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Itens Inúteis e a Arma de Chekhov

Iniciado por Geraldo de Rívia, 30/12/2017 às 17:44

ITENS INÚTEIS E A
ARMA DE CHEKHOV


"O galo já cantava quando os soldados adentraram os baixos portões da vila. Da janela, Orik via de cima o estandarte do reino cruzando a ruela principal, e logo atrás, outro soldado com vários rolos de papel sob o braço direito, limpos como se acabassem de sair da prensagem. Recrutamento, pensou.

Logo as unidades chegaram à praça e se dirigiram a uma bancada de pêssegos. Trocaram algumas palavras com o comerciante, cujo receio estava estampado no rosto, seguido de um aperto de mão. O mercador retirou os cestos da mesa e então o soldado começou a dispor os papéis virgens, pena, tinteiro e os demais utensílios. A seu lado outro soldado mantinha o estandarte erguido, cuidando para que a bandeira ficasse sempre visível. E de fato, era um recrutamento.

Orik chegou à fila, acompanhado de sua vó, que o criara até ali. Com quinze primaveras completas, já esperava que a qualquer momento o reino pudesse chegar requisitando sua entrada no exército, e enfim, este momento chegou. Era o quarto, mas não teve de esperar muito. Assinou o que lhe fora indicado assinar e voltou com sua vó para juntar as coisas.

[...]

Na porta, Orik deu seu adeus à avó. Ele chorou, ela não. Vó Alda já se despedira de outros quatro netos, portanto pouca lágrima restara. Após abraçar o jovem recruta, o pediu que estendesse a mão e nela depositou um colar, de linha simples e uma pedra rosada muito bem presa na ponta. 'É para lembrar-se, meu filho', disse. Orik assentiu com a cabeça, virou-se, subiu na carroça e partiu."

[box class=plainbox]Quem é o dono da Arma?[/box]

Anton Pavlovitch Tchecov nasceu em 29 de janeiro de 1860, na cidade litorânea de Taganrog no Mar de Azov, na Rússia. Sendo criado rigidamente e religiosamente por seu pai e junto a cinco irmãos, Tchecov quando criança tinha o consolo da mãe, que o contava histórias. Em 1876 sua família mudou para Moscou devido endividamentos de seu pai, entretando Tchecov permaneceu para vender os bens da família. Agora ele deveria conseguir meios para sobreviver ali, e o fez capturando e vendendo pássaros, dando aulas particulares e vendendo enquetes para jornais, ao passo que começava a se interessar por Miguel de Cervantes e Arthur Schopenhauer. Em 1879 mudou-se também para Moscou, onde entrou para a faculdade de medicina da Universidade de Moscou.

Em 1884, começou a exercer a profissão de médico, porém, responsável pela família e necessitando de uma renda a mais, também escrevia para revistas e jornais de Moscou. Dois anos depois ele foi convidado para redigir em um dos mais populares jornais de São Petersburgo, em condições e pagamentos melhores. Daí em diante, Tchecov passou a receber cada vez mais prestígio e admiração literária. Em seu legado estão grandes peças como O Jardim das Cerejeiras e As Três Irmãs, além de inúmeros livros. Após, ele viria a ser concebido como um dos maiores nomes da literatura russa, atrás apenas do gigante Tolstói.

[box class=plainbox]A Arma[/box]

RPG é o gênero que melhor concilia, ou ao menos busca conciliar, todos os aspectos de um jogo. Visual, som, jogabilidade, mecânicas e performance, tudo isso deve ser bem trabalhado e amarrado por um bom roteiro. E para essa amarra ficar boa, muitos dos laços e nós que a compõe são feitos a partir de técnicas narrativas, que são ferramentas comuns em muitas obras que auxiliam no desenrolar da história. A Arma de Chekhov é uma delas.

"Se no primeiro ato você tem uma arma pendurada na parede,
então, no último ato você deve dispará-la. Em outro caso não coloque ela lá."

