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O Último Lobisomem

Iniciado por Vifibi, 08/01/2013 às 20:45

O ar mostrava-se pesado, a fumaça de um cachimbo aceso preenchendo-o. Sentado numa sala de estudo, envolto de livros, estava um homem alto, pálido, olhos e cabelos castanhos. Seu nariz protuberante parecia ter sido delineado delicadamente, e seu queixo forte apenas adicionava à sua aparência bruta porém bela. Um restolho de barba repousava em sua face, negro como a noite.

Abriu os olhos, acordando. Em seus primeiros momentos de consciência, ouviu o crepitar baixo e calmante de sua lareira, acesa em sua frente. Seus olhos sóbrios e cansados foram atraídos para o espelho acima da mesma. Sentiu uma pontada aguda de dor em seu peito, uma mistura de auto-piedade e depressão. Sentado estava numa cadeira luxuosa, em sua biblioteca particular, mas nada sentia senão o peso horrífico da noite sobre seus ombros. Bufou com tristeza, fechando o livro que lia antes de adormecer. Oliver Twist, ele dizia. Publicado havia menos de um ano. Não importava, ele concluiu. Não havia mais livro que pudesse entretê-lo.

Colocou o livro em sua mesa, apagando a vela em seguida. Sentiu a brisa refrescante da noite vindo de sua janela, e aproveitou-a enquanto podia. Em alguns instantes, a brisa se foi, deixando-o sozinho outra vez. O homem bufou, olhando ao redor do aposento sem esperanças de distrações. E então, seu olhar concentrou-se no espelho.

Os olhos, ele decidiu. Os olhos são a pior parte. Sentou-se ereto na cadeira, fitando a si mesmo com repulsa. Com o tempo, passara a odiar a própria face. Do que adianta, continuou a pensar, uma vida cheia de livros, mas livre de emoções? Olhe para si mesmo. Você é patético. Desde que...

Parou, assustado. Os olhos, ele pensou, por que eles choram? Olhos azuis fitavam-no, lágrimas escorrendo. Ele percebia o medo, o terror, a angústia. Os olhos imploravam-lhe piedade, imploravam por ajuda. Mas não haveria ajuda. A piedade havia acabado. Não havia saída, não havia escapatória. Com um passo...

— Não! — O homem gritou, interrompendo-se. O som ecoou pelo quarto, tomando qualidades assustadoras imediatamente. Suspirando, ele se apoiou na cadeira, esfregando as têmporas. Estou ficando louco? Ele perguntou, mas não houve resposta. Jamais havia respostas.

Alguns minutos depois, ele se levantou. Sua boca estava seca, e ele muito desejava uma bebida. A porta estava fechada, fato que o surpreendeu. Segundo sua memória, havia deixado-a aberta. Deu de ombros, e abriu-a. Em seus pés, estava um lobo, deitado com tristeza.

— Olá Johann — ele abriu um sorriso terno —, como você está hoje?
"Estou excelente, Benjamin," ele imaginou o lobo falando "e como o senhor passa?"
— O mesmo de sempre, velho amigo. — Fez carinho em Johann, sorrindo de forma triste. Sem ele, pensou, estaria morto. Depois de alguns segundos, levantou-se do chão, espanando as roupas, e andou pelo corredor gótico e sombrio até seus aposentos. As janelas eram grandes, e de relance, Benjamin viu o fogo próximo dos moradores do vilarejo, cada vez mais próximo. Ignorou-os, eram brutos e incivilizados.

Quinze passos, ele contou. Quinze passos de sua biblioteca pessoal até seu quarto. Quinze passos amaldiçoados. Todos eram. Parou diante da porta do seu quarto. Não agüentaria vê-lo outra vez. Não queria vislumbrá-lo. Não queria abrir a porta. Não, decidiu-se já passou da hora de se lamentar. Com receio, apartou-a.

O quarto estava como ele se lembrava. A cama estava desarrumada, os lençóis de seda ainda amassados em seu pé. A janela estava aberta, deixando a brisa entrar. Em frente à cama estava uma escrivaninha cheia de livros em branco, peneiras, estojos de tinta e papéis avulsos. Seu armário de madeira feito à mão na Itália tinha suas gavetas abertas, com todas as roupas jogadas ao redor. Acima dele, Benjamin achou o que queria: álcool.

Dois copos de vidro encontravam-se ao lado de uma garrafa transparente de uísque, Jack Daniel's. Em tempos mais felizes, seu servo havia lhe assegurado da qualidade da marca. Lembrou que, quando percebeu que o uísque era excelente, dera uma nota de cem para o servo como sua forma de agradecimento.

Bufou sem determinação, e serviu-se um copo. Deu-lhe um olhar roto, e tomou tudo de uma só vez, fazendo uma careta ao engolir. O amargo ainda era amargo, ainda bem. Divertiu-se por um momento com esse fato, e bebeu mais um copo. Depois, tomou outro. E, com o quarto copo, terminou a garrafa.

O mundo ainda era ensolarado. Era uma noite calma de Abril, com as flores brotando na Primavera. Ambos estavam em sua caminhada noturna, dois amantes sob o luar. E a besta espreitava. Os apaixonados seguiram pelo caminho cimentado, passando por cima de um rio, rindo, contando histórias, sendo jovens. E a besta se aproximava. Por fim, os dois deitaram-se na grama, rodeados de flores, sob o luar. Tomados pelo momento, eles se amaram. E a besta atacou.

