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Professor Marbas (#conto #terror #loucura)

Iniciado por Misterdovah, 12/10/2020 às 13:21

12/10/2020 às 13:21 Última edição: 12/10/2020 às 16:51 por Misterdovah
O professor Marbas dizia que "escrever era um ato de engenharia". Eu acho que era isso, estava ocupado demais retorcendo uma página em forma de avião para lançar na direção do Eduardo, contendo uma piada à toa ou um convite pra jogar vídeo game no final de semana.

"Escrever é uma brincadeira muito, muito séria!". Não lembro quando ele disse isso, mas estava anotado no meu caderno e eu li quando fui estudar pra prova de português. Aquelas coisas sem graça de orações coordenadas e subordinadas conviviam com emocionantes poemas e crônicas que faziam valer a pena os dois tempos de 50 minutos de aula na segunda-feira. Marbas, às vezes, superava as expectativas nas explicações: "Deus não construiu o mundo, Deus escreveu o mundo. No princípio, não é o martelo, é o VERBO!".

Eu gostava de escrever, mas não gostava de estudar. Decorar pra passar de ano era muito menos interessante que construir o mundo como Deus. Essa era a promessa do professor sobre o ato de escrever, e ele não estava errado. Foram milhares de páginas e horas que gastei criando cenários, personagens, mitologias e finais terríveis, que na minha cabeça amadora eram épicos. O que importava é que eu gostava.

Eu só tinha um leitor assíduo: Eduardo. Meu melhor amigo sempre estava disposto a dar um parecer "técnico" sobre minha escrita. Muitas vezes, não sabia nem como comentar a vírgula mal colocada ou a grafia inadequada (Duduzinho preferia os números), contudo tinha sempre um comentário comparativo a um filme ou jogo que conhecia, e por causa disso eu me sentia um verdadeiro artista.

Um dia, o professor Marbas desafiou a turma a escrever um conto sobre alguém de nossas vidas. Essa era a hora de eu homenagear meu melhor amigo. Eduardo sempre foi mais afeito aos vilões, devoradores de galáxias e vampiros egocêntricos, então nada melhor que transformá-lo no melhor maldoso que viveu em linhas de papel.

A cada parágrafo, eu imaginava Eduardo lendo avidamente as linhas, comendo sua própria narrativa, um ser que daria trabalho aos magníficos protetores do reino da Terra e colocaria a humanidade inteira de joelhos. A parte em que o Super-Humano se lança contra ele, e ambos atravessam prédios, igrejas, cinemas, teatros e (por que não?) a NOSSA escola (destruir a escola...YES!) levou maior tempo de descrição para que ele sentisse de fato a dor.

Fui o único a terminar.

Professor Marbas leu meu texto sem mudar as feições de seu rosto. Se gostou ou não, não sei, mas no final ele repetiu "Escrever é uma brincadeira muito, muito séria! Ao final, devemos assinar nossas obras para selar esse mundo. Se você escreve algo e sente essa escrita, em algum lugar esse mundo se torna real". Então, ele deu seu visto no caderno. Um M estilizado, como um labirinto de alguns centímetros. Devolveu meu caderno, e eu fui arrumar minha mochila.

Por causa da atividade e da resposta do professor, saí alguns minutos atrasado pro intervalo. Torcia para que houvesse ao menos um pastelzinho na lanchonete, a fome me tinha por completo. Desci as escadas imaginando como seria quando Eduardo visse a si mesmo como um vilão. E se eu colocasse um plottwist e transformasse o vilão no verdadeiro herói? E se eu transformasse ele em um ser imortal? E se eu criasse um saga só dele? Será que um dia Eduardo se veria no cinema e se reconheceria?

Sonhar não mata, né?

Procurei meu amigo no pátio, na lanchonete, na quadra... nada. Encontrei Luciana, uma amiga nossa, e perguntei sobre o paradeiro de Dudu. "Ele está com Roberta".

Ahh... a namorada de Eduardo. Ele me trocava por ela sempre que podia. Que tipo de amigo troca outro amigo por uma desconhecida que surge do nada? Talvez eu sentisse ciúme do meu amigo, mas era porque ele era meu único amigo. Não a queria por perto quando ele lesse seu conto.

Depois de muito resmungar, decidi ir pra sala. Havia uma multidão na beira da escada. Esse povo todo me atrapalharia na minha caminhada repleta de rancor.

"Alguma coisa trombou com ele e lançou da escada".

Essas pessoas não sabem que eu quero passar? Por que ficam na frente?

"Foi muito forte, arrancou ele da minha mão".