A afirmação acima é de Tchecov e a que deu origem ao nome deste recurso narrativo. Uma vez que você mostrou ao jogador algum objeto, este deve ter utilidade em algum momento posterior em sua história, caso contrário não coloque ele lá. Vale lembrar que a arma é uma metáfora nesta afirmação, sendo que este objeto pode ser um item, uma proteção, um lugar, uma passagem, um enfeite no cenário, uma lembrança, uma fala ou mesmo um personagem. Um excelente exemplo desta aplicação está em God of War.



Esse é aquele momento em God of War em que você fala "aaah agora eu entendi"



Inicialmente, ao passar pelo coveiro o jogador imagina que aquele é um personagem comum, figurante, talvez um alívio cômico, que perdido em sua loucura e miséria está ali cavando aquele buraco indefinidamente. Horas depois, próximo ao fim do jogo e sem nenhuma lembrança daquele coveiro, o jogador volta àquela parte e tudo que ele falou naquele momento passa a fazer sentido, e isso provoca uma baita satisfação em ver um quebra cabeça da história se completando.

Todavia, vale ressaltar que ao utilizar deste recurso você não será obrigado a ter uma explicação para cada tijolo que compõe um castelo ou para cada vaso de flor sobre as mesas. Isto é empregado em um objeto singular, que não é comum àquele cenário. Por exemplo: mentalize um cômodo de um castelo em que há o piso, encerado e reluzente, armaduras posicionadas simetricamente em ambos os lados, um tapete largo ao centro, e sobre ele uma mesa, com talheres e vasilhames em estanho, ao fundo uma lareira, e sobre a lareira uma estatueta em pura prata, na figura de Ártemis. Tudo se encaixaria perfeitamente em qualquer sala medieval, exceto... o que uma estatueta em pura prata estaria fazendo ali? E por que com a figura de Ártemis? Devoção? Valor? Ou simples enfeite? De fato, pode ser um enfeite, mas o quanto o enredo se beneficiaria caso aquele objeto representasse ou realizasse algo mais para frente? É aí que entra a Arma de Chekhov, para tornar sua história e elementos mais interessantes. Espere o jogador esquecer aquele elemento e então traga à tona sua importância.

O colar que Marle deixa cair no início de Chrono Trigger é uma perfeita demonstração da Arma de Chekhov.



Entretanto, se o uso do recurso narrativo que estamos abordando em muito incrementa para a história, o seu uso excessivo ou errôneo pode acarretar no efeito contrário. Geralmente, ao retornar com o elemento para a história o jogo provoca a sensação de surpresa no jogador, afinal ele não esperava ver aquele elemento novamente, afinal de contas ele não parecia ter nada de especial. Quando isso acontece muitas vezes, gradativamente a surpresa do jogador diminui, tornando recorrente algo que era para ser memorável.

Da mesma forma, dar uma importância excessiva ao elemento, principalmente em momento de dificuldade por parte do protagonista, pode resultar em um caso de Deus ex machina, porém este, é assunto pra outra matéria.

"O campo já estava desolado quando Orik chegou. A larga clareira aberta naquela mata fechada e circundada pelo fogo abrigava mais cadáveres do que qualquer um deles já havia visto juntos. O avermelhado do solo e o cheiro fresco e denso de sangue denunciavam o quão sangrento fora o combate. E Orik havia demorado demais.

Andaram por entre os corpos, revirando os que tinham esperança de abrigar algum restante de vida. Sem sucesso. Encaravam os corpos de outrora aliados e inimigos com o mesmo pesar. 'A troco de quê vale isto?', indagou-se ao concluir que tudo o que defendera até então não valia a vida de nenhuma daqueles homens, nem mesmo cujas armaduras eram de outra cor. Eis que uma destas de outra cor ergue o braço relutantemente.

- Tirem os corpos de cima! Ele está vivo - gritou Belford aos recrutas - Deuses! Olhe esta perna!

Na verdade não havia perna, e vendo isto, mais melancólico Orik ficou. Mais acima, na coxa esquerda, um corte deixava carne viva à vista. No estômago, uma perfuração dava a impressão de ter entrado alguns dedos corpo adentro. E no peito... um colar.

