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O Castelo de Nas Lassa

Iniciado por FilipeJF, 19/09/2020 às 16:49

19/09/2020 às 16:49 Última edição: 19/09/2020 às 19:54 por FilipeJF
Como centelhas fulgentes de chamas rubras
as brumas desgastadas se levantam
suspensas nos leitos dos sopros do leste.
Mas nessa terra acautelam-se, pois
no oriente reina o Oceano Que Cega,
guardador de vastidão entorpecente,
escondedor de relíquias de outrem.
Quando não no oeste o sol se deita
e não no leste sua luz emerge à aurora
a Estrutura escarpada e inominada
um pilar de pedra e aço antigo
levanta-se em perfuração sísmica
como uma afronta à Protetora
e sua lança translúcida e inquebrável, de vidro
e sacode os alicerces
que equilibram o mundo.


Conto para acompanhar: O Equívoco do Sábio


Spoiler
Quando o sol se punha e a noite chegava, abocanhando o mundo com suas trevas inexpugnáveis, um lugar bem específico ousava manter-se desperto nas horas de repouso. Apesar de simplório no que dizia respeito a seus dotes arquitetônicos e serviços empregados, o local era como um farol para viajantes desamparados, como um salão de prazeres para boêmios, como um ambiente de recreação para homens disturbados pelos males da insônia.

A Primeira Luz do Oeste, fora como alcunharam a humilde, mas populosa, taberna aninhada nas encostas arbustivas da área sul dos Picos do Trovão.

As pálidas e vacilantes luzes do firmamento, nesta noite, abstiveram-se do trabalho de decorá-lo, premeditando suas horas de penetrante e silenciosa obscuridade. Então, quando o crepúsculo veio, mergulhou vagarosamente e deformou os horizontes coloridos pelo sol, os fez desaparecer no abraço de suas extensões sombrias. E nesta região do mundo, ao término de uma enorme cadeia montanhosa, as coisas eram diferentes; até mesmo coisas como o dia e a noite, e a noite, sem as estrelas e as luas, era mais escura ali que no resto dos lugares. Mas o refúgio de imperativa existência fora erguido, a Primeira Luz do Oeste, que chamuscava com vigor mesmo em distâncias vastas, e ele acomodava os itinerantes que por ali passavam.

E, em razão das rotas imprecisas do vagar do destino, alguém viu-se nessa situação infeliz de alta escuridão. A silhueta desse alguém se apossou da luz irradiada pelas janelinhas de madeira, que vez ou outra tremeluzia quando alguém passeava pelo interior. Vindas de lá, vozes saltavam animadas, cantarolando ou berrando, e os tons devaneados sugeriam que o álcool já fornecia sua habilidade a muitos sangues alheios, prometendo uma manhã dolorida adornada com nojeiras.

Parado da maneira como estava, não seria estranho dizer que o homem cultivava receios quanto ao ato de colocar seus pés dentro da taberna. Por alguns minutos ele manteve-se daquela forma, ora olhando para os lados, ora encarando as árvores que se aprumavam à esquerda do estabelecimento e rumavam para o norte, escalando as escarpas dos Picos do Trovão. Além dessas coisas, nada seus olhos desenhavam.

Sem luz, ele jamais sairia dali antes do amanhecer.

Portanto, após respirar fundo, ajuntou suas forças, cobriu a barriga e a cintura com sua capa, e encaminhou-se até a porta.

Quando girou a maçaneta e entrou, o regozijo do ambiente jorrou como um espirro de hidromel por sobre seu rosto, inundando seus olhos, seu paladar, suas narinas e seus ouvidos. De algum canto escondido na partição traseira da taberna, que se encontrava do outro lado de uma parede mais adiante, alguém dedilhava notas intensas num alaúde com estrondosa empolgação. Avançou, contornando uma disposição inconsistente de pessoas extasiadas que delineava várias mesas de madeira nutridas de canecas, jarros e muitos alimentos: pães e queijos; peixes; arroz e feijão; batatas e espigas de milho. Girou a cabeça e notou o balcão na extremidade direita da parede à sua frente, que se erguia como uma divisória a interligar o salão de músicas com a área na qual estava. O visitante agradeceu que ninguém lhe dera muita atenção, e, calculando seus passos no núcleo da algazarra, dirigiu-se até o balcão e sentou-se em um banco.

