nem fazia ideia do que estava acontecendo.
Eu não estava só perdida. Eu não sabia nem sequer andar. Despenquei num banco, minha cabeça explodindo.
— O que eu faço agora? – eu disse.
— Daniel vai chegar em algumas horas. Até lá, descanse. Quando ele chegar, conte a sua história. Assim, talvez, seja possível te ajudar.
— Entendo. Obrigada.
— Não me agradeça tão cedo. Ainda não sei se há algo que possa ser feito por você.
Depois disso, ele foi para o balcão e não falou mais nada. Honestamente, eu não conseguia entender aquela pessoa. Infelizmente isso ficava mais comum a cada momento. Se desse azar, chegaria um ponto em que não entenderia nem a mim mesma.
Azar é algo terrível.
Fiquei por algumas horas sentada naquele banco sem fazer nada. Em um momento ou outro, acabava cochilando, mas na maior parte do tempo simplesmente estava parada, sem saber o que fazer. Tudo isso graças a um dia ruim. Às vezes queria que as coisas fossem menos complicadas.
Em algum momento entre dois cochilos, meu celular tocou.
Paula. Como eu fui esquecer...
Ela provavelmente estava maluca àquela altura. Atendi logo e o grito do outro lado chegou muito perto de arrebentar o meu tímpano.
— Emile! – Paula disse. – Onde você está? Eu quase morri de medo! Você não estava em casa de manhã? Eu liguei para sua casa, mas ninguém atendia! Eu achei que tinha acontecido alguma coisa ruim com você!
Bingo. Temos um vencedor.
— Desculpe – eu falei. – Aconteceram algumas... coisas. Eu queria ter te avisado, mas não deu tempo. Antes de eu perceber eu já estava longe daí.
— Como assim? Você saiu no meio da noite! Como não conseguiu me avisar? Você estava do meu lado!
— Bem... eu sou sonâmbula, sabe?
Foi uma desculpa horrível. Ninguém precisaria me dizer isso. Qualquer pessoa em sã consciência saberia que aquela era uma mentira horrorosa. Pensar que fui eu quem disse isso me faz querer me espancar e me jogar num rio por pura vergonha. Uma mentira tão mal contada, uma história tão estúpida.
Parabéns, Emile.
— Sonâmbula? – Paula repetiu.
— É. Às vezes eu saio à noite para ir até o lado de fora de casa. Só que como eu estava longe de casa, acabei andando demais e me perdi. Por sorte encontrei a casa de um amigo quando acordei e ele me deixou dormir aqui. Foi um golpe de sorte.
E isso um abuso da sorte.
— Entendi – Paula disse. – Estou feliz que você esteja bem. Suas roupas ainda estão aqui. Quer que leve elas aí?
— Não precisa. Mais tarde eu passo aí e pego, tudo bem?
— Por mim sim.
— Tá bom então.
— Sabe que pode confiar em mim, né? Se tiver qualquer problema, eu posso te ajudar a resolver.
Adoraria que pudesse, mas não acho que você seja capaz de enfrentar cobras gigantes e mulheres estranhas.
— Obrigada, Paula. Você é uma boa amiga. Fico feliz de poder contar com você. Tenho que desligar agora.
— Certo. Até mais tarde.
Eu desliguei o telefone. Aparentemente milagres realmente eram reais. A partir desse dia, me decidi a ao menos de vez em quando fazer doações e preces para as divindades mais populares que conseguisse pensar. Quem sabe quando o favor de um deus pode vir a calhar.
Só espero que eles não sejam particularmente exigentes.
Pouco depois da ligação de Paula, ouvi tocarem as sinetas da porta e ela se abrir.
Lá estava.
Daniel entrou pela porta, mas não conseguia senti-lo. Ou talvez fosse mais claro dizer que não sentia ele como normalmente sentia, uma presença vaga, mas próxima. Estava distante, afastado. Em outro mundo.
De novo.
