Levou um certo tempo até que Rasler pudesse passar todas as informações sobre a operação para nós, como de costume, fiquei responsável por me atentar aos detalhes mais importantes em relação ao plano que deveríamos executar, enquanto Victorio preparava sua estratégia para os futuros conflitos que poderiam vir a acontecer no caminho até Flecentolia. De acordo com Rasler, a operação tem como intuito sequestrar a princesa Lorenta, não como forma de ataque, e sim como uma estratégia do rei Ramidas. Segundo os planos do rei, sequestrando a princesa, Flecentolia, que é um país neutro em relação à aliança das nações, procuraria pela princesa em territórios que não fazem parte da jurisdição deles, então seria o momento para que a embaixada de Valflera, no caso Victorio e eu, entrássemos em contato dizendo que Valflera conseguiu resgatar a princesa. Desse modo Valflera conquistaria a confiança de Flecentolia e seria a hora perfeita para oferecer uma união. Ideia arriscada, não posso dizer o que o rei tinha em mente ao formular algo tão insano como isso, mas ainda existem chances de dar certo, mesmo que elas sejam mínimas, servirei ao rei até que não possa mais.
– Romiel, passaremos a noite aqui dentro do palácio e amanhã ao nascer do sol partiremos, acho que poderia usar o tempo para descansar um pouco. – disse Victorio.
– Descansar? Mais? Eu passei cerca de três dias dormindo, só de pensar em dormir novamente me faz sentir arrepios! – disse com um leve sorriso no rosto – Acho que irei para meu quarto finalizar alguns estudos que estive fazendo antes da guerra, acho melhor finalizá-los antes de partirmos.
– Compreendo, pois bem, vou checar maiores detalhes sobre a nossa partida, até breve, Romiel! – disse Victorio ao deixar a sala.
– Vocês são realmente muito próximos, não? – me perguntou Rasler, logo após Victorio deixar a sala.
– Pode-se dizer que sim. Victorio é o mais próximo que eu já tive de uma família, sem contar que batalhamos lado a lado por muitos anos, posso dizer o que se passa naquela cabeça de vento apenas olhando para ele. Mas, por que a curiosidade, Rasler?
– Nenhum motivo em particular, só queria saber a origem da proximidade entre vocês dois, sabe, não é comum duas pessoas com a importância de vocês chegarem atrasados em uma reunião de emergência com o rei. – disse Rasler, se mostrando um pouco cuidadoso com suas palavras.
– Não se preocupe conosco, Rasler, temos idade suficiente para tomarmos nossas decisões e para arcar com as consequências delas. Agora, se me der licença, eu realmente preciso ir para meus aposentos.
– Ora, o título de lorde realmente lhe cai bem, mesmo desconfortável não deixa de ser tão elegante. Não há necessidade dessas formalidades, somos amigos, não somos? – Rasler me olhou com um olhar diferente do habitual, pude sentir que ele estava escondendo algo, mas resolvi evitar o conflito. – Mas tudo bem, Romiel, já me encarreguei de arrumar tudo o que você precisa em seu quarto, então não se preocupe nada, apenas tenha uma boa noite de sono!
– Agradeço sua gentileza, porém eu realmente preciso ir, passar bem, Rasler. – digo sem esperar nenhuma resposta, apenas me levanto e deixo à sala.
Após deixar a sala, intrigado com o a maneira estranha que Rasler se dirigiu a mim, segui diretamente para meus aposentos dentro do palácio. Andei por alguns corredores ainda movimentados por conta da reunião, porém um tanto mais calmos e mais vazios, permitindo assim que eu pudesse me mover mais rápido. Antes mesmo de entrar no meu quarto, senti uma sensação estranha quando parei enfrente à porta, senti como se alguém estivesse me observando, como se alguém além de mim estivesse parado ali. Resolvi não me prender nisso, abri a porta do quarto e entrei. A sensação só piorou. Mesmo que as coisas ainda estivessem no seu devido lugar, sentia como se eu não estivesse em meus aposentos, e sim em um lugar estranho. Mesmo me sentindo um tanto desconfortável, resolvi parar de pensar nisso e partir para a escrivaninha para finalizar meus estudos, assim como havia dito para Victorio.