Um homenzinho rechonchudo, de complexão avermelhada, vestido com um avental sujo e remendado, calvo, dirigia-se de um lado para o outro com fantástica destreza para alguém cujo físico não esbanjava saudabilidade. Suas mãos iam e vinham, em um piscar de olhos, das prateleiras e das mesas, servindo e reabastecendo. Ladeando a parede central, na parte interna do balcão, uma escada em espiral perfazia seu caminho até o segundo andar, onde decerto havia um armazém.

Quando o taberneiro pareceu notá-lo, o visitante pressionou as laterais da capa com uma das mãos e inclinou-se sobre o tampo lustrado.

-

Para Mehlia, costumeira habitante da Primeira Luz, a noite não seria mais capaz de render ocorrências substanciais. Sentada sob uma candeia que morria, solitária em um canto afastado, deliciava-se com um jarro pela metade de um vinho lombasiano barato. À sua direita, a janela estreita, entreaberta, balançava e rangia quando o vento descendia murmurante das altitudes das montanhas.

Com as pernas cruzadas, depositou o jarro por entre as coxas e alcançou a mesinha redonda ao seu lado, por sobre a qual dispunha-se seu bornal de couro. Após abri-lo para fuçar em seus incultos utensílios, serviu-se com um cachimbo de urze-molar, manufaturado no oeste distante, no Arquipélago do Óbito, onde predominava-se a produção de fumo e de artigos para exercê-lo. Do bolso do gibão castigado, cuja cor desvanecera e dera lugar a uma palidez pontilhada por máculas de sujeira, removeu uma sucinta bolsa de pano. Espalmou sua mão debaixo dela e resgatou uma modesta quantidade de erva-branca, que comprara na taberna pela hora de sua chegada, e almejou sua caixa de fósforos sobre a mesa.

Tragou e soprou. A brasa piscou em incandescência escarlate e ciciou, por um instante, como o pavio fagulhento de um explosivo. A fumaça espiralou através de seus lábios rachados, arremetendo-se em anéis translúcidos contra o cômodo vibrante que fedia a suor, fumo e álcool. Inquieta, bebeu do vinho, fazendo uma careta.

Seus pensamentos começavam a convergir com afluências perigosas quando algo lhe roubou a atenção. A janela, empurrada por uma corrente agitada, gemeu e revelou uma suspeita silhueta parada na penumbra entre a taberna e a noite máxima. Tal presença manteve-se ali por uns bons momentos, intrigando a moça que se embriagava. Até que enfim decidira encaminhar-se para dentro.

O homem adentrou sem estardalhaço, e os clientes sequer deram-lhe atenção. Mas Mehlia, na parte escura do cômodo, contemplou-o com olhos semicerrados: uma capa polida verde-escura cobria seus ombros e descia até as panturrilhas, escondendo suas possíveis provisões, e delimitava-se com o cano alto de um par de botas escuras.

Mas o que lhe fornecera indagações fora o cabelo: longo e ondulado, da cor de nozes, realçando com gigantesca harmonia a pele escura. Quando o visitante dirigiu-se até o balcão e habilmente contornou o furdunço localizado na área da entrada, os olhos de Mehlia semicerraram-se ainda mais e ela bufou, cerrando os dentes.

