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Pintura Íntima

Iniciado por Elyven, 25/05/2013 às 11:41

25/05/2013 às 11:41 Última edição: 25/05/2013 às 11:43 por Elyven
Os mamilos maculados de bege espalhavam a tinta no centro da tela ao mesmo tempo em que a única mão da pintora dançava à direita, tingindo o espaço branco com a palma suja de um vermelho escarlate. Naturalmente ruiva, e sempre com os fios presos numa trança até a cintura, ela esticou a longa perna esquerda para alcançar uma lata de tinta verde e fez com que a sola do pé áspero beijasse o fluído. Sem parar com o braço direito e o movimento circular dos seios, a mulher foi acrescentando suaves pisadinhas verdes à obra. O corpo seminu, velado apenas pela calcinha de seda e uma tênue penumbra, se movia ao ritmo de Beethoven. Corpo este que, para ela, era o pincel principal, e tinha os membros, inferiores e superior direito, como pincéis biológicos secundários; Os três trabalhando com precisa coordenação motora e artística, com única exceção da mão esquerda, amputada após um acidente vivido pela artista de vinte e cinco anos e de olhos tão azuis quanto o oceano mais profundo.

Após recuperar-se e definitivamente conseguir não mais depender dos medicamentos tarja preta, Rúbia encontrou uma maneira de reinventar a sua arte, o dom que herdou do pai, que, assim como o antebraço esquerdo dela, foi levado da vida da mulher no dia da explosão no avião. Vinda de Manaus para São Paulo, após ter sido encontrada por Gutto Versian, também pintor e empresário, a ruiva começou a trabalhar compulsivamente desde que pisou à capital do Estado Paulista no início daquele setembro chuvoso e soturno de dois mil e sete. Alojou-se na casa de uma tia, cunhada do pai, temporariamente, até poder se ajeitar. O sonho dela de ter a arte espalhada pelo país foi multiplicado pelas promessas do empresário, um sonho que construiu regrado e regado pelas influências e ensinamentos do falecido pai; sonho que a mãe da artista sempre fez questão de desmanchar e de tentar, sobretudo, fazer com que a filha teimosa deixasse o mundo das aquarelas de lado e desse mais valor à descendência e os dons ciganos. Mas Rúbia Balázs não nascera para enganar as pessoas por detrás de uma mesa de tarô e ou interpretando sonhos, como a mãe. Era isso que pelo menos a ruiva pensava até quando teve a primeira crise aos onze.

Os médicos diagnosticaram epilepsia, mas Cássia sabia que eram os enxergues de um futuro incerto ou mesmo um passado insistente, e apesar dos protestos de Eli a cigana vivia falando que o marido tentava negar os dons que a filha obteve como um legado do povo nômade. Após a separação dos pais, Rúbia o escolheu e cresceu com Eli, causando desgosto na mãe e alegria naquele. Mas as crises ou visões continuaram e a pintora tinha suas dúvidas sobre elas, até um dia ter um desses anormais devaneios com o pai. Guardava ela, ainda na memória, a pior das crises epiléticas ou das visões precógnitas, a vez em que previu, de alguma forma, o acidente que matou Eli, queimou quase todo o braço esquerdo dela e jogou-lhe num poço de aparentes tristezas sem fim... Mas Rúbia cansou-se dessas pequenas mortes diárias após o desastre, e um dia acordou com a esperança renovada, apoiou-se apenas nas memórias boas que construíra ao lado do pai e seguiu o conselho mais importante de Eli:  aprender a domar o medo e usá-lo em benefício próprio.

E foi assim que ela se reinventou, escalou as frias paredes escorregadias do fosso da depressão e venceu as barreiras que a impossibilitavam de continuar como pintora (pois talento dela, a princípio, estava na canhota). A manauense então redescobriu o corpo e começou a pintar telas gigantes o utilizando como pincel, telas que representavam vislumbres desfocados das visões que tinha de quando em quando. Assim ela recomeçou a subir os degraus da vida... E foi assim que o olhar intuitivo do empresário Paulistano caiu sobre a pintora de uma só mão, dona de uma própria e original arte; uma pintura íntima.   

