O TEMA DO FÓRUM ESTÁ EM MANUTENÇÃO. FEEDBACKS AQUI: ACESSAR

Contos do Cego - Referencial

Iniciado por O Cego, 04/04/2020 às 01:21

04/04/2020 às 01:21 Última edição: 04/04/2020 às 03:22 por Gabriel


* * *

Costumo dizer que cada um tem, dentro de si, o bem e o mal, seja lá o que for que isto signifique.

Acabei aprendendo que bem e mal só são absolutos quando comparados a um referencial qualquer. E mesmo este referencial é, por força da necessidade, mutável - E, muito de vez em quando, bem e mal são silenciados diante de uma padecença qualquer em comum.

Ana Carolina tem seis anos. É uma menina espertíssima, jovial, risonha. Encontrei-a no hospital. Cheguei no quarto, ela abriu os olhinhos cheios de curiosidade.

_Moço, você é médico? - perguntou, a voz um pouco oca por conta do equipamento preso em sua boca. _Você não parece um dos doutores que vem aqui...

De fato, o terno Boss, preto azeviche, me fazia destoar dos membros da equipe do hospital. Um amigo que há muito não via havia me mostrado os ternos da marca e eu me tornei um fã, quase que instantâneamente. Eram caros? Sim, caríssimos... Mas eu podia me dar ao luxo de pagar por um de quando em quando. Os chineses da lavanderia na velha Rua do Lavradio faziam um trabalho de lavagem impecável, então eu sabia que meus ternos durariam por bastante tempo. E preciso - ao menos, é o que eu acho que preciso - estar sempre impecável. É bom passar uma boa imagem. Nunca gostei muito de sapatos, mas tinha por vício usar coturnos militares, do tipo americano, sabe? Aqueles pretos, de couro e lona, com um fecho Écler. Desses cuido eu mesmo - Horas e horas de polimento até que fiquem como um espelho. Sem artifícios, só polimentomanual e uma paciência de Jó.

_Você é a Aninha, não é? - Perguntei. Quis dar uma impressão jovial à minha voz, mas creio ter falhado. Ana Carolina se assustou com meu tom de basso profondo.

_Sim, sou... mas quem é o senhor? Como entrou aqui no quarto? Veio me visitar, ou errou de lugar?

_Ana, eu sempre sei o nome das pessoas a quem eu venho visitar.

Senti a minha voz séria. Só naquele dia, era a sétima pessoa a quem eu vinha visitar.

_Todo de preto... Voz séria... Moço, eu sei quem é você.

Sim, vocês sempre sabem.

No último momento, tomam consciência de Asrail.

Asrail, o Anjo da Morte.

Ana foi corajosa. Disse à ela que seus pais a estavam esperando em um lugar melhor - o que não deixava de ser verdade.

Ana e os pais haviam se acidentado gravemente - atropelados por um bêbado riquinho, filhinho de papai. Os pais haviam falecido uma semana antes. Ana era mais jovem e resistiu por mais tempo, mas havia chegado a hora. Eu mesmo havia vindo buscar os pais dela. E eles me fizeram prometer que trataria a filha deles como um anjinho de pureza e candura.

Nós, os anjos da morte, levamos nossas promessas a sério, e as cumprimos.

Ana me fez prometer que o culpado seria punido. Pela primeira vez, eu havia prometido que me encarregaria pessoalmente disso.

Grande erro. Grande, grandessíssimo erro.

* * *

São dezenove horas. Estou em algum lugar do Leblon.

O mesmo amigo que me fez tomar gosto pelos ternos Hugo Boss me fez tomar gosto por ficar equilibrado nos cimos dos postes de concreto. Como todo anjo que carrega o título de Asrail, carrego comigo, num bolsão de hiperespaço, uma arma espectral.

A minha é uma foice, daquelas grandalhonas e desajeitadas, de duas mãos. O tipo clássico: Grande lâmina curva, cabo de ébano, revestimento do cabo em adamantite de segunda classe - não brilha tanto como o de primeira classe, mas é bem mais duro. Mas o caso hoje é outro, então carrego, além da foice velha de guerra, um estoque, também espectral, longo e de ponta afilada em triângulo, que manuseio como se fosse uma rapieira, quando a circunstância permite.

Estou vendo o camarada que atropelou a família da pequenina Ana. Está na cobertura do prédio, bebendo e se divertindo com os amigos. Tem nome de deus nórdico. É de família rica. Pai empresário, metido em escândalos de toda natureza. A mãe foi atriz, modelo, e sabe o Demiurgo o quê mais.