-

O visitante emborcou de uma só vez o conteúdo dourado de uma caneca rachada de madeira e suspirou. O prazer do álcool saciou sua secura e inspirou sua ânsia por uma noite de descanso. Passando a língua pelos lábios, degustou da deixa que o mel lhe proporcionara, e girou o pescoço, perscrutando o ambiente de alegria indômita. Um grupo de homens, de pé ao redor de uma mesa abastecida apenas com jarros de cerveja, com cabelos negros espessos e oleosos, dançavam com copos na mão e cantavam canções manjadas dos marinheiros do oeste, vozeando exemplos de temas sobre saudade e sobre a impiedade mortífera dos ferozes mares do mundo. Noutro local, recostada na parede onde estava a porta de saída e entrada, uma moça mantinha o rosto enrubescido abaixado enquanto analisava o sussurrar galanteador de um homem jovem, cuja compleição alta e confiante, vestida com artigos de seda, impunha-se sobre sua forma minguada.

De repente discerniu, para além do tumulto festivo, um arrastar brusco sobre o assoalho. Perseguiu a origem do som. Em um canto sombrio, denotou uma mulher de cabelos curtos de pé ao lado de uma janela escancarada. Debaixo dos fios desgrenhados de uma franja loira, olhos escuros pareciam encará-lo. Estranhando, o visitante desviou o olhar e mirou o fundo espumado de sua caneca vazia.

Mas não tardou até que uma sombra se alongasse, como um espectro vil, sobre seus braços relaxados.

— Que surpresa — disse uma voz feminina familiar, quase sussurrando, em íntima adjacência com sua orelha. O vapor quente expelido junto à voz canalizava o odor de álcool. — O enganador salafrário que roubou dinheiro e condenou a vida de gente inocente: Nyox Gana.

Mehlia afastou-se e puxou uma cadeira, sentando-se paralela a Nyox Gana, que trancafiou as pálpebras e praguejou em silêncio.

— Mehlia, Herdeira do Danere — disse ele, respirando fundo e abrindo os olhos. — É verdade, então, que sua habitação se degradou desde seus tempos de glória. Ainda está fumando? Pelo que me recordo, naquele dia você fumava um tipo de tabaco fedorento do sul.

— É impressionante como ainda há ímpeto nesse coraçãozinho — disse ela, ríspida. — O que eu faço não lhe diz respeito algum, Gana. Você não passa de um servente desgraçado de um império morto.

Nyox Gana grunhiu, passando os dedos calçados pela superfície da caneca.

— Veja-me mais uma rodada, senhor taberneiro, e sirva uma para ela também.

Ao seu lado, Mehlia bufou e projetou um sorriso desacreditado.

— Por Zediel. Acha que me comprará com uma caneca de cerveja ruim?

— Não. Mas acho que, já que estamos aqui, e meu temor de ser reconhecido deu-se por um fato, talvez possamos discorrer sobre o que ocorreu em sua última empreitada.

— Esperava não ser reconhecido? — ela riu. — Inteligente como é, deveria saber que ações geram reações, por mais tardias que estas sejam. Alguém o reconheceria, hora ou outra. Você está com sorte. Podia ter se deparado com alguém de pavio curto.

O taberneiro aproximou-se, recolhendo o recipiente vazio. Passado um instante, retornou com duas canecas coroadas por camadas transbordantes de espuma.

— Não seja arrogante e prepotente, Mehlia. Não alimente sua ignorância com falsas conjecturas sobre mim.

— O quê? — rosnou Mehlia, apanhando a caneca com fúria. Bebeu um gole e roçou as costas da mão sobre os lábios molhados. — Ignorância? Poupe-me de sua tagarelice sem sentido. Tudo o que colhemos foi o fruto podre de sua mentira! Você não faz ideia do que passamos naquele deserto, Gana. Não sabe do sofrimento que nos assolou dentro do Castelo.

Nyox Gana bebericou um pouco da espuma, meditativo. Reconhecia o papel silencioso que devia desempenhar neste momento.