Ela estava atrás dele. Aquela garota que não morre. Ela foi a primeira a me notar, mas preferia que nem tivesse visto. Os olhos dela queriam me comer viva.
— Então você está acordada – ela disse. – Essa foi uma recuperação bizarra.
Ela falava como se me detestasse.
O que essa daí tem?
Quando ela falou comigo foi que Daniel percebeu que estava ali. Ele se virou devagar e se abaixou perto de mim, olhando preocupado. Olhar de quem entende a situação.
— Você está bem? – ele me perguntou. – Eu fiquei preocupado quando você me ligou e depois que eu te encontrei caída no chão daquele jeito... – ele sorriu. – Fico feliz que você esteja bem.
Ele colocou a mão no meu ombro e ficou lá, me sorrindo.
Só que eu não conseguia sentir nada mais que um toque leve, indistinto, um esbarrão de desconhecido.
O homem de óculos foi até a porta da loja, trancou-a de chave e baixou as cortinas das janelas.
— Vamos para os fundos – ele disse. – Esse não é lugar para essas conversas.
— OK – Daniel concordou. – Você consegue falar sobre o que aconteceu ontem? – ele me perguntou.
— Não se preocupe comigo. Eu estou bem. E eu tenho uma memória boa. Além disso, não era uma coisa fácil de esquecer.
— Bom saber. Vamos lá.
Segui Daniel até o tal quarto dos fundos. Mas chamar aquilo de quarto não era certo. Era um cômodo quadrado, todo de cimento sem pintura, lotado de sacos de areia, alvos e todo tipo de parafernália esquisita e paredes lotadas de papéis pendurados. A única coisa que trazia à mente um quarto ali era uma mesa redonda e suas três cadeiras. O homem de óculos se sentou em uma das cadeiras, Daniel em outra e eu na última. A garota ficou de pé num canto, braços cruzados, olhos cravados em mim.
Sério, qual seu problema comigo?
O homem de óculos bateu os dedos na mesa e me encarou pedindo explicações. Respirei fundo. Aquilo ia demorar.
Devo ter demorado mais ou menos uma hora para contar a história inteira. Como eu não sabia o que era importante ou não, falei tudo desde o momento em que acordei até desmaiar. A entrevista, ficar perdida, o encontro com a cobra, a noite na casa da Paula, a mulher, a saída dos meus pais, o gorila. Provavelmente me esqueci de alguma coisa, mas na hora não achei que fosse nada importante. Se soubesse, teria pensado melhor e evitado uma quantidade enorme de problemas, mas nunca fui vidente. Durante toda a explicação, ninguém falou nada. Sem perguntas, sem comentários. Só ouvidos me escutando. Na altura em que terminei, dava para ver que eles tinham muito sobre o que pensar.
— Você mencionou uma mulher – o pai de Daniel perguntou. – Como ela era?
— Estava um pouco escuro e eu estava com a cabeça confusa, então não sei se vai ser uma boa descrição, mas pelo que eu vi ela era loira, devia ter um metro e setenta. Era meio magra e toda musculosa. E ela tinha um sotaque estranho.
— Estranho?
— É. Parecia europeu. Alemão, talvez. Mas não era exatamente alemão. Não sei. Eu nem falo alemão, mas foi a impressão que me deu. E ela tinha uma cicatriz. Era no peito, bem aqui.
— Como você viu isso? – a garota perguntou.
— Ela não estava de camisa. Estava usando um top ou alguma coisa do tipo. Não dava para ver a cicatriz toda, mas parecia bem grande.
O homem de óculos cruzou os braços e mudou de expressão. Parecia preocupado agora, como se soubesse de alguma coisa. Não. Definitivamente, ele sabia de alguma coisa.
— Você conhece essa mulher? – Daniel perguntou-o.
— Não – ele respondeu. – Mas ouvi falar de alguém parecido. E considerando tudo que tem acontecido, provavelmente é ela. Tuuli Aalto.