Nem parece que causou três mortes há quinze dias atrás. Varro sua alma vivente através da leitura das pulsações de sua assinatura Kirlian.

Encontro tranquilidade, alegria, ambição.

Nem um pingo de remorso.


Ouço uma voz próxima, que vem do poste vizinho.

_Você sabe que não pode interferir no livre-arbítrio das pessoas, Anjo da Morte. E, de mais a mais, ainda não é a hora dele. - Conheço essa voz.

Trihanon.

Corpore, da casta dos querubins.

Máquinas de combate, que existem com o propósito quase único de combater o mal.

Anjos da guarda.

Trihanon é um anjo jovem, mas proficiente com as armas. Muito proficiente, aliás - Numa casta que só respeita o poder das armas e que só entende a hierarquia e a disciplina, Trihanon é um capitão angélico, da Legião Epsilon. Tem uma centúria de celestes sob seu comando.

Praguejaria, se pudesse - Trihanon é o anjo da guarda do rapaz ébrio que é...

_... Seu alvo de hoje. - Trihanon fala e eu reluto em admitir; a nós, anjos da morte, não é permitido abreviar a vida que não está para se findar. Isso seria homicídio, impensável para anjos como nós, conhecidos por ser de confiança. - _Você sabe que não pode, não deve... E eu não vou permitir, Zaebulah da ordem dos Nimbus.

É, ele sabe meu nome original. Zaebulah, Nimbus da casta dos ishins. Um anjo que não é de combate, mas administrativo, por assim dizer, já que pertenço à ordem dos Nimbus... E um ishin, anjo incumbido de supervisionar os problemas dos humanos. Os da ordem dos Corpore são nascidos para lutar, ainda mais quando são da casta dos querubins, cuja função quase exclusiva é formar as fileiras do Exército Celestial, bem como servir de anjos da guarda.

Sou de casta e ordem inferiores. Isso bastaria para me deter. Em combate singular, equilibrado, dificilmente um ishin poderia vencer um querubim.

Mas dei minha palavra. E a palavra de um anjo da morte tem peso e valor de ouro puro, ouro místico de Ophyr.

A ideia me surgiu, de chofre.

_Escute, Trihanon, somos anjos? Qual é nossa função na Terra dos Homens, que não cumprir com a vontade de nosso Pai criador?

Trihanon meneou a cabeça, em aprovação. A função dos anjos era justamente essa - Fazer cumprir a vontade de nosso Pai Criador.

_E o que vale mais para nosso Pai, a vida ou a liberdade?

_Não entendo o que quer dizer, Anjo da Morte.

_Pois bem, pense por si mesmo: Seu protegido tirou três vidas e negou a estas a liberdade de suas próprias ações. Não vai pagar pelo seu crime porque a lei dos homens é falha. Uma dessas almas que se perderam me fez jurar em nome de nosso Pai que a justiça seria feita. Tente me impedir e estará cerceando a minha liberdade de fazer cumprir um juramento feito em nome de nosso Pai Criador. Me impeça de fato e estará permitindo que um assassino, de acordo com as leis de nosso Pai, siga impune. Me destrua e estará sendo fratricida.

Senti a dúvida pairar na aura pulsante de Trihanon. Se ele e eu estávamos certos, o que se deveria fazer?

Começou a chover, pesadamente. Uma longa espada pendia na mão esquerda de Trihanon. Era um espadagão do tipo suíço, de duas mãos e lâmina com ganchos de apara, que, certamente, o anjo usava com uma mão apenas - com tanta destreza quanto um baterista gira uma baqueta entre os dedos. A tunica, agora ensopada, havia se aderido à fina armadura de malha de adamantite que Trihanon envergava por baixo das vestes.

_Anjo da Morte, temos um problema em comum. Você prometeu algo que não devia, e eu deixei acontecer algo que não devia ter acontecido. Não tire a vida de meu protegido, é o que ordeno. - Trihanon sabia que não deveria ter permitido que seu protegido houvesse se inclinado à bebedeira e o abuso de drogas que o fizeram atropelar àquelas três pessoas. Sabia que a justiça devia ser feita. Podia ouvir, figuradamente, a alma de Ana Carolina clamando por justiça. Mas também não podia permitir que seu protegido morresse antes da hora determinada.

Não queria se tornar um fratricida, mas tinha suas obrigações a cumprir. E sabia que deveria ter mais afinco com suas obrigações, especialmente depois do que havia ocorrido quinze dias antes. Baixou a espada.

