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Contos do Cego - Sincronismo e Ressonância

Iniciado por O Cego, 01/04/2020 às 01:55

* * *

_Muito bem, a primeira coisa que você tem de saber sobre nós é que somos, sem embargo, uma espécie de torneira para gente como você - Disse Iruel, em voz um tanto preocupada, à Matheus.

Matheus era um dos seus protegidos. E era um protegido problemático. Não porque fosse uma pessoa de más intenções ou pensamentos. Pelo contrário, Matheus era uma pessoa bondosa, que, sem saber, caminhava passos firmes em direção à sua Lenda Pessoal. Ora, os velhos cabalistas ensinam que, se você faz o que é belo, bom e agradável, caminha em direção de sua Lenda Pessoal - Seu grande objetivo nesta existência; claro está, se você caminha em direção de sua Lenda Pessoal, todo o Universo conspira a seu favor.

Uma conclusão lógica a respeito disto tudo é que, se o Universo conspira a seu favor, você vai, em algum momento, conseguir fazer coisas que não conseguiria normalmente. Matheus descobriu isso, uma hora e meia antes, ao socorrer uma jovem que estava prestes a ser estuprada. Sem pensar, correu na direção da moça ao ouvir os primeiros gritos. Não percebeu o rastro de luz que deixou atrás de si, nem as fagulhas de eletricidade que pulavam, pulsantes, de seu punho direito - E, claro está, não teve como entender porque, na cratera fumegante que criou, jazia um corpo calcinado, e não um estuprador.

Tudo aconteceu muito rapidamente - Matheus ouviu os gritos, e recobrou a noção de si com a mesma moça correndo apavorada. Em um centésimo de segundo, o pretenso estuprador não passava de uma pilha de carne queimada por dentro e por fora, reduzido a um nada disforme.

Neste mesmo centésimo de segundo, Iruel voava pelos céus do Rio de Janeiro, e sentiu sua força - sua centelha de energia positiva, um dom do próprio Demiurgo - se esvaindo. Não teve como evitar a própria queda, se esborrachando na Pedra da Gávea. Praguejaria se pudesse, mas não poderia. Mesmo um anjo mais antigo teria sofrido sérios danos com a queda. Esperou por angustiantes quarenta minutos até poder se levantar, pedindo aos céus que seu corpo se regenerasse o suficiente. Sentia-se tão fraco que nem sequer poderia contactar mentalmente a Rede Angélica.

Não podia pedir ajuda. Mas podia pedir ao Pai que aliviasse a sua dor.

Seu pedido, ao que tudo indicava, foi atendido um pouco mais de meia hora depois. Ainda cambaleando de dor, olhou ao redor e para o alto. Viu as estrelas. O Cruzeiro do Sul luzia, seguro de si, inviolável por anjos ou demônios. Sentiu sua própria energia ressoar ao longe. Sentiu confusão em sua aura pulsante - Anjos não possuem alma vivente - e seguiu ainda entorpecido de dor na direção de sua energia, dir-se-ia em direção de si mesmo.

Encontrou um Matheus confuso, com o punho direito fumegante, com o coração contrito e com a alma confusa - As pulsações de sua aura, sua Assinatura Kirlian, não deixavam dúvidas. Como todo anjo da guarda, tinha uma relação especial com seu protegido. Seu protegido podia senti-lo, se a situação assim permitisse. Da mesma maneira, podia sentir o que se passava na mente de seu protegido. De maneira alguma seu protegido, porém, poderia enxergá-lo - E Iruel teria engasgado, se estivesse comendo ou bebendo, quando Matheus o encarou, firmemente, nos olhos.

_ Sei quem você é. Você sabe me explicar o que foi que aconteceu? - Perguntou um Matheus confuso. 

__Muito bem, a primeira coisa que você tem de saber sobre nós é que somos, sem embargo, uma espécie de torneira para gente como você. - Iruel não precisava, mas respirou fundo, e sentiu suas costelas doerem.

_Gente como eu? - Matheus estava mais e mais confuso. Sentia medo. Sabia que aquele ser estranho, um homem de olhos cinza-claros, de face resoluta e expressão de dor não era um ser humano. Era um anjo. A auréola brilhava de maneira baça, num tom de azul.