— Ela é problema? – a garota perguntou.
— Por si só, é. Mas o que me preocupa é o que a presença dela aqui implica. Tuuli é uma Maga Finlandesa. Chamam-na de Verikoira.
— E o que isso significa? – Daniel perguntou.
— Um tipo de cão de caça. Costumam usar ele para rastrear e capturar pessoas.
— Bom, isso é bastante apropriado – a garota disse. – E o que mais você sabe sobre a cadela?
— Ela é famosa no Norte Europeu por desafiar outros Magos para duelos até a morte. E é bastante óbvio como esses duelos costumam terminar. Ela está na lista de procurados da C.E.R.C. e eu tenho certeza de que metade do mundo adoraria pegar ela. Mas não tem muitas pessoas capazes disso.
— Ela parece realmente perigosa – Daniel disse. – Mas você falou que o principal problema não era ela.
— E  não é mesmo. Por mais que a Aalto seja perigosa, ela é só uma pessoa. Não há muitas pessoas perigosas a ponto do submundo inteiro preferir ficar longe dela. Entretanto, ela está envolvida com a Fragarach. A verdade é que se ela está aqui e não veio atrás de nenhum Mago, ela provavelmente está em um trabalho para a Fragarach.
Eu não sabia o que era essa tal Fragarach, embora o nome definitivamente me fosse familiar. Como uma lembrança estranha, meio escondida em algum lugar. E então eu lembrei.
— A Espada da Retribuição – eu disse. – É uma arma mitológica. E um Nobre Fantasma excelente contra lanceiros vestidos em colantes azuis.
— Eu não acho que esse seja o momento para fazer referências – Daniel disse. – Mas ela tem razão. Mitologia irlandesa, certo? A espada de Nuada.
— Correto. A espada que jamais erra e derruba todos os seus inimigos. Se nomes têm poder, tomar um nome como esse deixa intenções claras à vista. Desculpem. Divagações não cabem aqui. Fragarach é um grupo extremista. Eles acreditam que o mundo deve voltar ao seu estado original quando monstros e fadas andavam livremente pela Terra. Mas como não há nenhum tribunal que vá julgar isso, eles adotaram métodos mais... diretos.
— Terrorismo – a garota disse. – Eles são terroristas, é isso?
— Não exatamente. Bem, suponho que a certo nível se possa dizer que é terrorismo, mas a destruição é apenas consequência, não o método em si. É complicado. O que importa é que eles têm estado nisso há anos. Coletando relíquias, juntando anomalias, pessoas com habilidades especiais, trabalhando em projetos secretos, fazendo alianças. São uma das maiores forças no submundo. A maior, se você desconsiderar as organizações com dinheiro de governos por trás delas.
— Eu não entendo – eu disse. – Por que um grupo assim estaria atrás de mim?
— Não sei. Mas... se tivesse que dar minha opinião, eu diria que está ligado à serpente e provavelmente ao gorila também. Ambos apareceram no mesmo dia. Seria coincidência demais se não houvesse uma ligação.
— Não. Não faz sentido. Aquela cobra podia ter aparecido para qualquer um. Eu nem sei o que ela é.
A garota se aproximou e bateu com as duas mãos na mesa.
— Pois é, podia – ela disse. – Mas apareceu para você. E o gorila também apareceu bem na sua frente. Você acha mesmo que isso tudo é só azar?
O que você tem a ver com isso?
Cravei minhas unhas na minha palma para não bater naquela garota. A voz dela me irritava, o jeito dela falar como se soubesse de tudo me irritava. O que alguém podia ver em alguém como ela?
— O que você está insinuando? – eu exclamei.
Ela abriu um sorriso irritante, ergueu a cabeça e, me olhando como se tivesse algum direito de se achar acima de mim, disse:
— Eu estou dizendo, uma coisa muito simples. Você é como nós. Uma anomalia.
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Eu realmente estou ficando muito babaca... ou muito velho. Você decide.