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O Pecado dos Homens

Iniciado por FilipeJF, 30/08/2018 às 15:27

30/08/2018 às 15:27 Última edição: 30/08/2018 às 15:50 por FilipeJF
Boa tarde! Faz tempo desde minha última interação neste fórum, e em prática quaisquer outros fóruns voltados ao RPG Maker ou produção de jogos. Passei incontáveis horas aqui, e mais ainda na desfalecida Mundo RPG Maker, comunidade pela qual sinto muita saudade.

Sempre estive voltado à escrita, e muito do que aprendi se deve a pessoas que comentaram e me ajudaram a melhorar aqui mesmo, nesta seção deste fórum. Nostalgia gigantesca.

Quando tenho vontade, ainda costumo escrever. Mas é um hobbie que não pratico tanto como o fazia antigamente. Mas, ainda assim, ando escrevendo uma história, que estou postando no Wattpad e vou deixar um capítulo aqui a fim de expor um dos meus últimos trabalhos. Quem quiser, pode até dar uma olhada nos meus tópicos antigos e dar uma comparada. Faço isso e sinto bastante vergonha alheia, mas foi um mal necessário.

E como eu sempre dizia neste instante, sem mais delongas...

Na penumbra, havia uma placa de madeira.
Nela estava rudemente entalhado o seguinte:

"Não há caverna, nem calabouço. Seja teu destino arruinar-se em abismos de intangíveis abstratismos, encare a estrada e marche sobre a escuridão; mas submeta-se à ideia e compreenda o que lhe aguarda. Pois as raízes da sanidade estão entorpecidas na mente dos antigos: elas não mais fazem parte da realidade física.

Atente-se, mortal, pois o primeiro a brandir a chama da coragem não compartilhava do teu nome."