As chamas das velas, únicas fontes de luz da galeria entregue pelo empresário à ruiva como um atelier particular, bruxuleavam, lambidas pelo vento com cheiro de chuva que invadia a espaçosa sala pela janela do décimo oitavo andar do Acaiaca. A mão direita de Rúbia continuava a bailar, espalhando a tinta vermelha pela tela dois de altura por três de largura, os mamilos pararam o movimento e o outro pé mergulhou numa lata de tinta preta após o pé esverdeado fazer um deslize breve e cessar. Rúbia então parou de pintar quando  Moonlight Sonata chegou ao fim, apertou o stop no computador para encerrar o programa com as músicas e tomou distância para perscrutar a arte. E nesse instante o celular tocou e ela decidiu atender antes de se concentrar nos retoques finais do futuro quadro.

–- Alô! - Sua voz saiu meio cansada.
–- Rúbia, minha querida, já é meia-noite e nove. Não vem pra casa hoje de novo? - A voz da tia soou preocupada do outro lado da linha.
–- Meu Deus, tia! Nem vi o tempo passar.
–- Posso ficar despreocupada então?
–- Desculpe tia, eu não queria...
–- Tudo bem, eu compreendo... É o seu trabalho.
–- Vou dormir aqui na galeria como na noite passada. Não se preocupe. E eu prometo que ligo para a senhora da próxima vez que isso acontecer.
–- Você está ficando muito concentrada nessas suas pinturas, querida.
–- Sim tia... Estão ficando ótimas. Preciso terminar a tempo para a exposição de sexta.
–- E o que pintou hoje?
–- Eu...

E então um breve silêncio revelador.

Rúbia ficou completamente muda quando finalmente reparou na mais nova obra. Sabia que a visão com a tia, pela manhã, havia sido um tanto estranha e também confusa pelo fato da pintora não ter conseguido distinguir o que era a mancha escura bem ao lado do corpo da senhora caída ao chão. A mancha negra que a ruiva por um momento pensara ser uma sombra, como houvera há pouco pintado utilizando o pé direito, era a figura de um revolver apontando para a cabeça de uma mulher de óculos quadrados, pintada de bege pelos mamilos pontudos da talentosa artista.

-– Rúbia?... Está ai?... Minha querida...

Mas Rúbia Balázs não conseguiu responder a tia e, por reflexo, somente fora capaz de levar a única mão à boca; assustada tanto pela nova pintura quanto pelo trovão que ecoou lá fora, deixando o centro da cidade em trevas. Se não fossem as chamas tremeluzentes das velas e a luz branca do visor do telefone touchscreen, a galeria também seria completamente engolida pela escuridão lúgubre que caíra, como um manto de sombras, sobre aquela melancólica noite primaveril de três anos atrás.

30/05/2013 às 00:11 #1 Última edição: 09/10/2013 às 00:38 por JohnBolton
Provocante.
Seu conto invade e machuca; não se sai impune após a leitura.
Digo, inclusive, que me acometeu com sensação ínfima mas inexplicável tão quanto a leitura de contos/poemas de autores consagrados, como Augusto dos Anjos e Neil Gaiman.

Parabéns.

Citação de: JohnBolton online 30/05/2013 às 00:11
Provocante.
Seu conto invade e machuca; não se sai impune após a leitura.
Digo, inclusive, que me acometeu com sensação ínfima mas inexplicável tão quanto à leitura de contos/poemas de autores consagrados, como Augusto dos Anjos e Neil Gaiman.

Parabéns.

Comentário muito inteligente. Loguei só pra respondê-lo, John. Inclusive sou leitora assídua de André Vianco, ele é muito fera! Manda bem. E Neil Gaiman é um mestre! Augusto dos anjos eu li pouco, mas é muito bom.  Gostaria que os leitores se ferissem. Meus contos sobrenaturais são bons. Quando ler alguns, se quiser um dia, entenderá mais a psicologia dos meus personagens e os eventos que se seguem.  Eu te indico a ler "Lado Inverso" ou "Além do Óbvio" ou "Depois do Beijo Azul" meus novos contos. Abraços!

Ganhei um presente de um leitor que é membro da MRM e gostou tanto do conto que desenhou a minha Rúbia! Achei lindo o desenho e atualizei aqui.  Será que podia? Pois tinha respondido antes. *-*