Perdendo completamente a noção do tempo, fiquei o restante do dia estudando e trabalhando sobre algumas teorias e feitiços novos que já estavam em desenvolvimento, um sacerdote precisa fazer muito mais do que apenas estudar sobre magia. Eu não poderia deixar que a operação falhasse, sequer participei dos acordos de paz que foram selados ao fim da guerra, o máximo que poderia fazer, então, seria dar o meu melhor durante a operação. Fiquei um longo período trabalhando, com isso não consegui notar a chegada da noite.
Já era bem tarde e eu precisava dormir um pouco antes que amanhecesse e partíssemos para Flecentolia, então resolvi fazer uma pausa nos estudos e ir me deitar um pouco. Não dispunha de muito tempo para dormir, mas para mim, dormir pouco era uma rotina e eu mal sentia necessidade de sono como as outras pessoas. Por mais que tentasse, não conseguia pegar no sono, me revirava de um lado para o outro na cama mas era em vão, por mais que tivesse um pouco de sono, simplesmente não conseguia dormir e sentia aquela sensação estranha que senti quando entrei no quarto anteriormente. A manhã, por outro lado, não se importava com meu mal estar e chegou em um piscar de olhos, assim como Victorio, que entrou correndo no meu quarto sem nenhuma cerimônia.
– Para quem não queria descansar, você acabou é dormindo demais, Romiel! – disse ele cruzando os seus braços.
– Agora não é hora, Victorio, não consegui pregar os olhos sequer um minuto durante a noite, e para piorar ainda mais a situação, eu não estou me sentindo muito bem.
– Ora! Vamos, não diga isso. Você realmente vai ficar doente no dia em que partiremos para Flecentolia? – disse ele, tentando amenizar a situação com um sorriso, porém era nítida sua preocupação. – Levante e se prepare para partir, irei lhe buscar algo para beber e comer, portanto não demore!
Vendo Victorio deixar o quarto, pude notar que minha visão estava turva, sentia meus olhos pesados e meu corpo estava trêmulo, o que era estranho pois antes de me deitar não me sentia assim, porém não posso e nem quero deixar que percebam que estou me sentindo mal dessa forma, preciso me levantar e arrumar minhas coisas antes que o Victorio volte, assim como impedir que ele perceba que estou com um mal estar terrível. Mesmo com um pouco de dificuldade para ficar em pé sem perder o equilíbrio, me levantei e me dirigi até minha escrivaninha para pegar alguns papéis e adicioná-los à minha bolsa. Eu esperava que Victorio fosse demorar um pouco, do jeito que ele é distraído ele provavelmente ele acabaria se atrapalhado e derrubado as coisas, mas, por incrível que pareça, ele não demorou tanto assim para voltar, no tempo de terminar de arrumar minhas coisas e sentar novamente na cama para ver se a minha visão voltava ao normal e se as vertigens parariam de me atormentar, Victorio entrou no quarto carregando consigo uma bandeja não muito grande, nela haviam dois pães pequenos e um jarro com algo que eu pudesse beber.
– Aqui está, não temos muito tempo sobrando, então coma logo! – disse ele, colocando a bandeja sobre a cama. – Sabe, Romiel, apenas por entrar nesse quarto senti uma sensação estranha, você está começando a me deixar doente.
– Ora, não diga besteiras! – exclamei – Você mal chegou perto de mim, não é possível que eu tenha lhe passado algo assim tão rápido.
– Onde está o seu senso de humor, Romiel? – perguntou Victorio, levando sua mão direita à cabeça.
– Agora não é o momento mais propício para fazer piadas, mas agradeço seu esforço. Pois bem, me diga, todos os preparativos já estão prontos para partirmos? – perguntei enquanto me servia.
– Oh, sempre falando de trabalho. Mas devo dizer que as coisas estão sendo muito bem preparadas, até então está tudo ocorrendo como o planejado. Nossa carruagem já está pronta e abastecida, e o restante da equipe escalada para a operação já está se preparando, como nós fazemos parte da primeira fase eles precisam esperar a nossa partida para iniciarem a parte deles. – mesmo sendo brincalhão demais, Victorio sabe a hora de ser sério e sempre me explicou os detalhes de nossas operações com muita clareza e objetividade.