I - A Terra Está Morta

Spoiler
        Dizem que foi em razão de detrimentos que o cavaleiro, sonolento e faminto, e sua égua, altiva e fiel, afastaram-se de seus lares.
        O homem despediu-se de seus conhecidos e partiu, levando nada entre seus pertences além de seus equipamentos e duradouras provisões. Vieram, então, meses impiedosos que nenhum fruto sadio cultivaram, mas que confeccionaram aflições e desafios. De fato, foram dias e noites tenebrosos que sucederam qual ato de absurda coragem: mas morte e mágoa já eram aos andarilhos companheiras de longa data, e isso não implicou suficiência no que dizia respeito à vontade de regressar do jovem cavaleiro. Ele então deu continuidade a sua jornada, vagando por ermos cada vez mais distantes, almejando o encontro de vida, e, acima de tudo, esperança, para que pudesse reanimar o mundo e ouvir mais coisas que não o sopro do silêncio. No entanto, nada notável emergira de suas buscas. Até agora, as árvores com as quais se deparava estavam pútridas, esguias como criaturas esquálidas que não comem por dias, e os campos e os montes estavam desnudos, isentos do verde ou despojados debaixo de lama.
        No princípio, admirara-se com as ruínas de castelos, ossos de pedra que estão desmoronando. Apesar de tê-las descrito desta forma, tais ruínas lhe despertavam imaginações sobre épocas remotas, quando soldados em armaduras cintilantes marchavam sob estandartes de reis orgulhosos, e então lutavam e sangravam por valores que não mais faziam sentido em um mundo cinzento.
       Mas mesmo seu interesse em relação ao passado fora eventualmente descartado, pois não parecia valer a pena cultivar pensamentos de alegrias mortas em sua consciência. Nenhum esforço que nascia de suas pernas, braços e mente indicava pistas de progresso. Tudo era cinzento e vazio, e a melancolia lhe abocanhava vagarosamente. O único conforto que sustentava o jovem cavaleiro e seus devaneios partia de sua inseparável companheira de quatro patas.
        — Em breve, cruzaremos as montanhas no leste, e talvez vejamos florestas e um povo sadio. Mas, se nada vermos além da Desolação, eu desistirei. Você estará livre — disse o cavaleiro à égua. O animal estava de pé, observando o relento sob as unhas contorcidas de um enorme carvalho. Nas redondezas, muitas árvores parecidas se erguiam na direção do céu, desfalecidas. As nuvens estavam esparsas, e o sol se inclinava sobre o mundo, sugerindo ânimo com o calor de seu corpo.
        O cavaleiro organizara um humilde assentamento na clareira que se espremia por entre o arvoredo. Debaixo das pernas cruzadas ele reunira um monte de palha seca, descobertas num porão alheio escondido nos escombros de uma cabana deserta. Sobre a cabeceira da cama improvisada, envolta num pano vermelho, estava sua espada embainhada, há muito sedenta por uma gota de sangue. O resto de seus utensílios, como sua panela, os dois garfos, e os fósforos — de propriedades arcanas — estava aglomerado aos seus pés, e muitos deles divididos entre uma dupla de sacos de serapilheira e um bornal de couro, uma relíquia que adquirira em suas explorações. Os sacos demonstravam sinais de decadência, com os fios da parte inferior já enfraquecidos e formando vãos entre si.
        Seguindo para o leste, à esquerda de onde repousava o cavaleiro, desviando-se dos galhos podres e dos troncos que bloqueavam as passagens, encontrava-se uma descida não muito íngreme, onde o barro era mais flácido e vermelho. Ao fim do aclive, exércitos de cascalhos se amontoavam por vastos quilômetros, marcando o que outrora fora um leito caudaloso que cortava o continente com águas espumantes. Transpondo o cadáver silencioso do rio e galgando um pequeno morro afofado de terra roxa que despontava na margem oposta, descobria-se, para além da barreira de ravinas, uma região infértil, onde a relva em sua grande parte desaparecera e dera lugar a uma planície sinistra de rachaduras e depressões.
        Parece com os pastos do sul antes que fossem reavivados.
        O cavaleiro atravessou o véu de pedregulhos e escalou a encosta do morro, percorrendo o mesmo caminho que suas passadas de explorações anteriores marcavam, e parou ao pisar no topo. Olhando para o norte, notou como os morros e as colinas se entrepunham, correndo para o sul numa onda inconsistente de elevações e depressões cinzentas. A linha ondulante vinha serpenteando com timidez, acompanhando como uma muralha a margem oriental do leito devastado.
         No sopé do morro, no limiar dos restos mortais da vastidão pastoril, havia uma pequena circunferência erguida com o uso de alvenaria. Nas laterais entijoladas do vão enegrecido levantavam-se por entre as pedras superiores um par de postes de madeira, cada qual localizado em um dos opostos do diâmetro. Embora estivessem fragilizados e apodrecidos, ainda conduziam seus propósitos, pois seguravam uma cobertura rudimentar de troncos amarrados sobre a fossa do poço.
        O cavaleiro desceu até as proximidades do poço e apanhou a alça do balde, que ele próprio amarrara às colunas laterais. Com cuidado, segurou firme a corda e descendeu o recipiente na escuridão. Escutou as ondas se formarem no fundo, aguardou algum tempo e então puxou a corda, que subiu rangendo devido ao peso.
        O balde veio balançando, quicando para frente e para trás e cuspindo água; o cavaleiro o aproximou da laje de tijolos e nela ele o apoiou, e usando da mão, bebericou o máximo que sua vontade permitiu. Depois, desafivelou o cordão do odre e o reabasteceu.
        Eu vejo as montanhas, tão longes no leste, dedos ciclópicos que escavam os veios da terra; já ouvi as histórias sobre as florestas gigantescas que existem depois delas, e sobre o povo que mora em suas altitudes. Gostaria de conhecer essa gente.
        Ficou parado por um instante, refletindo. Seus olhos fitavam o oriente, e uma luz fosca se debatia contra os picos pálidos, murmurantes sob o assovio do vento, das Yalahk-era-dyctala.