* * *

Zaebulah sorriu. Num salto, dirigiu-se à cobertura, no mesmo momento em que a eletricidade se apagava no quarteirão e a temperatura esfriava para níveis que, por um momento, pareceram glaciais. Sacou seu estoque. O protegido de Trihanon estava no banheiro, de frente para o espelho. E, no espelho, o que viu foi, exatamente, o Anjo da Morte.

Zaebulah sabia o que, e como fazer. Com a mão direita, forçou o queixo do protegido de Trihanon para cima, ao mesmo tempo em que lhe comprimia o pescoço. Num só golpe, enterrou seu estoque num ponto bem específico, embaixo do olho esquerdo, e injetou na alma do rapaz os piores medos e dores que uma pessoa pode sentir.

Uma autêntica lobotomia na alma.

* * *

_Olha... Tenho de admitir que foi um golpe de mestre. - Trihanon devorava um segundo pastel de carne seca enquanto bebericava seu café, forte e sem açúcar, num stand da Central do Brasil. Eu estava junto a ele - Afinal, foi ele quem me ofereceu um café. E, se ele me ofereceu, ele é que paga. _Ele está internado na Saint-Roman... Você sabe, aquela clínica de dependentes químicos e pinéis em geral lá em Santa Teresa... Visitar? Mas qual... A mãe foi lá uma vez e olhe lá. Todo mundo diz que ele está louco, que disse que viu o anjo da morte, que o tal anjo enfiou uma espada enorme no olho dele... que ele sente a espada pendurada na cabeça dele... Não, o pai está preso por maracutaias... Não, sei lá qual foi o problema em que o pai dele se enfiou... Não, sedativo nenhum funciona nele. Ou ele fica gritando, ou gemendo de dor, ou se batendo, tentando tirar a espada do lugar.

_Eu pensei que iria ter de lutar contra você, Trihanon. - Disse eu, não de todo insincero.

_Não seja bobo, eu teria feito você em pó de estrelas. - E soltou uma gargalhada. - Mas ele bem que - Nosso Pai me perdoe - merecia uma lição. Você não sabe quantos demônios eu tive de destruir para tentar proteger o guri. Agora, vou ter algumas férias dele. Trihanon terminou o café, pagou ao garçom e sorriu. - _Anjo da Morte, espero não ter de vê-lo tão cedo.

_Eu digo o mesmo.

_Mas há uma coisa que você não pode dizer de mim, mas eu posso dizer de você. Se você consegue pensar tão rapidamente sob pressão a ponto de mudar a ideia de bem e mal de acordo com a situação, sem infringir nenhuma regra... Você daria um excelente teórico tático. Pena que você nasceu ishin. Você seria um querubim e tanto.

Sorri antes de sumir através de um vórtice para a imensidão das Linhas de Ley. Não disse nenhuma palavra - A verdade é que estava agradecido... E um tanto encabulado.

* * *

O Cego

Tenho que admitir que gosto dessa pegada que coloca seres "do outro mundo" em meio a locais do nosso dia-a-dia - não, espera! Na verdade, nunca gostei disso. Nunca gostei dessa vibe, muito presente em Animes, onde o protagonista combate o mal num mundo paralelo, mas também precisa frequentar a escola e lidar com seus problemas de adolescente comum - essa ideia de dois mundos, overlapping or not, me incomoda, não sei bem o porquê.

Masssss, se tem algo que realmente desperta meu interesse, é a noção de que esses seres presentes no mundo real, obviamente possuem uma aparência diferente - uma que os faz mesclar à multidão, e isso abre as portas para a imaginação. Gostei bastante do foco extremo em detalhes visuais dos personagens, bem como certas ações em meio ao fluxo dos acontecimentos.

==//==

Raramente comento em tópicos relacionados unicamente à escrita - meu lance é comentar Demos, o pessoal sabe bem. Mas abro uma exceção aqui por dois motivos: gosto muito do conceito de que "as coisas não são exatamente o que você está vendo," que é a ferramenta que mais tenho usado no meu trabalho nesses últimos anos, e também é a base dos meus dois jogos favoritos, ever.