– Compreendo. – afirmei. – Então somos o ponto de partida para a operação, isso é um tanto complicado para nós, se algo der errado enquanto estamos executando essa etapa, a operação inteira será perdida.
– Não existe esta opção, Romiel. – ao dizer essas palavras, Victorio ficou um tanto sério. – Nós não podemos nem pensar que algo pode dar errado durante a operação, não faremos isso por nós, e sim pelo reino de Valflera e ainda mais pelo rei Ramidas.
– Não se preocupe com isso, já terminei o que tinha para fazer aqui, podemos partir quando você quiser, Victorio. – disse enquanto me levantava e seguia em direção a minha bolsa.
Victorio não disse nenhuma palavra, apenas seguiu em direção a porta e deixou o local, o que deixando o caminho livre para eu segui-lo, como de costume. Mesmo não me sentindo muito bem, com a visão ainda turva e agora com um pouco de náusea, eu resolvi não contar para ele o que estava acontecendo, não queria preocupá-lo com esse tipo de coisa e desvirtuar sua atenção que deveria estar completamente na operação, porém, sentia como se fosse desmaiar a qualquer momento. Andamos pelos corredores do palácio por um tempo não muito longo, mas em vez de seguirmos direto para a entrada principal, onde estaria nossa carruagem, seguimos para a parte dos fundos, onde o acesso é um pouco mais restrito e raramente se vê alguém da alta sociedade seguindo naquela direção, o que me deixou um tanto intrigado com o que Victorio pretendia conseguir indo aos fundos do palácio momentos antes de nossa partida. Por mais que eu quisesse perguntar a ele o que estava acontecendo, resolvi me manter calado e deixá-lo me guiar, como não estava no meu melhor estado, seria inconveniente tanto para ele quanto para mim se parássemos para conversar sobre um assunto não tão relevante.
Depois de andarmos um pouco pelo palácio, chegamos em um lugar que eu jamais estive antes, era uma espécie de depósito onde de tudo poderia ter, consegui enxergar superficialmente o que havia lá dentro, em grande maioria estantes com armamentos e poções, além do lugar ter uma iluminação muito fraca, o que me deixava ainda mais atordoado. Ainda sem dizer nenhuma palavra, Victorio olhava de um lado para o outro, como se tivesse perdido alguma coisa. Intrigado com as ações dele, resolvi então perguntar sutilmente o que ele procurava, mas, ainda assim, me mantive um tanto retraído para que ele não suspeitasse que minhas condições estavam piorando.
– Veio buscar algum armamento para reforçar nossa segurança durante a viagem? – perguntei, enquanto me apoiava em uma das estantes.
– Não. – afirmou. – Rasler me disse para vir aqui antes de partirmos, ele disse que preparou algumas poções e antídotos para nós, caso tenhamos algum imprevisto no caminho até Flecentolia.
– Hm. – murmurei. – Gentil da parte dele se preocupar com isso, não acha?
– Realmente, não esperava que Rasler fosse se preocupar com esse tipo de coisa, principalmente quando se trata de nós dois, já que ele provavelmente deve pensar que o rei confia mais em nós do que nele. – ainda procurando pelas poções deixadas por Rasler, disse Victorio.
– Não creio que ele pense dessa maneira, mas, de qualquer forma, precisamos agradecer pela gentileza dele.
– Achei! – gritou Victorio. – Aqui estão, esse bilhete intitulado com nossos nomes deixou muito óbvio que eram essas as nossas poções. – ele riu, um tanto desajeitado.
– Ótimo, agora podemos partir, não podemos? – perguntei, suplicando internamente para que ele dissesse sim.
– Bem, caso você não tenha mais nada para fazer aqui no palácio, acredito que sim, podemos partir.
– Acredito que não, tudo o que eu precisava fazer, já fiz, creio eu que podemos partir agora. – disse me virando em direção a porta, e então Victorio e eu andamos no mesmo momento até chegarmos próximo a ela. Ao me aproximar um pouco mais, senti uma vertigem muito forte e acabei perdendo o equilíbrio, o que me fez ir em direção ao chão, porém, dono de uma agilidade extremamente alta, Victorio se abaixou e me segurou, impedindo que eu tocasse o solo.