        O cavaleiro regressou ao acampamento, onde sua égua, Faye, repousava ao sol debaixo dos galhos retesados da natureza morta.
        Encheu sua panela com a água do odre e ofereceu à Faye, que aceitou com prazer. Agora, ambos estavam de sede saciada; no entanto, havia um segundo problema, de maior amplitude e abrangência. Pois o mundo, no estado em que se encontrava, não simbolizava acessibilidade no que dizia respeito à alimentação.
        Em algum momento do passado, os frutos gerados pela terra cessaram seu crescimento, exilando-se do ciclo da vida. Num relampejo inesperado, a escassez se alastrou como fogo em mato seco, e nada mais cresceu ou gerou vida; nem mesmo pessoas. E, se o faziam, era em regiões longínquas, como no sul, onde o plantio redespertou pouco antes de o cavaleiro partir ao lado de Faye.
        Mas o cavaleiro escolhera o caminho árduo. Decidira viajar em busca de novos horizontes que apresentassem melhores oportunidades de vivência, vagueando, então, através de regiões alheias, sempre a ansiar pela esperança de um amanhã menos escuro.
     Assim, ocorreu-lhe de promover preparações importantes antes de marchar em liberdade. Ainda em sua terra, sonhadora nas planícies escarlates, fez questão de caçar uma considerável quantia de insetos e de vermes, estes que costumam rastejar em regiões de elevada umidade — onde traços de vida ainda florescem —, e matou-os e juntou seus corpos em sacolas de pano. Com isso, delongou a ameaça da fome, e manteve-se alimentado por um punhado de semanas antes que a necessidade de caça de minhocas e insetos se acometesse novamente.
        Mas, agora, a necessidade voltara a lhe atormentar aos turbilhões, pois, mesmo que encontrasse criaturas, nem sempre elas eram o suficiente para ele e para Faye; então, quando isso ocorria, ele abria mão de uma porção de sua parte e optava pela boa vivência de sua montaria, cujo corpo clamava por uma alimentação adequada. Nesses tempos de miséria, o cavaleiro sentiu o definhar de seus músculos, e muitas vezes seu vigor falhava, obrigando-o a fazer pausas para descansar. E, quando batia os olhos sobre os flancos de Faye, constatava com tristeza os contornos dos ossos alinhando-se às camadas da pele. Decerto, a Desolação do mundo não demonstrara indícios de misericórdia. O sofrimento e a dor eram constantes, vigilantes incansáveis que olhavam para o silêncio e para os ermos melancólicos.
        O cavaleiro reuniu seus precários víveres e os alojou na cela da égua. Preparou-se para acomodar a bainha da espada em alguma lacuna na bagagem, mas segurou-a com ambas as mãos e a contemplou, passando os olhos sobre o encaixe de latão, desgastado pelo tempo, e sobre o chape na ponta, onde sombras de entalhes ancestrais despontavam como lembranças incertas. Embora estes não mais revelassem suas imagens com clareza, as formas imbuídas no cabo da espada o faziam. Pois a composição do cabo dispunha de algum material enegrecido e opaco, e os entalhes sobre ele eram dourados e cintilantes, fios cromados que serpenteavam gloriosos através da escuridão; mas as imagens que declaravam eram, apesar de visíveis, inconclusivas. Por vezes, o cavaleiro imaginava avistar duas serpentes entrelaçadas, noutras, via formas de chamas resplandecentes espiralando até os limites com o guarda-mão.
        Tanto sua espada quanto os fósforos, o cavaleiro sabia, não eram itens de natureza mundana: eles simbolizavam poderes incultos, que talvez contassem de magia e feitiços esquecidos.
        — É hora de partir, Faye — disse o cavaleiro. Prendeu a bainha da espada no cinto e fez os últimos ajustes na cela antes de montar e cavalgar na rota final para o leste.

