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Sensus Ianuas

Iniciado por Vifibi, 08/01/2013 às 20:45

Esta é uma história que eu escrevi baseado numa alucinação de muito tempo atrás, e que moveu-me muito na época. Não é minha escrita mais impactante, porém acredito que é boa o suficiente para ser publicada. Aproveitem.




Sensus Ianuas

Eu estava de pé sentado, deitado sobre minha cama vertical. O teto que me puxava girava em seu eixo, dando-me náuseas. Todo meu corpo flutuava, e minhas roupas alternavam entre a irrealidade e a ficção. Meus cabelos brandiam um fogo fátuo e frio, brilhando inofensivamente e iluminando meu rosto cansado. O estéreo tocava The Doors. Jim Morrison cantava-me promessas e seduções doces, formando assim a música The End. Toda minha pele vibrava junto com o riff, chamuscando em barras explosivas de sangue, mas deixando nenhuma ferida visível, nem dor alguma. Entre meu dedo indicador e médio repousava um cigarro aceso, embora não tenha sido eu a acendê-lo.

The West is the Best, Jim Morrison disse. The West is the Best.

As paredes de meu quarto contraíam-se e logo após expandiam-se, num movimento de respiração enervante. O teto enegrecia-se com cada segundo que se passava, até tornar-se completamente negro, puxando para dentro de si toda a luz ao meu redor — um buraco negro em meu apartamento.

Fui sugado. The West is the Best.

The Best is the West.

O deserto foragia-se por todo o continente, amalgamado em virtude da água, bem tal qual precioso como aquele. Uma nuvem de poeira, carregando emoções e memórias, passou-se por minha frente. Caçava vítimas inocentes: crianças, mulheres, homens enfraquecidos  pela planície marrom. Viu-me, e observou-me de longe. Calculava meu perigo como se calcularia uma equação matemática. Avançou, e eu não pude correr, pois homens sem memórias seguravam-me pelos membros, escravos daquele que os havia retirado tudo. A nuvem alcançou-me sem dificuldades, e apropriou-se de minha mente.

The West is the Best.

The West is the Best.

The West...

Minha mãe passou correndo por meus olhos, gritando socorros enquanto era atacada pela nuvem. Meu pai lutava contra um nada, insano pela simples menção de um futuro sem memórias. Meus amigos todos me sorriram sorrisos sem bocas, fitavam-me tenros sem ter olhos, ouviam-me atentos sem ter orelhas. Tudo passava de mim para a nuvem, como fluidos trocados de meu pai para minha mãe, formando assim o que eu era. Tudo estava evaporando, sendo consumido pela famigerada, execrável. The End.

O Fim. O Começo. O Meio. O Fim. O Meio. O Começo. O Fim. O Sol. A Lua. O Sol. A Lua. O Sol. A Lua. Três sóis. Quatro Luas. Verão. Outono. Inverno. Primavera. Verão. Outono. Inverno. Primavera. Trezentos e sessenta e cinco sóis, seguidos um pelo outro, interminavelmente, e eu assistia a tudo. Eu via a Terra girar sem rumo, perdida eternamente de seus pais no espaço. Eu sou o Fim. Eu sou o Começo. Eu sou o Meio. Eu sou o Sol, a Lua, eu sou a Terra. Eu sou inominável, e meu corpo refletiu isso. Meu corpo tornou-se a terra, meus cabelos longos os mares. Eu respirava o ar que outros vivam de, chorava as lágrimas que outros bebiam de, e gozava vida que faziam outros, e outros, e outros. Eu era o pai de todos, e de ninguém. Eu era ninguém. Eu era morto. Eu era deus, escravo da nuvem, filho de ninguém, pai de todos. Todos me veneravam, me temiam, me odiavam, me amavam, me fodiam e me blasfemavam. Eu odiava a todos, pois eu era ninguém, mas era Laio, pai de Édipo. Matar-me-iam pelo trono de espinhos. Eu permaneci preso ao solo pelos Homens sem Memória durante anos, décadas, séculos, milênios, éons. Servi à Nuvem, assim como servi aos meus filhos bastardos sem mãe. Eu era o Alfa e o Ômega. Eu era atormentado.

Pensamentos vagos sem origem fluíam por minha mente, deixando-me confuso e curioso, eu procurava saber sua origem, mas sua origem não estava em lugar nenhum a ser encontrado. O mundo era meu, mas nem tudo no mundo pertencia a mim. E não ter tudo me matava. Foram-se muitos anos até que eu ouvi uma frase que me despertou, e deixou-me apavorado.

The West is the Best.

Eu acordei, e o Sol me observava. Estava nu, minhas roupas há muito decompostas. Os Homens sem Memórias estavam ao meu redor, todos andando na mesma marcha que eu. Seguíamos sem questões Deus-Pai, a nuvem que roubava memórias. Nenhum de nós estava realmente vivo, exceto eu. Eu havia acordado. Saí do grupo, e ninguém notou que eu havia acordado. A nuvem, assim como os homens, só podiam ver aqueles que tinham memórias.

Segui na direção oposta à do grupo que uma vez me escravizou, passando décadas a procurar outro ser humano, um que pudesse me ajudar. Em pouco tempo, tudo aquilo começou a parecer-me um sonho distante. Quando não se há memórias sobre as quais perceber a realidade, tudo aquilo que te dizem é a mais pura verdade. E se me dessem memórias de outra pessoa? Quem eu seria, ela, ou eu?

Um milênio eu procurei pelo deserto, e um milênio eu fiquei sozinho, desamparado e sem esperanças. Passei a conhecer os ventos que passavam pelo solo, as águas que traziam vida às formas inferiores, o solo em si, sempre marrom e sem vida, diferente daquilo que se encontrava acima dele. Segui meu caminho, preocupado e sem destino, até que encontrei uma flor.