– Romiel! – gritou. – Você está bem?
– S-Sim, não se preocupe, Victorio. – ainda me recompondo, digo a ele com um sorriso extremamente artificial no rosto. – Apenas tropecei nesse piso de madeira, podemos continuar?
– Você tem certeza? Não me parece muito bem. – disse ele com suas sobrancelhas franzidas, expressão que faz quando está intrigado com alguma coisa.
– Tenho total certeza, eu estou ótimo, apenas perdi o equilíbrio mesmo, vamos antes que fiquemos atrasados.
Sem dizer mais nada, Victorio apenas me soltou e começou a caminhar novamente pelo palácio, e então o segui naturalmente, como se nada tivesse acontecido. Seguimos para a entrada principal do palácio, para que assim pudéssemos partir para Flecentolia e dar início à operação de uma vez por todas. Deixando o palácio, do lado de fora estava parada em frente às escadas uma carruagem com dois cavalos para puxá-la, assim como um cocheiro estava segurando as rédias esperando por nós. Vendo Victorio ir em direção ao cocheiro, decidi seguir diretamente para o interior da carruagem, cumprimentando o cocheiro ao acenar com a cabeça. A carruagem não era muito luxuosa, bastante simples, para ser sincero. Possuía dois bancos, um de cada lado, no centro uma pequena mesa com alguns papéis em branco, nas janelas, cortinas vermelhas como sangue. Aguardei alguns minutos sozinho dentro da carruagem, aproveitei para fechar os olhos e me recostar um pouco em um dos bancos, as vertigens estavam piorando cada vez mais, minhas pernas tremiam e minhas mãos suavam muito, sentia praticamente a mesma sensação que senti no campo de batalha durante a guerra, o que é realmente estranho pois estava me sentindo bem antes de dormir, de qualquer forma, esse descanso não durou por muito tempo, já que Victorio entrou na carruagem, do seu jeito sutil de ser, ou seja, quase derrubando tudo o que havia lá dentro.
– Oh! Me desculpe, te acordei? – perguntou ele, com uma cara de susto.
– Não estava dormindo. – disse, levando minha mão direita ao rosto.
– Ótimo, assim você não perderá a melhor parte dessa história de ser embaixador, a viagem. – Victorio parecia uma criança em êxtase, abriu as cortinas da carruagem e ficou olhando para fora com seus olhos brilhando. Não resisti, dei uma leve risada. – E-Ei, do que você está rindo?
– Me desculpe! – ainda recuperando o fôlego – Você nunca viajou para fora de Valflera, não é?
– Na verdade, não. O mais longe da cidade que cheguei à ir foi para aquele cemitério onde está enterrada minha falecida irmã, mas imagino as coisas maravilhosas que devem ter pelo mundo afora.
– Não se iluda tanto, são basicamente as mesmas coisas que você pode ver aqui, apenas com alguns detalhes diferentes.
– Você fala como alguém que conhece muito o mundo afora. Você costumava viajar muito, Romiel? – ele me perguntou, ainda com os olhos brilhando.
– É um tanto complicado de explicar, porém, eu posso dizer que já viajei bastante, mesmo que involuntariamente.
– Involuntariamente? – perguntou. – O que você quer dizer com isso?
– Esqueça isso, não é importante. Se eu fosse você, não me desgastaria tanto, seria mais interessante você ver com seus próprios olhos tudo o que há fora de Valflera. – disse quanto esboçava um leve sorriso. Mesmo em um estado de saúde não muito agradável, não queria aborrecer Victorio, que estava mais feliz pela viagem do que por qualquer outra coisa. – Agora, se me der licença, preciso terminar umas pesquisas que estive fazendo ontem.
– Até no meio de uma viagem você fica pensando nessas coisas chatas, você nunca tem uma folga? – demonstrando um pouco de indignação, ele me questionou.
– Não se preocupe, esse é só o início de nossa viagem, ainda teremos muito tempo para conversar e eu lhe contarei tudo sobre os locais históricos que veremos no caminho. – disse a ele com um pequeno sorriso no rosto. Ao terminar de dizer essas palavras, nosso cocheiro bateu as rédeas para que os cavalos iniciassem a corrida.