        O negror penetrante da noite recaiu mais uma vez sobre os batentes do firmamento. Feito uma cintilante moeda de prata, a lua incidia sua fosca palidez contra a superfície do mundo. O clarão esbranquiçado espalhava-se numa orla sutil, realçando os contornos das nuvens esparsas que vagueavam em solidão.
        O cavaleiro inclinou-se para trás, puxando as rédeas. Faye, com um relincho aborrecido, diminuiu o passo. O pobre animal bufava com fervor, seu torso subindo e descendo, e sua pelagem negra brilhava, coberta pelo suor.
        Ao fim da manhã, quando montou no lombo de Faye e saiu a galope, o cavaleiro determinara uma rota a finalizar antes do anoitecer, que consistia na totalidade da planície devastada que se respaldava para além do poço abandonado. Devido à superfície deliberadamente plana da região, o cavaleiro reconheceu a viabilidade de seu plano, e durante toda a tarde, sob o fogo do sol, ele cavalgou através de uma terra cinzenta.
        E então viera o anoitecer, e seu plano fora concluído com sucesso. Adiante, olhando para o leste, estendia-se de norte a sul uma nova maré de colinas desnudas. Eram maiores que as anteriores, e tinham os sopés rochosos e os flancos acidentados. Os caminhos, outrora escavados nas gargantas que se enfurnavam nas depressões entre as colinas, estavam agora cobertos por enormes calhaus e rochas, anulando possibilidades de travessia.
        O cavaleiro desmontou da cela. Bocejou longamente e, com as mãos no quadril, espreguiçou-se num prazer sonolento. Sob a luz prateada que descia do céu, caminhou até a entrada da garganta mais próxima, espremida no espaço entre uma dupla de paredões escarpados. A cada passo, suas botas desgastadas chacoalhavam um monte de britas, que acobertavam a terra infértil nas redondezas dos sopés das colinas. No meio da garganta, pedaços de rochas meditavam na noite, espessos e gigantes demais para que pudessem ser transpostos pelo cavaleiro.
        Não há como continuar. Passaremos a noite aqui. O frio pode nos alcançar, mas os rochedos evitarão que o vento comprometa nossa saúde.
        O cavaleiro assoviou para Faye. Relinchando com empolgação, ela veio galopando e balançando o rabo, os cascos cantando enquanto esmagavam as pedrinhas no chão.
        Após a bagagem no lombo de Faye ser descarregada, não tardou até que tudo estivesse preparado. Num canto afastado, na proteção das rochas proeminentes do penhasco da colina nortenha, o cavaleiro livrou o chão das britas que nele jaziam e preparou uma cama rudimentar com o que trouxera do monte de palha. Sobre ela, esticou seu manto de couro, rasgado e sujo e fedorento, mas que ainda lhe servia com excelência. Bebeu boas goladas da água no odre — que dividira com Faye — e envolveu-se no manto. Enquanto aguardava pela chegada dos sonhos, seu estômago gemia, faminto.
        Aquela seria uma noite de dor.