— Você investigou o mapa e afirmou a precisão de sua leitura — continuou Mehlia. — Disse-nos que decifrou, que desvendou os detalhes das armadilhas e dos enigmas do Castelo. Quando avistamos a estrutura ciclópica no horizonte de nossa visão, erguendo-se como uma montanha além das cortinas brumosas que se levantam cintilantes das dunas, um orgulho interpôs-se no âmago do grupo. Ficamos animados, pois confirmamos que Sábio Danere estava certo quanto ao local de surgimento do Castelo. Como contávamos com a precisão de sua leitura, mais confiança inflou nossa convicção. Estávamos certos de que encontraríamos itens de valor e respostas sobre a história primitiva do mundo.

— A minha leitura foi precisa — disse Nyox Gana.

Mehlia rosnou. Cerrou um punho e o bateu contra o tampo do balcão. Líquido escorreu da borda de sua caneca e as pessoas que sentavam-se por perto se atiçaram, surpresas. O taberneiro lançou à Mehlia um olhar desaprovador, mas não a advertiu.

— Pela benevolência de Zediel, Gana! Chega de mentiras. Pagamos-lhe uma fortuna e você nos forneceu falsidades. Lá dentro, em corredores abobadados iluminados com estranhas luzes brancas, fomos surpreendidos por enigmas inéditos, por armadilhas de engenho e fatalidade impensável, por criaturas atemporais cuja forma corporal nem mesmo limitava-se à fisicalidade que nos permeia, por...

Nyox Gana arqueou as sobrancelhas e a interrompeu:

— Criaturas atemporais? Luzes estranhas? Do que estamos falando aqui, mulher? Há como melhorar essas descrições?

— Estúpido! — vociferou Mehlia. — Não se faça de bobo, não diante de mim, a quem você deve explicações. Quando eu regressei, mais morta do que viva, ao Oásis, você já havia partido; e à mercê da morte nos deixado. Por que houve de mentir sobre o mapa, Gana?

Precisava tanto assim de dinheiro? Gastou suas economias com as especiarias dos bordéis locais?

Nyox Gana passou a mão enluvada sobre o rosto e massageou as têmporas.

— Muito bem, Mehlia — ele respirou fundo. — Eu hei de suprir suas indagações com a mais pura honestidade, e espero que você, depois disso, consiga transpor a insensatez que esquenta sua cabeça. Talvez amanhã, quando o álcool se esvair. Portanto, beba pouco, para que se recorde do que eu direi, pois eu já...

— Pare com essas enrolações, de uma vez por todas! — interveio ela, o dedo indicador pulsando nervoso sobre a perna. — Apenas me explique, por quê?

— Minha leitura do mapa estava correta, Mehlia. Sou conhecedor do namtu — disse Gana. Deu dois goles na cerveja. — Após todos esses anos, creio que minhas conclusões quanto ao que aconteceu sejam as mesmas que você decerto alcançou em seus pensamentos, mesmo com seu ceticismo inabalável.

— Não sei de conclusão nenhuma, Sábio. Clareie-me.

— Algum habitante do Castelo previu a chegada de vocês e repensou a natureza dos enigmas — disse ele, virando-se e encarando os olhos escuros de Mehlia — ou alterações na arquitetura foram promovidas previamente à organização da itinerância de vocês, talvez gerações antes.

Mehlia meneou com a cabeça e em seguida esvaziou a caneca.

— Não pode ser — disse ela, batendo o fundo da caneca no tampo do balcão. — O mapa de Danere era recente, algum acerto devia ter provindo dele. Sua convicção, não, nossa convicção... — ela parou, apoiando os cotovelos sobre o balcão e escondendo o rosto debaixo de suas palmas suadas. — Danere não pode ter errado desse jeito.

— Eu fiz a leitura da grafia namtu sob o conhecimento que detenho. A não ser que estudos seculares estejam equivocados e nossas traduções todas errôneas, não há como eu ter falhado.