_Sim, gente como você. Você é um bom rapaz, Matheus. E coisas boas acontecem para boas pessoas.

_Coisas boas? Coisas boas? Eu matei um homem, pelo amor de Deus! - Matheus, exasperado, retrucava - Tão contrito estava que quase não percebeu que, acima de sua cabeça, pairava uma auréola de um tom de azul vivo, radiante, puro.

_Matheus, você tentou salvar uma pessoa da perdição certa. E, quando praticamos uma boa ação - especialmente num momento tão crítico, tudo conspira a nosso favor. De alguma maneira você precisou de mais força do que podia dispor, e sua alma vivente sincronizou com minha aura pulsante. Aquela força toda, aquele poder todo... Não eram seus.

Matheus não havia sentido nada. Dê poder a uma pessoa, e ela se apegará a ele tal qual um náufrago se apega à sua tábua de salvação. A única coisa que sentiu veio a posteriori - repulsa, por ter tirado uma vida. Mesmo que a lei o justificasse, sentia-se sujo, maculado. Ouviu ao longe a voz de Iruel:

_Você é um caso raro - Consegue sincronizar com seu guardião em situações de extrema necessidade. Você é o primeiro, em todos esses anos. - Iruel sorriu, um sorriso sincero e feliz. Poucos anjos conseguiram ter protegidos tão puros de coração a ponto de sincronizarem. Grande parte havia sido destruída nos últimos mil anos. - _Não posso explicar muito mais. Na verdade... Não sei muito a respeito.

As últimas palavras de Iruel tiveram o efeito de deixar Matheus ainda mais perdido. E confuso: Sentia que aquela confusão não era sua, mas sim de Iruel. O velho anjo entendeu. E disto, entendia.

_ Não somos apenas síncronos, somos ressonantes. Você deve ser capaz de sentir o que eu sinto. Já manuseou uma espada na vida, Matheus? - Disse, ao mesmo tempo em que usava um pouco de sua força para conjurar uma espada através de um bolsão de hiperespaço e a arremessava na direção de Matheus. Este agarrou a espada no ar, empunhando-a à maneira germânica... da mesma maneira que Iruel faria. Um Iruel sorridente sentia suas forças acabando - teria de voltar à Cidadela de Prata, o lar dos seres celestes, para se recuperar. Com dificuldade calculou um vetor através das linhas de Ley para voltar à sua Cidadela. Antes de sumir em um punhado de luz, virou-se para Matheus:

_No momento, não posso lhe dizer mais nada. Você vai lembrar de coisas que nunca viveu. Sentir coisas que nunca tocou. Vai ver mais do que seus olhos permitem. Vou voltar, Matheus. Acostume-se, pelo menos por enquanto. Deus te guarde, meu protegido.

E sumiu.

Um Matheus confuso olhou pela janela. O brilho refletido na lâmina da espada ainda vinha da auréola, que, agora evanescia aos poucos. Enxergava nuvens novas, de formatos diferentes. Sentia o vento distante chegando em seus ouvidos. Sua visão mostrava um mundo menos cinzento, cheio de linhas que atravessavam céus e terra. Percebia estrelas se movendo rapidamente pelo céu noturno - E sabia que não eram estrelas, mas seres celestes.

Por um momento, não simplesmente seres celestes, mas, de uma maneira louca, seus... Irmãos de armas.

Deixou o corpo cair no sofá.

* * *

Sachiel, o nephilin, amparou um Iruel enfraquecido no portão principal da Cidade de Prata. A despeito das rivalidades entre anjos e nephilins, Sachiel e Iruel eram bons amigos e confidentes. Haviam sido parceiros no mesmo coro, nos tempos idos da época do Imperador Diocleciano. Tempos terríveis, de muito trabalho contra os deuses de Roma. Iruel estava enfraquecido, mas feliz. E confuso.

_Bom amigo... Temos muito que conversar. - Iruel, sorriso no rosto, tinha muito a dizer. Sachiel podia sentir sua aura pulsante cada vez mais radiante.

* * *