        Ouça o som, humilde viajante! Mas não se esqueça de usar os olhos. É imperativo que a importância da vista seja tão relevante quanto é a de sua audição.
        O viajante despertou. Abriu os olhos, a visão embaçada. Ainda estava atordoado pela soneca dolorida. Fazia meses desde que dormira pela última vez sobre leitos confortáveis.
        No sonho, uma voz veio e falou comigo.
        Esfregando as mãos contra as pálpebras, sentou-se sobre o manto e cruzou os braços, tremendo sutilmente. O fluxo de um vendaval imprevisto gemia além da garganta, murmurando com vozes fantasmagóricas, anunciando sinistramente o retorno do inverno.
        — Faye... — chamou o cavaleiro, olhando para dentro da escuridão. Mas Faye não se encontrava no recinto. Com o coração disparado, o homem tateou o chão, pegou a bainha da espada e levantou num pulo. Saiu cambaleando de dentro da garganta, a mandíbula a se debater como uma criatura amedrontada. — Faye! — gritou.
        Assim que se removeu da proteção das rochas, o vento arremeteu-se em fúria contra suas vestes. A frigidez uivante, um lobo invisível atracado aos fluxos celestes, atravessou os finos tecidos de lã e lhe congelou os ossos. A negritude era um abismo de profundidade incomensurável, e seus domínios gigânticos representavam toda a vastidão da planície morta.
        O cavaleiro assoviou, mas em vão; o vento soprou e, como que zombando de seus esforços, levou o estalido de sua língua para longe, para o sul.
        Bufando em desespero e com os braços encolhidos devido ao sopro invernal, o cavaleiro vistoriava as proximidades, mas não sabia para onde seguir. Então, perdido em sua confusão, levantou a voz e gritou:
        — Faye! Apareça!
        E algo lhe respondeu.
        Mas não foram relinches, nem cascos a pisar na multidão de britas. Veio até seus ouvidos uma voz, uma gargalhada sadia, inflada com felicidade e deveras empolgada.
        O cavaleiro esqueceu-se do frio e desembainhou a espada. A lâmina zuniu, límpida, e refletiu a palidez da lua em sua superfície.
        — Apareça, covarde! E não ouse atacar Faye! — gritou, atirando longe a bainha, que caiu e chocou-se contra as pedras; mas quando o chape metálico as encontrou ele provocou um estalo, emergindo como uma ameaça no vento imparável.
        Vagando numa confusão que jamais enfrentara, o cavaleiro recuou, buscando proteger-se dentro da garganta. Agora, embora onde estivesse a intensidade do vento fosse menor, o frio repentino surrava-lhe a alma, desconhecendo o significado de piedade.
        — Apareça! — gritou novamente. Sua voz saiu fraca e trêmula, denunciando o profundo medo que remoía os veios de sua consciência.
        — O vento não foi feito para lhe derrubar como ele está fazendo! — a voz, uma segunda vez, se repetiu. Mas agora com grande clareza, e era como a voz de um senhor de idade, mas saudável e bem-humorado, a berrar ante o vendaval. —         O que foi que eu disse mais cedo? Ouça o som, mas não deixe de olhar. Ou algo similar. Não foi?
        E então o cavaleiro, num súbito esclarecimento, notou que não sonhara com aquela voz. Mas, por perto, não havia nada nem ninguém, somente o vento congelante e a terrível desolação. No ínterim de sua realização, pôs-se a pensar que, talvez em razão da fome e da dificuldade constante, a insanidade tenha abocanhado a racionalidade de sua alma, lançando-lhe num estado de desordem e caos dentro de sua própria cabeça.
        No entanto, o medo da perda e o temor da solidão falavam mais alto. Assim, mesmo que estivesse a colher os frutos da loucura, tremendo de frio e vagando sem rumo, era em última ocasião que desejaria perder sua brava e fiel companheira, Faye. Afinal, sua função como montaria não era a singular razão pela qual o cavaleiro nutria afeto. Foram inúmeros os perrenhos que eles vivenciaram como uma dupla, mas que juntos superaram. Acima de tudo, ela tornara-se para ele uma amiga, uma companheira inigualável.
        O cavaleiro, de espada em mãos, renovou sua bravura e fitou o negror murmurante. Suas pernas moveram-se antes que pudesse pensar, penetrando-o na profundeza da noite.
        E o vento soprou...