E também porque ler esses nomes de anjos da morte, querubins e tal, me trouxe uma lembrança distante do passado, uma que quero desmistificar - tanto contigo, quanto com a galera, pois acho que é um fato interessante:

Há muitos anos, na época em que eu estava esboçando o anjo da liberdade, que seria o terceiro Axis a aparecer no Linhagem, eu lembro claramente de pedir sugestões de nomes lá no Orkut. Não lembro se foi no OFF Topic, ou num tópico aberto unicamente pro assunto, mas lembro de citar detalhes do tal Axis: um anjo que personificaria os conceitos de liberdade, que teria como seu elemento o vento, etc e tal. E alguém sugeriu Mistrahel, que é o nome dele até os dias de hoje. Refresque minha memória: foi você, né? Lembro que o nome veio com toda uma gama de detalhes a respeito do significado, e foi uma conversa bem interessante - tanto que lembro até hoje =)

Citação de: Ciclope online 06/04/2020 às 18:39
Tenho que admitir que gosto dessa pegada que coloca seres "do outro mundo" em meio a locais do nosso dia-a-dia - não, espera! Na verdade, nunca gostei disso. Nunca gostei dessa vibe, muito presente em Animes, onde o protagonista combate o mal num mundo paralelo, mas também precisa frequentar a escola e lidar com seus problemas de adolescente comum - essa ideia de dois mundos, overlapping or not, me incomoda, não sei bem o porquê.

Masssss, se tem algo que realmente desperta meu interesse, é a noção de que esses seres presentes no mundo real, obviamente possuem uma aparência diferente - uma que os faz mesclar à multidão, e isso abre as portas para a imaginação. Gostei bastante do foco extremo em detalhes visuais dos personagens, bem como certas ações em meio ao fluxo dos acontecimentos.

==//==

Raramente comento em tópicos relacionados unicamente à escrita - meu lance é comentar Demos, o pessoal sabe bem. Mas abro uma exceção aqui por dois motivos: gosto muito do conceito de que "as coisas não são exatamente o que você está vendo," que é a ferramenta que mais tenho usado no meu trabalho nesses últimos anos, e também é a base dos meus dois jogos favoritos, ever.

E também porque ler esses nomes de anjos da morte, querubins e tal, me trouxe uma lembrança distante do passado, uma que quero desmistificar - tanto contigo, quanto com a galera, pois acho que é um fato interessante:

Há muitos anos, na época em que eu estava esboçando o anjo da liberdade, que seria o terceiro Axis a aparecer no Linhagem, eu lembro claramente de pedir sugestões de nomes lá no Orkut. Não lembro se foi no OFF Topic, ou num tópico aberto unicamente pro assunto, mas lembro de citar detalhes do tal Axis: um anjo que personificaria os conceitos de liberdade, que teria como seu elemento o vento, etc e tal. E alguém sugeriu Mistrahel, que é o nome dele até os dias de hoje. Refresque minha memória: foi você, né? Lembro que o nome veio com toda uma gama de detalhes a respeito do significado, e foi uma conversa bem interessante - tanto que lembro até hoje =)

Sim, sim! A ideia principal do meu mundo, que agora chamaremos de Cegoverso, é que anjos, demônios, et cetera ad nauseam... Estão aqui, agora, conosco. Não estão ocultos em um manto de mistério, a não ser que seja absolutamente necessário. É ter a consciência de que a senhorinha idosa que incorpora o espírito de uma outra senhorinha idosa de outro plano tem poder, está aqui, é uma espécie de canal entre os planos, que, na verdade... São o mesmo plano que o nosso, mas em dimensão diferente - Isto é, a ideia matemática de dimensão.

Se você, ou eu, ou a vizinha do 308, prestar bem atenção, poderá ver meus personagens. Seres de origem extraordinária, envolvidos em problemas tão tacanhos quanto os nossos. Os Asrail estão em nosso meio, executando seu trabalho, sem dolos.

Mas isto não significa que eles não sofram, que não se sintam injustiçados, que não sintam dor e chorem. Os querubins estão por aí, mas sabem que podem falhar, e falham cada vez mais. Os nephilin estão por aqui e em todo lugar, e o problema deles começa na própria Cidadela de Prata, onde são vistos como seres inferiores.

Mesmo os poderes e divindades deles não os torna imunes à dor dos próprios sentimentos.

Vamos lá que a memória pode falhar: Mistrahel é um anjo dos antigos, da casta dos ishins, que tem poder sobre os ventos. Mistrahel é o nome que ele se deu, simbolizando o antigo grego, que significa "O que desce as colinas em nome de Deus". Veste as cores do outono, e está associado aos que correm livres, "sentindo o vento no rosto".

Feliz, e com um sério problema de memória,

O Cego