A flor tinha pétalas azuis e amarelas, com um caule rosa. Toquei-a com meu dedo, e imediatamente um espasmo percorreu meu corpo. Lost in a Roman... Wilderness of pain. A dor era imensurável. Desejei fervorosamente pela morte, chorei a deus e até mesmo a nuvem, a todos que eu conhecia, pedindo apenas para que a dor acabasse. A beleza traiu meus olhos, vendeu minha alma, corrompeu meu corpo. De que serve a beleza quando a alma é podre?

Sem prospectos e desesperado para acabar a dor, tentei retirar a mão, mas ela estava colada à flor. Percebi que ela havia se colado ao caule, e estava tornando-se tão rosa quanto o próprio. Quanto tempo havia se passado? The Blue Bus is Calling Us. The Blue Bus is Calling Us.

Subitamente, a dor acabou-se. Suspirei aliviado, mas vi que não mais respirava: meus pulmões já não mais existiam. Meus braços multiplicaram-se, tornaram-se galhos. Minha mente uniu-se com a da flor, e tornamo-nos uma árvore imponente. Dávamos filhos ao mundo, tornando-o lindo, verde, e fértil. E fomos felizes em simplesmente existir, vivendo através de nós e de nossos filhos, conhecendo ao mundo inteiro e de volta. Conhecíamos as mais escuras cavernas, os mais profundos oceanos, as mais densas florestas. Éramos tudo. E nossos frutos nunca pararam de aparecer.

E um dia uma mulher agraciou-me com sua presença. Era da minha espécie antiga, percebi. Andava nua, como eu andei por aquela terra. Estava grávida, e deu à luz um filho, em frente aos meus filhos. Seu filho amou-a perdidamente, e juntos fizeram dois irmãos. Um dos irmãos matou o outro, e assim a nuvem ganhou acesso a eles. Roubou-lhes as memórias, e fê-los criarem-lhe escravos. E assim eles o fizeram, por gerações e gerações. Fizeram-se civilizações, descobertas, nações, todos os humanos vivendo em guerra, sem face.

Um homem, muitos anos depois da mãe da Humanidade ter morrido, ganhou fama naquele mundo por ter distribuído faces aos seus cidadãos sem faces. Ele fora morto logo depois, mas em todo o mundo se dizia o conto de sua jornada para entregar faces iguais aos seus seguidores, sem custo. Depois dele, todos vendiam faces aos sem-rosto, inescrupulosamente. E por muito tempo, nós fomos ignorados.

Os humanos estavam preocupados demais com seus assuntos para prestarem atenção às árvores, e as árvores ressentiam isso. Décadas em vão passamos em tentar chamar a atenção dos humanos, que, cada vez mais belicosos, ignoravam-nos. Vimos o nascimento e morte de Alexandre, o Grande, de Roma, da Espanha, da Rússia, dos Estados Unidos, todos, nascendo e perecendo em meros intervalos de tempo, minúsculos aos nossos olhos. This is the End. E por fim, o mundo se explodiu, nuclear, impuro, imperfeito, vil.

Parecia que toda a vida na Terra, toda a vida que nós criamos, havia terminado. Apenas um ar asqueroso passeava pelo mundo, um lembrete dos tempos que a humanidade fora arrogante e irresponsável, e que agora todos haviam de pagar por. Os pecados da humanidade, expurgados em morte.

E assim a vida acabou naquele planeta, sendo nós a última árvore, a última vida, a última coisa que insistiu em não morrer. Vivemos solitários, esperando pelo fim inevitável, mas o fim jamais veio. O tempo passou, e nunca a morte bateu em nosso tronco. Estávamos fadados à eterna solidão. Até que um dia uma jovem apareceu diante de nós, e reposou em meus braços.

Subitamente, eu voltei a ser eu mesmo. Eu era humano, e ela estava deitada sobre mim, sem forças para continuar, sem forças para viver, apenas uma mulher morrendo nos braços de um homem. Morrer sozinho é o pior destino do mundo. Olhamo-nos, e ela beijou-me. Tentei-lhe dizer algo, porém minha mente não produzia palavras. Eu não lembrava minha língua, meu idioma, meu povo. Mas aquilo não importava. Estávamos no fim do mundo, e tudo que tínhamos era um ao outro. E eu vi conforme ela evaporava até a inexistência, morrendo como se morre uma gota d'água. E eu percebi que não era apenas ela que evaporou, mas tudo. Estava eu sozinho no Negro Primordial. O fim do universo. O fim da vida. O fim de tudo. De que se adianta viver no escuro?

E então ela apareceu. A nuvem, vil como no primeiro dia que a vi. Viu-me, pois agora tinha memórias a apreciar, e eu a vi, pois sempre a tinha visto. Mas desta vez eu entendi a quem me referia. Um deus insano, um deus torturado. Um deus que criou a tudo para aliviar a si mesmo de seus problemas. Ele chegou até mim, cautelosamente. Sua forma era minha forma. Seus gestos, meus gestos. Ele era eu. Sorriu-me um sorriso triste, beijou minha testa e unimo-nos. Meu pai. Minha mãe. Meus amigos. Meu cachorro. Minha família toda. Todos passaram por minha mente, e ao meu redor formavam-se, lentamente, paredes. Uma cama fez-se sob mim, aconchegando-me confortavelmente. Todas as minhas coisas fizeram-se em seus devidos lugares, e por fim, o negro do céu deu lugar ao teto de meu quarto. Jim Morrison continuava a cantar no estéreo.

This is the end
My only friend, the end
It hurts to set you free
But you'll never follow me
The end of laughter and soft lies
The end of nights we tried to die
This is the end.


Dei um trago de meu cigarro, e a música acabou.
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