Dei de cara com Roberta aos prantos e decidi me virar pra ver. Do topo do lance da escada, no meio do círculo de celulares a postos e funcionários da escola tentando apartar os curiosos, Eduardo jazia com o pescoço virado de uma forma nada humana, braços e pernas dispostos como se fosse um boneco de pano, os olhos me atravessando em direção ao vazio.

"Ele caiu da escada e quebrou o pescoço".

A face de meu amigo morto estava tatuada na minha mente. Não lembrava de seu rosto atento jogando comigo, nem de sua cara de irritado quando a gente perdia um gol nos jogos internos da escola. Era uma pintura infernal de uma aberração que de vez em quando sorria como se ainda estivesse vivo e com aqueles olhos abertos para sempre em desespero e ignorância.

Eu tinha 14 anos quando escrevi a morte de Eduardo.

Acreditei nisso por muito tempo. Parei de escrever e só me rendia a algumas palavras soltas e textos técnicos da vida acadêmica. A ABNT era uma fuga e a minha salvação contra a teimosa literatura que explodia dentro de mim e exigia libertação.

Guardei o texto de Eduardo todo esse tempo. Sim, dele porque foi pra ele. Queria ter jogado a obra no buraco de sua cova, mas decidi manter comigo.

Anos depois, me aventurei novamente na escrita.

Acordei no meio da noite e eu sabia que somente uma folha em branco e um lápis serviriam para exorcizar essa agonia. Não tinha início, muito menos meio ou fim. Professor Marbas dizia que pavimentar o caminho da escrita se faz despejando palavras soltas num papel, como se estivesse "desentupindo" a cabeça. Seria isso?

Fériasfogodordinheiropoderfuturopaifamíliamãeamigomorteenterropassadofelicidadedeuscriançatelevisãofracassodúvidainterneteestudobelezadestruiçãocomputador... e assim fui criando uma banal frase costurada de palavras aleatórias. Com o tempo, algumas palavras sem sentido começaram a aparecer... renichtasauberacebiasaicarrenichtasauberacebiasaicar...

Cansei! As mãos doem! Escrevi com as duas mãos porque a minha mão dominante desistiu. Era visível o garrancho da mão que não tem habilidade escriba nenhuma, mas as palavras queriam sair.

A vontade de escrever voltou. Era prazeroso criar narrativas fantasiosas. Passei a escrever minha própria vida. Coisas que aconteceram e me eram preciosas. A morte de Eduardo se transformou em um poético capítulo. Narrei meus sonhos, minha graduação, meu casamento, a partida de meus pais... em algum lugar do universo aquelas coisas estariam acontecendo naquele exato momento... e se eu as mudasse? Não era interessante procurar um novo final, eu queria mais, eu descobri que eu podia relatar o passado e criar o futuro.

Antes de uma reunião, de alguma proposta de negociação, de qualquer coisa que quisesse, eu escrevia um roteiro e assinava. Selava o texto, não é professor Marbas?

Meu querido professor de português se transformou em uma personagem imaginária, que me respondia às indagações insistentes, que me aconselhava sobre o poder de uma palavra ou outra para causar melhor efeito, que me mostrava versos fantásticos que pulavam na rádio, na internet ou em algum livro que caia da estante.

A vida se transformou em uma poderosa aleatoriedade literária e eu tinha o poder da palavra para me guiar...ou melhor...guiar o mundo.

Nunca mais as rédeas do destino escaparam às minhas linhas metricamente planejadas, divertidamente rimadas, com preciosismos que deixavam tudo mais valioso. Foi assim que escrevi minha filha, minha princesa. Com cuidado, escrevi um reino para ela, onde ela não fazia mais do que ser linda e se divertir.

Karolina nasceu com os olhos azuis do mesmo brilho descrito em um dos meus tomos. Na primeira vez que engatinhou, desviou-se de meus braços e foi em direção ao amontoado de livros que tinha no canto do escritório. Karolina seria uma mestra das palavras como eu. Ensinaria o segredo da vida para ela.

Um conto de felicidade seria a maior herança que poderia dedicar-lhe.

Eu a fiz fada, deusa, heroína, cantora, pintora, musa... e como seus olhos brilhavam cada vez que ela descobria seu papel nos meus contos. Até que um dia, os contos decidiram se escrever sozinhos.

Um papel em branco... nada...

Palavras aleatórias???

Nada...

As palavras estavam inacessíveis e a caneta pesava uma tonelada.

E se eu fosse para o computador? Ouvir música poderia ajudar.

O editor de texto permanecia tão branco quanto o papel, a música embalava minha mente cansada de não conseguir produzir.