Mehlia grunhiu e se afastou do balcão. Olhou para Nyox Gana.

— Talvez esses estudos estejam equivocados. Talvez você esteja apenas retocando a mentira que há muito jogou sobre mim. Mas isso não importa — um brilho sinistro pareceu refletir em seus olhos negros. — Pois foi você que afirmou saber, com ampla clareza, o que estava escrito no verso do mapa, e foi com essa afirmação que nossa jornada foi anunciada. Você assassinou Danere.

— Você está bêbada — disse Nyox Gana, voltando a atenção à sua caneca. Emborcou-a. — Sábio Danere, apesar de inteligente, era um homem, e homens costumam cometer muitos erros. Alguns que podem custar a própria vida.

Ao captar as palavras finais, uma onda expansiva de calor apossou-se de Mehlia como uma brisa impetuosa de chamas invisíveis, alimentando o combustível de uma raiva suprimida. Enquanto Nyox Gana empurrava a caneca para o lado oposto do balcão, os dedos da mulher acariciaram o cabo gasto de sua adaga embainhada pendurada no cinto.

— Você ultrapassou muitos limites, sábio tolo. Como ousa insultar Danere?

Nyox Gana riu.

— Por favor, mulher. Eu não insultei ninguém. Está na hora de encarar a realidade e deixar isso para trás. Aproveite sua vida, não viva nas garras do passado. Felicite-se com o fato de que ainda está inteira, mesmo após aventurar-se nos corredores de luzes estranhas, como você mesmo disse, do Castelo de Nas Lassa. É uma tarefa que poucos conseguiriam completar, mas você conseguiu. — Ele levantou-se, cobrindo-se com a capa, e deu um tapa no ombro coberto de Mehlia. — Agora, se me der licença, vou me recolher nos aposentos que custeei. Há muito chão pela frente no dia de amanhã que preciso ver, e logo ao princípio da aurora partirei. Foi bom falar com você. Boa noite.

Então, girando pelos calcanhares, Nyox Gana embrenhou-se através do duradouro festejo e dirigiu-se até o silencioso salão de músicas.

Mehlia permaneceu sentada, imbuída de abalos. Seus olhos observaram com vítreo desinteresse as ações ágeis, mas exaustas, do pequeno taberneiro. Mesmo sob as palavras de aparente crueza proferidas por Nyox Gana, aglomerações de incredulidade e negação navegavam suas marés conturbadas de pensamentos que não se calavam. O álcool já não lhe era um utensílio de esquecimento momentâneo; na verdade, tornara-se o exato oposto, sempre lhe revivendo os instantes de tensão e desesperança na profundeza do Castelo, onde perdera seu grande amigo e mestre, Sábio Danere. No passado, fizera a ele um juramento, onde prometera jamais ajoelhar-se perante a outro mestre para absorver conhecimento sobre os caminhos ocultos da magia. Portanto, sua honra impedia-lhe de continuar o caminho com o qual sempre sonhara; ou aprenderia sozinha, ou não aprenderia.

E, até então, ela nada aprendera.

Afluências de negatividade abundaram-se nos seus filtros mentais. A presença de Nyox Gana apenas trouxe-lhe mais dor. Ela precisava de mais. Precisava saciar sua vontade, sua negação, seu torpor.

Se alguém ainda permanecia com algum grão de responsabilidade pela queda de seus companheiros, era aquele homem.

-

Fora em gélida e sossegada aurora que Nyox Gana despertou, acordado pelos primeiros cantos matinais da fauna da floresta circundante. Uma leve dor de cabeça assentava-se sobre sua têmpora esquerda, recordando-lhe com veemência que a juventude já não lhe era uma comparsa de farras alcoólicas.