        No firmamento, a lua desapareceu por trás de uma nebulosa cortina de nuvens pesadas. A escuridão expandiu seus domínios, lançando o cavaleiro em absoluto desalento. Ele avançava através do frio e do horror noturno, focado, o punho cerrado a envolver com força o cabo entalhado. Atormentadas pela brisa, suas vestes esvoaçavam inquietas, sussurrantes. Com um dos braços erguidos, ele protegia os olhos da poeira acomodada no hálito do inverno, cuja delongada e intocada posição enfim se alterava.
        Embora sua causa fosse induzida por poderosas emoções, o corpo do cavaleiro, já enfraquecido pela fome, não indicava capacidade o suficiente para suportar o clima sinistro que se levantara na débil e vasta planície.
        Passaram-se minutos, ou mesmo horas, e os caminhos, ainda mais escuros na ausência de um guia celeste, afugentaram-se. Dado momento, o sopro do vento uivou, reavivando sua potência. Feito um jato de ar, seu leito invisível, adornado por redemoinhos de poeira, aguçou a investida para o sul. E o cavaleiro, por um instante, ajoelhou-se no chão e fincou a ponta da espada na relva morta. Enfim, bravura e coragem falharam, cedendo à ameaça do relento selvagem.
        O homem fechou os olhos, o peito subindo e descendo, os pulmões recuperando-se de toda exaustão que eram capazes de gerar. O outro joelho encontrou o chão, e os dedos, um por um, desprenderam-se do cabo cintilante da espada. A espada...
        Ora, o pobre cavaleiro, com a visão escondida debaixo das pálpebras, não poderia jamais identificar a metamorfose pela qual os misteriosos entalhes sujeitaram-se naquela hora. Pois não foram serpentes, nem chamas, que brilharam sobre a superfície do cabo; fora o cabo, e ele em toda sua extensão, que, como uma estrela flamejante, crepitou em brasa ardente; então, quando a vitória da perdição parecia inevitável, foi feita a luz do Sol na plenitude da Noite. E o cavaleiro despertou da exaustão que o compelia, pois suas pálpebras esquentaram, e, por sob elas, sentiu o clarear de sua visão, como se alguma fogueira fosse acendida diante de seu rosto.
        Quando seus olhos se abriram, motivados pelo calor repentino, o vento cessou seu sopro, e o sol brilhou nas alturas, bem no lugar onde se dispunha a lua por detrás da cortina de nuvens. O homem abaixou a cabeça para evitar a iluminação radiante. Sua visão, migrando de turva para a normalidade, apontava para a relva aos seus pés.
        Em algum lugar, um pássaro piou.
        O coração disparou, tomado por um relampejo desesperador.
        Por debaixo dos joelhos do cavaleiro, e nos arredores, a planície, até então devastada e esquálida, estava diferente.
        A relva do pasto revelou-se verdejante, e árvores alheias despontavam aqui e ali, seus troncos fortes, suas copas férteis e cheias de frutos. Pássaros cantavam, voando pelo céu. Rebanhos alimentavam-se nos sopés das colinas ao leste, que apesar de rochosas, implicavam sinais de vida com aglomerados de musgo e raízes que escapuliam pelas rachaduras. E o dia, misteriosamente desprovido dos tormentos do inverno e da escuridão, resplandecia à claridade do sol, este a erguer-se soberano num céu azul que não continha nuvem alguma.
        No oeste, numa região menos juncada pelo espesso tapete de gramas, levantava-se sobre o solo batido um humilde chalé. A fachada despontava para o leste, adornada por uma pequena varanda envolta por cercas de tábuas de madeira, e um arco feito de tijolos se paralelizava à porta, emergindo a intermédio do cercado. E, como que a acompanhar a solidão da porta, uma janela aberta, à esquerda, ostentava uma ondulante cortina azul-marinho.
        Vislumbrando a misteriosa estrutura e absorto em dúvidas, o cavaleiro, com a periferia dos olhos, entreviu uma silhueta familiar aparecendo nos fundos, que assemelhou-se a longos cabelos balançando de um lado para o outro. Mas rapidamente tal silhueta desapareceu, retornando para trás da casa. O homem não hesitou: levantou-se num tremendo abafamento e puxou a espada do chão. Resgatou suas últimas energias e se antecipou até o chalé, ansioso. Sua forma desengonçada fundiu-se às sombras da parede voltada para o norte, e vindo dos fundos, identificou um relincho familiar, porém mais animado e feliz que o usual.
        O cavaleiro cambaleou e, saltando das sombras, veio à tona como uma aparição.
        Finalmente, sua busca por Faye chegara ao fim. Ela repousava em tranquilidade, deitada de modo em que fazia em raras ocasiões, alimentando-se do mato nas redondezas da porta dos fundos. Adiante, sobre um terreno onde a grama fora aparada, situava-se uma mesa quadrangular com uma dupla de assentos, cada qual localizado em uma de suas extremidades. A madeira da mobília reluzia perante o raiar do sol, denotando que fora lustrada com impecável precisão e carinho. Ao contemplar o ambiente o cavaleiro ficou ainda mais surpreso, e não absteve seu grito de espanto ao examinar o tampo da mesa: de vértice a vértice, a superfície polida se enchia com as mais diferentes formas e cores, abundante em alimentos. Muitos temperos, especiarias há muito esquecidas ou extintas, multiplicavam-se em pratos de idêntica raridade. O aroma de carne fresca brincava com o olfato do cavaleiro. O frango, jazendo como o prato principal no centro da mesa, expelia o calor em espirais mirabolantes de fumaça. O dourado da carne brilhava com os efeitos do azeite e do vinho. Ao redor, haviam inúmeras frutas, incontáveis quantidades de temperos em potes menores, e vegetais e cereais distintos.
        — Faye... — chamou o cavaleiro, a voz frágil e suave como um monte de cinzas. Porém, Faye não mais era o foco de sua atenção. Talvez seus olhos tenham falhado, ou sua percepção tenha sido atordoada pelo milagre descomunal. Não obstante, uma figura excêntrica surgiu sentada numa das cadeiras; trazia sobre a cabeça um chapéu de palha, de aba sutil e pouco avantajada; sobre o corpo ela vestia uma túnica de linho, adereçada com uma faixa púrpura que acobertava-lhe o tronco e unia-se no ombro com o uso de um broche dourado. Com a cabeça baixa, os olhos do misterioso homem se escondiam da luz e de olhares presunçosos. Dos lábios pendia um longo cachimbo de madeira, cujo fornilho soltava uma pálida e inconsistente coluna de fumaça.
        O homem tragou do fumo. Encheu os pulmões e soprou, a fumaça chocando-se e espalhando-se contra a aba do chapéu. Então levantou o pescoço.
        — Você está sozinho há muito, muito tempo, não é? — disse ele, revelando um par de intensos olhos escuros. — Por favor, acompanhe-me nesta refeição, Stenar.
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fear is the mind-killer

