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. fim

Iniciado por Corvo, 14/02/2017 às 08:38

14/02/2017 às 08:38 Última edição: 14/02/2017 às 08:50 por Joseph Poe
Tentando desenferrujar um pouco. As coisas estão corridas por aqui, então é relativamente curto. Maior que eu gostaria para um tópico, mas curto.

.fim

Spoiler
Eu me lembro das histórias. Do tempo em que as pessoas contavam coisas sobre as Terras Distantes ou sobre o Reino Encantado. Minhas preferidas eram as tramas que falavam de heróis caçando dragões ou explorando as muralhas do Pandemônio. Talvez, porque falassem de um passado no qual não vivi, mas gostaria. Não importa o quão longe você vá, algumas aventuras só às histórias pertencem.
     E havia os Contos. Pequenas narrativas do tamanho da chama de uma fogueira. Aquele ditado, se me lembro bem, dizia o seguinte: Ouça um conto e entenda um ponto. Uma das poucas verdades universais da vida. E de todos os gêneros, subgêneros e variações das histórias, só um me desagradava.
     Narrativas sobre o futuro.
     Primeiro, porque utopias espaciais tratavam o mundo como estatísticas na lista de territórios. Talvez seja, mas tratar assim o planeta que forneceu matéria prima, clima e o ambiente perfeito para sua espécie evoluir me parece ingratidão. Ou desdém, palavra que nunca usei antes. Segundo, porque as histórias que chegam perto da verdade retratam coisas que queremos esquecer. Além disso, elas incluem um fio de esperança no tear do caos e das catástrofes. Seus protagonistas sorridentes só precisam vencer um inimigo e seus problemas acabam.
     Nem narrativas infantis eram tão inocentes. Se não houvesse um inimigo, um responsável pelo mal, o que eles fariam? Se tenho algo para dizer sobre isso é que, se o seu problema não tem um bode expiatório, alguém para levar a culpa, o problema está em você. E se você quiser retratar o futuro, faça isso direito.
     Todas essas histórias, essas que falam do fim dos tempos, elas estão certas. Não literalmente. Nada de governos autoritários, trombetas celestiais nem, infelizmente, invasões alienígenas. Toda aquela ação é falsa, artificial. O fim do mundo é feito de pó, fogo e o mesmo céu pestilento de sempre. Nós cavamos nossa cova, saltamos dentro e gritamos por ajuda. Simples assim.
     Não sei bem como aconteceu. Certo dia, meus bisavós viviam tranquilamente com seus porcos e seus rádios. Hoje, estou aqui com minha trupe de fracassados. Reclamamos e imaginamos se somos a última geração da humanidade. Esse tipo de coisa fica mais fácil se você pode colocar a culpa em zumbis. Derrote o inimigo e fim do problema.
     Edgar reclama porque nunca vai ver uma estátua. Nenhum de nós viu. As coisas que as histórias descrevem chegaram até nós distorcidas e sem cor. Desde que nascemos, a paisagem é poeira, fogo e fumaça. O último prédio deve ter caído há séculos.
     Miguel reclama por ser um covarde egoísta. Sua família morreu, porque ele roubava a comida para sustento próprio. Era criança, e assistiu os pais definhando, com medo demais para dividir um pedaço de pão. A mãe dele dizia que a morte sabe quais crianças não limpam o prato.
     Neil se arrepende de não ter feito nada. Ele acredita que ê tudo conspiração. Diz que um grupo de pessoas vive secretamente no luxo e fartura. Protegidos por armas e boa alimentação, manipulam o extermínio do resto da população.
     José não se arrepende de ter cozido e comido as vinte e sete pessoas da sua antiga companhia. O problema é o gosto amargo que não sai da boca. Loucura, ele diz, é arrancar e comer o braço esquerdo. Ele diz por experiência própria.
     E eu, bem. Sou o pior deles. Eu matei minha esposa porque ela havia me traído. Na época, eu não tinha ideia de que ela era a última mulher do planeta. E mesmo que não o fosse, meu crime não seria menor. Ela me escolheu porque eu a protegi dos assassinos, sequestradores e era o único que a respeitava. Mas minha sanidade não resistiu muito tempo.
     Agora, os cinco últimos seres humanos remendam os trapos que vestem com trapos que encontram. Explico a Neil pela quinta vez que não sei o que é uma câmera, coisa que insiste em procurar. Edgar diz para andarmos. O oxigênio da região não vai durar a vida toda.
     - Eles - diz Neil - estão com todas as plantas.
     No caminho, Miguel se adianta. Ele não sabe que os covardes confiam em outros covardes. Quando encontra algum verme ou outra coisa que dê para comer, lista minuciosamente como e onde encontrou.
     Já José, é um abutre. Enquanto respirarmos, estamos salvos. Às vezes, tenta "limpar" a língua com areia, mas sempre reclama que não funciona.
     Como eu disse, me lembro das histórias e quero registrar esta. A última, escrita com pó na terra seca. Escrevo porque, escrevendo, fica fácil lembrar. A vida de um homem é a lembrança que ele tem dela. E o triste é que, de todos os séculos que passamos construindo e evoluindo, nenhum pôde nos salvar do fim. As centenas de andares dos grandes prédios são pó e raízes das montanhas. Escombros, meus caros. Escombros.
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Novamente um ótimo texto. No começo era difícil saber o que iria virar, mas do meio ao fim, tudo foi se esclarecendo o)

Citação de: Manec online 19/02/2017 às 14:59
Novamente um ótimo texto. No começo era difícil saber o que iria virar, mas do meio ao fim, tudo foi se esclarecendo o)

Obrigado Sr. [user]Manec[/user]! Fiquei um bom tempo sem escrever e, quando saiu, foi isso aqui. Bem travado haha

Isso me fez sentir falta das grandes histórias de Tolkien e Lewis; significa que está na hora de reler certas coisas, afinal:

"A vida de um homem é a lembrança que ele tem dela."

Acredito que isso se aplique as histórias também, elas duram enquanto as pessoas se lembram delas. Obrigado pela reflexão, ótimo.

Citação de: Ven online 19/02/2017 às 22:53
Isso me fez sentir falta das grandes histórias de Tolkien e Lewis; significa que está na hora de reler certas coisas, afinal:

"A vida de um homem é a lembrança que ele tem dela."

Acredito que isso se aplique as histórias também, elas duram enquanto as pessoas se lembram delas. Obrigado pela reflexão, ótimo.

Rapaz, cuidado com a responsa que me coloca haha. Acho que vale sim. Seu comentário meu lembrou Deuses Americanos o/