Com um longo e cansado bocejo, espreguiçou-se, sentando-se sobre o colchão surrado do quartinho mais barato da Primeira Luz do Oeste. Olhou pela janela condensada: uma cerração úmida e espessa a lambia no lado exterior, prenunciando o princípio do inverno sulista. Respirando fundo e articulando em seus recintos mentais os caminhos árduos adiante, levantou-se num pulo, ajeitou-se e desceu pelos degraus ainda escurecidos, que grasnaram em rouquidão sob seu peso.

No balcão, o taberneiro adormecia sobre uma cadeira e mantinha as pernas cruzadas por cima de um banquinho. Nyox Gana assoviou, acordando o pobre homem com um ressalto estupendo que o obrigou abrir um sorriso desajeitado. Adquiriu algumas provisões e pagou a noitada do dia anterior e despediu-se. No frígido exterior, encolheu-se sob a capa e fitou o horizonte de sua jornada, que consistia no oeste ainda encoberto pela cortina pálida de uma neblina intensa. Mas assim que o resplendor do sol se erguesse em sua totalidade por cima da curvatura do mundo, Nyox Gana apertaria o passo e desaparecia na distância.

No entanto, assim que deu início à sua marcha, seus olhos se depararam com uma estranheza na terra que delineava a fronte da taberna: sucintas depressões, quase indetectáveis, saíam das preliminares da porta e locomoviam-se num rastro recurvo e tortuoso, pela sua direita, até sumirem por detrás da lateral do estabelecimento.

Nyox Gana avançou com passos lentos, silenciosos, e recostou-se pouco antes da curva da parede.

Do outro lado, esmaecida na névoa inescrutável, solas pesadas mastigaram relva orvalhada.

Nyox Gana meneou com a cabeça, amaldiçoando a escadaria indecifrável do destino.

Retirou a luva da mão esquerda e a largou no chão. Estalou o pulso e esticou os dedos, aquecendo-os, e arremeteu-se contra o beco na lateral do estabelecimento.

Apaziguada e quase consumida pela névoa, uma silhueta familiar sobressaltou-se diante de sua investida repentina e recuou. Uma lâmina curta sibilou ao saltar deslizante de dentro de uma bainha.

— Empurrou meus conselhos goela abaixo com suas enxurradas de álcool? — questionou Nyox Gana, balançando os dedos canhotos como se estivesse prestes a alcançar o punho de uma espada inexistente em sua cintura.

— Homens como você precisam pagar pelos erros que cometem — Mehlia reajustou sua compostura e adotou uma posição cautelosa, separando os calcanhares e dobrando os braços à frente do corpo. O aço límpido brilhava sobre sua mão direita.

— Seus olhos enxergam apenas o que desejam, Mehlia. Mesmo depois do que conversamos não percebe isso? Os únicos responsáveis pela morte de seus companheiros são eles próprios. E você.

A mulher não retrucou com palavras. Investiu em passadas largas e ágeis, da forma como um assassino profissional o faria. Saltou para o lado em um movimento ludibriador e lançou seu braço à frente, intencionando uma fisgada direta ao pescoço descoberto.

No braço esquerdo de Nyox Gana, viu-se um relampejo. Uma amálgama faiscante de tons alaranjados emergiu quando o ar se distorceu em uma espiral translúcida, afastando a cortina nebulosa com o impulso selvagem de um sopro inesperado. Com impossível velocidade, um silvo aguçou-se sobre a manhã aquietada e escorreu de dedos nus na direção da mulher em ligeiro movimento.

As pernas de Mehlia retrocederam com o impacto, e o ângulo de seu corpo modificou-se, a adaga escapando como um graveto de suas mãos esvoaçantes. Ela caiu com um grito, mas calou-se quando seu rosto amassou com violência o gramado.

Gemendo e choramingando, Mehlia girou sobre o próprio corpo e ficou de barriga para cima. Seu nariz estava torto e leitos de sangue escorriam pelas suas narinas. Seus olhos escuros, entreabertos, brilhavam lacrimejantes.