- Este... colar... Onde o conseguiu?
- Foi... foi um presente - respondia com dificuldade o moribundo - Um presente de... de minha avó.
- Como ela se chamava? - questionou Orik, com olhos arregalados.
- Alda."

[box class=calendar_today]E você? Lembra de alguma obra que faz uso da Arma de Chekhov? Já usou este recurso em um projeto ou mesmo em uma história? Achou interessante? Pretende tentar usar? Deixe aí seu comentário.[/box]

Até a próxima!


Uma boa matéria, eu conheci/aprendi essa técnica do "Se no primeiro ato você tem uma arma pendurada na parede,então, no último ato você deve dispará-la. Em outro caso não coloque ela lá." ha bastante tempo por conta dos filmes, sempre vi muitos filmes e comecei a reparar algumas estruturas de roteiro e também dei uma estuda de leve.

Um exemplo que me marcou em filme é em Matrix, quando Neo vai ter sua ultima batalha com o Agente Smith logo depois de conseguir seu "power up" a câmera da um zoom e nos vemos Neo chamando seu inimigo pra porrada com um gesto de mão que é o mesmo que Morpheus faz quando está ensinando Neo a lutar. Criando uma rima narrativa e indicando pra que está assistindo de que agora ele é um mestre.


Um bom exemplo de que realmente não é só a arma. Eu particularmente gosto quando essa regra é quebrada (O famoso Deus Ex que é mau falado por qualquer crítico) porque assim eu me surpreendo. Vale lembrar que tanto filmes quanto jogos por muitas vezes também ignoram essa regra por questão de corte de cenas e deadlines.
Hammer Strike

Excelente texto, como tinha dito. Essa ferramenta funciona não só como elemento direto da narrativa, mas ajuda na construção de personagens, como citado pelo [user]HammerStrike[/user]. Pessoalmente eu uso para saber o que é necessário ou desnecessário ao enredo. Também dá um belo polimento se usado nos detalhes mais simples.

Assunto para outra matéria
Não poderia deixar de dar meu pitaco sobre Deus Ex Machina, aproveitando a deixa. Preguiça. Preguiça pura e completa. Desde o Teatro Grego, quando um autor enfiava a narrativa em um beco, alguns procuravam a solução mais simples: um Deus vai descer do Olimpo - literalmente - e resolver todos os problemas porque eu quero acabar logo com isso. É muito raro um Ex Machina que funcione e, quando isso acontece, certamente ele não é o que parece.
[close]

Gostei muito dessa matéria, principalmente porque eu tenho essa mania feia de colocar coisas inúteis no jogo só para encher de mais conteúdo. Pensando bem, se manter no simples nem sempre é uma coisa ruim.

Continuem postando mais matérias desse tipo!  :blink:

Tu nota aquela espada toda colorida no fundo cenário toda vez que passa por ali desde o começo do jogo. No último estágio, você fica encurralado e desarmado, sem ter o que fazer, aí você pega a espada e mata o inimigo. É daquelas coisas que tiram um sorriso de muita satisfação de canto de boa, né? kkkk
Eu gostei bastante da matéria, principalmente por ela ser breve e ir direito ao ponto, como deve ser. Valeu, Gerardo.

Gostei muito do artigo! Bem explicativo e com certeza me ajudou muito, um recurso que vou usar ativamente sem dúvidas. Acho que a primeira coisa que me veio à cabeça no exato momento em que li a frase, foi a cena do bar de Kingsman, que chega a ser usada no segundo filme também. Muito obrigado pelo artigo!
Spoiler
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Não conhecia por esse nome, mas sempre achei esse recurso muito interessante.  :wow:
Dá muito mais profundidade pra qualquer história.
~ cleanwatersoft.itch.io/ ~
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Bem interresante , tal coisa a gente pode a fundar no projeto ou historia , e fazer com o que o jogador ou leitor fique preso para que no final ou como desenrolar a historia você ira entender o porque da arma no inicio.

Valeu por Post incrivel , me deu umas ideias incriveis...