Decidi, então, escrever o nome de quem eu mais amava. Um milhão de vezes seu nome era uma epopeia maravilhosa.

KAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDOKAROLINAEDUARDO



De onde surgiu isso????

Meus dedos não obedeciam mais ordens. Era automático escrever o nome de minha filha e o nome de meu amigo. E quantos minutos mais eu fiquei digitando obcecadamente aquelas palavras na tela eu não sei.

Precisava parar.

Escrevia meu amor do passado e meu amor do presente. Sim, amava meu amigo, porque era meu amigo. Amo minha filha, porque é minha filha. Ambos fazem parte de mim. Nem sempre o poeta é um fingidor, senão ele finge o universo inteiro. Forcei...

Forcei...

Já havia mais de 400 páginas de digitação desenfreada e dedos dormentes. Forcei...

Se eu não poderia interromper a digitação, talvez eu pudesse quebrar o teclado. Forcei meus pulsos para baixo, martelando com o que sobrava da mão. Levantei-me aos gritos quando as palavras não eram mais apenas nomes, mas frases unificadas de um desastre. Quebrei o teclado, por fim, mas meus olhos percorriam a tela com assombro:



KAROLINAÉEDUARDOEDUARDOÉKAROLINAKAROLINASAIUPRABRINCARNAPISTAESEUPISADODANÇANTESUMIUDEVISTAEDUARDOLEVOUKAROLINAPORQUEEDUARDOÉKAROLINA.



Corri atrás de minha filha pela casa inteira. As mãos sangravam por conta de cortes do teclado. Minha voz era um sofrido som que pronunciava o nome de minha filha e de meu amigo alternadamente como se ele estivesse ali.

A porta aberta...

Brinquedos no chão...

Uma garoa tímida cobria a tarde como um sufocante véu.

Corri para dentro de casa, liguei pra polícia. Liguei pra familiares. Liguei pra amigos. Ninguém atendia.

"Ai, palavras; ai palavra;

Que estranha potência a vossa!"

Cecília Meireles já avisou o mundo. Muitos já avisaram o mundo. Escrever é criar e essa é a centelha divina em nós. Então, entendendo que os versos de minha vida estavam destroçados, só poderia fazer uma coisa.

"O tributo da vida é o sacrifício de palavras exatas". O professor Marbas surgiu na minha mente, austero e de mãos para trás, como me lembraria dele. "Queima-as com os cortes mais profundos".

Sussurravam em minha mente:

"Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo.", era a voz de Fernando Pessoa?

"Esquecer é uma necessidade. A vida é uma lousa, em que o destino, para escrever um novo caso, precisa de apagar o caso escrito." Esse era o tom de uma conversa com Machado?

"Escritor: não somente uma certa maneira especial de ver as coisas, senão também uma impossibilidade de as ver de qualquer outra maneira". Drummond? É você?

Todas as frases eram acompanhadas por nomes fantasmagóricos e eu nem sei se eram de fato a persona que nesse mundo as pronunciaram, ou mesmo se foram pronunciadas, mas no meu mundo foram. Meu mundo, meu texto. Meu tecido!

Meus nós deveriam ter a única palavra por que tanto ansiei.

O peso das escritas sufocadas se enrolava em meu pescoço como uma cobra. Que pavor eu tinha do gelado daquela massa que não escrevi.

Peguei um papel, escrevi a única coisa que conseguiria. Dobrei um aviãozinho e lancei janela a fora.

No jornal, o corpo de um homem solitário, sem esposa nem filhos, encontrado num cômodo de sua casa. A matéria dizia que o finado era conhecido por ter uma vida bagunçada na sociedade. Envolveu-se cedo com os acidentes, ao empurrar seu amigo da escada da escola e leva-lo ao óbito. Casou-se uma vez, mas a união fracassou após os inúmeros ocorridos de raiva. Era insuportável conviver com ele e suas alucinações. Aposentou-se por invalidez, problemas psiquiátricos irrecuperáveis. Tentou de todas as formas inaugurar uma carreira de escritor amador, mas fracassou todas as vezes.

Em algum outro bairro, um garoto brincava com seu cachorro quando viu um aviãozinho sobrevoando a grama. Curioso, abriu as asas perfeitamente dobradas e leu a palavra "VIDA".

"Há quanto tempo esse pedaço de papel dobrado sobrevoava espalhando vida por aí?"

Riu de si mesmo? Que frescura era essa de ser poeta agora?

' Talvez estivesse prestando muita atenção nas aulas do professor Marbas, que prometeu que no dia seguinte contaria como as palavras transformam o mundo.
Let's create Worlds.