— Monstro! — rugiu ela numa voz despedaçada, mal conseguindo encarar a austeridade de Nyox Gana a observando do canto dos olhos.

— Eu a aconselhei com verdades. Mas você optou pelo caminho irracional de violência, decidiu alimentar as mentiras que a corroem faz muitos anos. E elas finalmente terminaram de corroê-la.

— Eu não vou deixá-lo... — começou Mehlia a dizer, a voz vacilando. Mas o tom de Nyox Gana a interrompeu:

— Chega. Você me julga erroneamente como um igual, Mehlia. Não percebeu o que acabou de acontecer? — ele posicionou o braço esquerdo onde os olhos dela podiam ver com facilidade. De repente, uma linha tortuosa de luz escarlate, similar à de um relâmpago, piscou frágil sob a camada de sua pele e sumiu. — Eu não preciso de um canalizador, Mehlia, para fazer uso do Sinal de Invocação. Eu fiz do meu corpo um canalizador. Posso manipular a Essência em menos de um segundo. Você nunca terá nenhuma chance de se aproximar de mim — os olhos dele desceram, indiferentes, até as pernas imóveis. — Muito menos agora.

O coração de Mehlia, já disparado, acometeu-se com novas ondas de desespero. Mehlia engoliu em seco, e com esforço, apoiou-se com os cotovelos sobre a relva. Seus olhos se arregalaram quando sua visão se esticou sobre seu corpo dolorido. Quando eles processaram a cena, foram acompanhados por um tremendo grito histérico.

Nas junções de ambos seus joelhos sua pele estava carbonizada, enegrecida como carvão. Veios chamuscados ainda podiam ser vistos sobre a carne, avivados e vermelhos, dentro das fissuras que o golpe abrira com o impacto flamejante. O ataque destroçara seus ossos e quase amputara metade de suas pernas.

Ela cedeu, voltando a se deitar. Cobriu os olhos com um dos braços, chorando e soluçando.

— Eu já olhei dentro das encruzilhadas do passado e do futuro; já senti a morte, mas a superei. Contemplei violência e benevolência em proporções equivalentes, e sei o infortúnio que o caminho sangrento traz. Você escolheu este caminho ao me atacar. Minha retribuição foi exercida com o mesmo lado da moeda.

Nyox Gana murmurou um mantra secreto. Em sua mão esquerda materializou-se uma pequena magnólia, não maior do que seu dedo mínimo, de pétalas azuis que estavam ainda por desabrochar. Ele ajoelhou-se e a posicionou sobre o peito ofegante de Mehlia.

— Quando essa flor desabrochar, misture-a com seu chá preferido. As aflições que hoje lhe atormentam serão esquecidas e seu corpo será curado.

Com aquelas palavras, Mehlia absteve seu desalento angustiado. Secou as lágrimas com os dedos e revelou os olhos inchados. Nyox Gana a fitou.

— Permaneça no meu encalço, porém, — disse ele —, e eu não lhe serei clemente. Use o tempo em que estará incapacitada para refletir. Quando se recuperar, adote outras medidas nos rumos de sua vida.

— Homem tolo... — gemeu ela, sussurrante.

Nyox Gana colocou-se de pé. — Eu não diria que a tolice aqui aplica-se a mim. Até mais ver, Mehlia — disse, dando uma meia-volta. A mulher grunhiu, mas nada disse, ciente de sua derrota absoluta. Nyox Gana recuperou a luva que descalçou quando do princípio da contenda, e, ajustando a alça de sua bolsa debaixo da capa, mirou o oeste e avançou através da estrada terrosa.

Uma segunda chance, pegou-se pensando, muitos merecem. Mas mantenha-se na linha de seus erros, aceitando a loucura que os rege, e sua existência será cancelada antes de sua plena realização. Mesmo os mais clementes corações podem se cansar.

Ele partiu na esperança de jamais avistar a mulher outra vez.
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fear is the mind-killer