Benjamin acordou. Estava deitado no chão, largado. Seu copo jazia quebrado ao seu lado, irreparável. Johann o observava cauteloso, verificando, para o espanto do homem, se ainda estava vivo. Ele ponderou se ele queria devorá-lo ou se estava genuinamente preocupado consigo. Sem provas para nenhuma das evidências, decidiu não pensar nisso. Levantou-se.

Não sabia quantas horas passaram — se é que passaram —, nem há quanto tempo Johann estava sentado do seu lado, mas ele sabia de uma coisa: Precisava de mais uísque. Espanou-se, e saiu do quarto.

O saguão do castelo era majestoso, com sua arquitetura de tirar o fôlego, seus vitrais minuciosamente construídos, seus móveis de primeira qualidade, e o sentimento de que tudo aquilo era de uma era de outrora, que jamais retornaria àquela terra. No segundo andar, que era apenas a passada para os corredores e aposentos, encontrava-se Benjamin, andando até o primeiro andar, à cozinha e à adega.

Passou pela sala de jantar, espetacular com seu tamanho gigantesco, e foi até a cozinha, tão larga que se poderiam fazer refeições para duzentas pessoas em apenas um lugar. Procurou a porta para a adega, achando-a em alguns segundos. Entrou, engolfando-se com a visão de centenas de garrafas de vinho e bebidas.

Andou despreocupado por entre as fileiras de barris, passando a mão pela madeira de forma sutil. Continuou a marcha por alguns instantes, bebendo copos e mais copos de vinho, antes de chegar ao centro da adega onde guardara sua carruagem, que jamais usaria novamente. Sem medo, adentrou. Se fechasse os olhos, ainda podia lembrar...
O dia estava claro naquele Outono agradável. Benjamin andava de carruagem, acompanhado de sua amada. Contemplavam as flores, os cheiros, a alegria. Tudo estava bem, e porque não haveria de estar? O Sol aquecia-os, a brisa envolvia-os, e a vida era bela. Michael, o cocheiro, conversava com si mesmo, como sempre fazia.

— Lorde Benjamin! — Winston correu ao seu encontro, exasperado. Seu físico tornava-lhe difícil e inabilitado para corridas, mas ele as fazia de qualquer forma. Arfou por ar, acariciando o próprio bigode. Quando recuperou o fôlego, começou: — Senhor, os aldeãos estão inquietos. Sete peças de gado sumiram nesta semana das fazendas, roubando-os de alimento e fonte de renda.
— Isso me parece sério. Sabemos qual é a causa desses desaparecimentos?
— Não, senhor. Os moradores insistem que é um... Não, não sabemos a causa. — Winston parecia desconfortável, apoiando o próprio peso de um pé para outro.
— Espere, o que os aldeãos insistem em?
— Nada, senhor. Apenas superstições retrógradas e juvenis, como são comuns aos ignorantes. — Fez um gesto com a mão, indicando sorrateiramente Michael. — Nada para se preocupar. — Adicionou com um sorriso.
— Bobagem, Winston. Se for da preocupação dos aldeãos, então deve ser algo importante.
— Bem, senhor, eles acreditam... Que é um lobisomem, senhor. — Winston sempre usava 'senhores' demais quando estava nervoso.
— Um lobisomem! — Benjamin gargalhou com gosto. — Excelente piada. Bem, diga aos moradores que...
— Isso não é tudo, senhor. Dizem que tal lobisomem anda pelo bosque durante a noite, caçando vítimas humanas. — Winston tirou sua cartola, girando-a nas mãos. Gostava de vestir-se como um lorde, embora não o fosse.
— Certo. — Benjamin sorriu como de costume. Seu sorriso sempre ganhava multidões — Eis o que faremos: Você diga aos aldeãos que cuidaremos deste... Problema, e aumente a segurança das fazendas. Provavelmente são ladrões. E, diga também que Meredith — apontou para sua esposa — e eu faremos uma inspeção do bosque, à procura de... Lobisomens. — Zombou.

Winston fez um sinal para Michael, e partiu. O cocheiro, por sua vez, atiçou os cavalos, movendo a carruagem para frente. O Lorde não sabia naquele momento, mas aquele era o começo do fim.

Um baque acordou Benjamin, assustando-o. O chão tremeu com o impacto, e ele pôde ouvir o som longínquo dos aldeãos atacando os portões do castelo. Soltou uma risada zombeteira, e saiu do depósito. Cambaleou com alguma dificuldade — o sono ainda dominava boa parte de si — ao saguão, aonde deitou no chão de mármore.

Outro baque inundou a propriedade. Os gritos insultantes e ignorantes de rufiões invadiram suas orelhas por entre as frestas, obrigando-o a se levantar. Com o terceiro estrondo, sua ira aumentou. Com o quarto, ele passou a gritar.

— Vocês me querem?! — Desafiou os cidadãos do outro lado dos portões — Desejam minha carne?! Meus ossos? Pois bem! Venham! Tiraram de mim tudo, me acusam e me difamam, e agora querem minha cabeça. Pois que venham! Tirem de mim esta miséria ignóbil que me opuseram! Venham!

E então, com um golpe final, os portões cederam.