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O demônio particular de Vossa Majestade

Iniciado por Rain, 08/01/2013 às 00:17

Outro textículo meu, dessa vez fantasia medieval. Espero que gostem.


O demônio particular de Vossa Majestade
por Ramon de Souza

   Durante essa minha vida, já fiz muita guarda em muito lugar.
   Ah, muito lugar! Casa de pobre, de rico, em castelo e em prisão; de noite, de dia, durante eclipse lunar. Já protegi escravo, cidadão, fugitivo, criminoso, conde, duque, príncipe, rei, rainha e todo mais. E eu era esse cavaleiro, antigo membro de uma famosa guilda de guerreiros. Era esse homem cansado de batalhas e muita história pra contar, coisa de gente experiente na matança e loucura de guerras inúteis.
   Pois que tenho história da boa pra contar, pois já fiz muita guarda estranha nessa vida, meu filho, mas teve uma que ninguém mais fez! A guarda que era uma honra e que todos queriam fazer, mas só eu e minhas habilidades com a espada e machado conseguiram conquistar. É, homem, foi quando fiz guarda para o Imperador Theodore! Esse sim andava de nariz empinado, de capa limpinha e cheio de servos querendo umas peças de ouro.
   Claro, que nem a cara do homem eu via direito. Eu ficava apenas plantado cheio de pose ao lado do trono de basalto, sem nem ousar desviar os olhos do corredor enfeitado por um tapete vermelho de tecido fino. Chegava a ser maçante, eu naquela armadura quente e pesada, com uma espada inútil descansando em minhas mãos, parado na mesma posição e com o mesmo semblante por horas e horas. Eu tinha vontade de pedir que os servos me abanassem também.
   Dia e noite, noite e dia, eu passava um calor abafado e entediante na sala do trono do Imperador Theodore, grande comandante do Império Ashtar! Ouvindo lamentos medíocres de prisioneiros de guerras, pedidos de emprego como faxineiro nos calabouços fedorentos, resoluções de conflitos com outras civilizações e tantos casos que você nem iria imaginar!
   E depois de fazer guarda por três meses e uma semana, eu notei que o imperador também havia se chateado daquela vidinha monótona que levara a vida inteira, carregada consigo junto á obrigação de passar dias e noites ouvindo os capitães dos exércitos choramingando por mais verba para armaduras e espadas novas.
   Era outra noite quente como o inferno, quando o cenário foi completado por um demônio. Sim, aqueles com chifres, servo do coisa ruim! Era perfeito para o calor que fazia naquele dia. Quando um prisioneiro de guerra foi jogado ajoelhado, obrigado a pedir perdão diante a vossa majestade, que Theodore em seu tom de voz calmo e macio mandou que trouxesse Shurab, que no iniciou raciocinei ser algum tipo de oficial ou inquisidor.
   —Tragam-no aqui, até presença de todos vós, o meu compadre Shurab, que eis de dar-lhe sentença melhor do que minha!
   E eis que trazem em uma jaula, aquela peste do tal Shurab!
   Homem, que meus olhos quase eclodiram, a língua enrolou e o suor começou a escorrer e me molhar toda a perna peluda! Que a criatura dentro da jaula era uma espécie de bode isento de carne, deixando á mostra ossos podres e de coloração marrom. Sua cabeça era adornada com enormes chifres circulares que formavam uma espiral negra e demoníaca, enquanto dois globos oculares (negros e com as pupilas amarelas) ocupavam o espaço reservado para apenas um. Sem falar do cheiro de carniça que se fez no recinto, tanto que, indiferente ao risco de ter as mãos amputadas, os servos cessaram o movimento de abanar e tamparam seus próprios narizes. Quase vomitei. Era a figura perfeita da pestilência, morte e terror vindo das profundas do inferno.
   Foi por isso que, quando a criatura saltou da jaula de aço, revelou uma boca cheia de dentes finíssimos e engoliu toda a cabeça do pobre indivíduo que mal se sucedeu em guerra, não fiquei tão espantado assim. Chupou e chupou a sinagoga do coitado, até cuspir com uma força maldita o corpo inerte com o crânio totalmente limpo de carne e sangue.
   Mediante aplausos do imperador, a criatura fez uma espécie de reverência.
   E noite após noite, um morador dos tristes calabouços era arrastado, aos choros e temores, para em frente do grande Theodore, que gargalhava debilmente enquanto carrascos traziam novamente o maldito Shurab. Cada vez era um espetáculo inescrupuloso diferente que divertia a vossa majestade de modo tragicômico, com o demônio realizando suas matanças sangrentas de modo inovador. Pernas, braços, órgãos chupados para fora do corpo como mágica, enquanto uma infeliz alma descia para sua tumba não sem antes sufocar-se pela ausência de um pulmão ou sofrer com o sumiço repentino do coração. Alguns eram deixados por hora tendo hemorragias internas ou externas, babando no tapete caro enquanto clamava por perdão.
   Tudo isso, mediante aos risos sarcásticos do imperador, que sempre terminava seus shows batendo palmas para a criatura enquanto uns serventes limpavam o sangue ou massa de órgãos.
   E teve a noite fatídica, em que havíamos tido a notícia de que o exército de Theodore havia vencido a guerra contra uma pequena civilização, conquistando seus territórios. A boa nova foi regada por muito vinho e comida boa, mas eu sabia que a noite não tardaria em chegar.
    Noite em que mais uma vez, mediante a um prisioneiro da civilização inimiga, Shurab foi chamado para a nossa presença, mas indiferente ao pedido violento da autoridade, o demônio ficou parado por uns segundos. Foi quando se pôs de pé, em uma visão aterrorizante, e pulou com voracidade para cima do imperador.
   —Shurab, fui eu que lhe evoquei, e agora te vira contra mim!? Vás-te, mate-o, e serve para o que lhe é destinado!
   —Que sou destinado a matar vosso imperador, que comigo fez-vos o contrato maldito. E que tendo vós ganhado a guerra, acabaram-se as ondas de sorte de teu exército. Agora terei minha recompensa, que é tua medíocre e corrompida alma. Ah, isto é o mais doce néctar para nós, demônios!
   E a criatura passou a alimentar-se de meu mestre. Mas hei de mim ter coragem para peitar tal demônio cruel! Não havia não, nem eu, e nem nenhum outro guarda, que continuamos todos na nossa posição de segurança costumeira. Todos parados, ignorantes aos barulhos que a criatura fazia ao deliciar-se de todo pedaço de carne fresca do imperador, aos assovios e sons de batuque que o demônio soltava às vezes, ao som do esqueleto completamente vazio que se fez ao final do jantar inusitado.
   Sem mais, Shurab se foi para sempre em um redemoinho negro e cadavérico, deixando o corpo de vossa majestade para que limpemos novamente, assim como fizemos com todas as pobres almas, já a descansar no inferno.
   Tudo o que me preocupava surgiu depois, quando coloquei pés na entrada, era o próximo lugar ou pessoa que iria guardar. E tudo que fiz foi rezar para que essa pessoa não tivesse um demônio de estimação.
"I used to be a maker like you, but then I took an arrow in the knee."