30/08/2018 às 18:06 #1 Última edição: 30/08/2018 às 18:18 por Lord Wallace
Belo texto!

Achei a ambientação muito interessante e bem introduzida - gosto quando detalhes relevantes do mundo são revelados pouco a pouco no meio das descrições de atos comuns. Por falar nas descrições, são abundantes e detalhadas, mas ao mesmo tempo fáceis de serem visualizadas e compreendidas. Fiquei curioso em relação à continuação da história, mas mais pela ambientação em si do que pelo gancho do final do capítulo (não pude deixar de imaginar o Gandalf ali com um chapéu de palha heheh).

A maneira de escrita que você usou é bem intrincada e desenvolvida, mas tome cuidado para não tropeçar com isso. Por conta do estilo rebuscado, as palavras repetidas e os erros de concordância e encadeamento ficam muito mais evidentes e podem estragar todo o trabalho que você teve construindo um vocabulário complexo e esmerado. A erudição na escrita deve ser mais um adorno do que um ponto focal do texto em si -- use-a com moderação, mas sem abrir mão do seu estilo.

Continue mandando capítulos pra gente por aqui :ok:



Obrigado pelo comentário, Wallace! Fico felizão com isso, na moral.

A ambientação primária - um cenário desolado e um cavaleiro solitário ao lado de sua montaria - foi uma inspiração que não se esconde nenhum pouco de onde é derivada: Shadow of the Colossus, isto é. Mas, é claro, trabalhei em cima dessa ideia e desenvolvi um ambiente inóspito, e fazendo isso senti uma grande necessidade de ressaltar as dificuldades que, juntos, os dois camaradas houveram de superar. A narrativa agora desvia-se da natureza devastada para reinos de esplendor, mas não por muito tempo. É uma preferência minha descrever mundos em decadência.

Com certeza erros de concordância e repetição são males que me perseguem. Não sou muito bom no que se diz a respeito de um entendimento aprofundado da língua, mas isso não me impede, claro, de exercer minha imaginação numa folha em branco.

É uma dica valiosa, isso que você disse sobre a erudição na escrita. Muitas vezes denoto textos onde o uso de sinônimos é extremamente vasto, tornando-se até mesmo redundante, ou desvirtuando o resto do texto em si.

No mais, valeu mesmo! É sempre animador receber um feedback. Amanhã devo postar o próximo capítulo. Vou postando devagar, afinal não escrevi tantas páginas da história.


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