O TEMA DO FÓRUM ESTÁ EM MANUTENÇÃO. FEEDBACKS AQUI: ACESSAR

Noites de Luar

Iniciado por Moon[light], 25/10/2013 às 20:10

25/10/2013 às 20:10 Última edição: 25/10/2013 às 20:18 por Moon[light]
A história de amor de um homem normal e o demônio que apareceu no telhado da sua casa...
Essa é, provavelmente, a primeira história que escrevi quando comecei a levar isso a sério. Depois de revisá-la e mudar algumas coisas, considerei ela "terminada". Logo, apesar de dizer que esse é o texto original, essa não é toda a verdade.
Originalmente escrevi como uma série em capítulos curtos, mas que agora foram reagrupados em três partes.

Parte 1
Spoiler
Era uma noite quente. Quente demais para uma noite de outono.
Grilos cricrilavam e corujas piavam.
Era uma noite barulhenta. Barulhenta demais para uma noite de outono.
Não dormia direito fazia um bom tempo. Acho que ninguém estava dormindo bem, não com a eminência de uma guerra civil sobre suas cabeças.
Perguntava-me por que as pessoas insistiam em fazer guerras?
Perguntava-me por que as pessoas insistiam em querer machucar umas as outras?
Perguntava-me por que as pessoas insistiam em querer impor suas crenças sobre as outras?
Por quê?
Por quê?
Por quê?
Tantas perguntas vinham à minha mente.
Sentia-me cansado.
Meus braços pareciam querer cair. Meu corpo estava em cacos. Queria desmaiar, mas não conseguia. Por mais que tentasse meu cérebro não parava de trabalhar.
PAM, PAM, PAM
Ouvi passos. Passos vindos do telhado da minha casa. Seria um ladrão? A cidade andava violenta.
Levantei-me e fui para minha cômoda onde guardava uma faca. Armas de fogo eram, e ainda são, caras demais e, não bastasse isso, se o governo me pegasse com uma eu seria preso e executado.
Abri a gaveta e peguei a faca. Não era muito grande, mas era muito bem feita. Meu avô tinha me dado ela quando era garoto dizendo que um dia iria precisar dela.
Fui para a varanda. De lá conseguia ver o teto do meu quarto.
Subi pela escada e cheguei ao lugar de onde os sons vinham.
Havia uma garota lá. Uma bela garota. Cabelos pretos tão longos que mesmo de pé as pontas tocavam o chão. Usava um vestido preto bem simples.
Ela estava lá, parada, olhando para algum lugar. Não se mexia.
Talvez não tivesse me visto.
Não sei. Também não me importava. Achei melhor tomar a iniciativa.
"O que está fazendo em cima da minha casa?"
Foi o que eu perguntei. Agora acho que não foi a pergunta certa.
Ela virou o rosto para mim. Seus olhos eram bonitos, cor-de-rosa como flores. Embora soubesse que não havia olhos cor-de-rosa naturais não deixei de achá-los bonitos.
A garota ficou me encarando.
"Eu perguntei o que você está fazendo em cima da minha casa."
Ela continuou olhando para mim, imóvel.
Era uma garota estranha.
De repente ela se virou para a direção em que estava olhando antes da minha primeira pergunta, levantou a mão e apontou para a lua.
"A lua."
A voz dela era suave, tão suave que nem parecia a de um humano.
"Que tem a lua?"
"Estou olhando para ela."
Aquela foi a coisa mais sincera que ouvi em toda minha vida.
"Mas por que de cima da minha casa?"
"E por que não?"
Era uma boa pergunta.
O que tinha de mais em olhar a lua de cima da minha casa? A vista era boa e a lua era sempre tão bonita.
Resolvi tentar me aproximar.
Sentei-me ao lado da garota que permaneceu de pé, parada, olhando para a lua.
Não conseguia parar de pensar em quem era aquela garota. Resolvi perguntar. Não tinha nada a perder mesmo:
"Quem é você?"
Ela se sentou.
Será que disse algo que não devia? Ela se virou para mim e disse então algo que mudaria tudo dali para frente.
"Um demônio."
Foi o que ela disse.
Aquilo foi uma resposta inesperada. Por um segundo eu quis rir. Rir como jamais ri antes. Rir, rir, rir e rir mais.
Mas não podia. Ela estava séria, séria demais para quem tinha acabado de contar uma mentira.
Não sentia que aquilo era mentira.
O que aquilo queria dizer? Que o que ela dissera era verdade? "Mas demônios não existem!", pensei.
"Ou será que existem?"
Aquilo me deixou nervoso. Tão nervoso que me se senti sufocado. Senti como se minha garganta estivesse sendo apertada por mãos invisíveis.
Continuei a conversar com ela para tentar espantar o nervosismo:
"E o que um demônio faz em cima da minha casa?"
Perguntei aquilo sem pensar. Foi uma pergunta idiota, mas pelo menos espantou um pouco do nervosismo.
Ela ficou lá, sentada, parada, olhando para a lua:
"Eu estou olhando para a lua."
Foi engraçado ela ter dito aquilo. Era óbvio que ela estava olhando para a lua.
Resolvi continuar perguntando. Por alguma razão conversar com ela me deixava alegre.
"E o que um demônio está fazendo no mundo dos humanos?"
"Procurando uma coisa."
Nesse instante, nesse curto instante senti como se ela estivesse triste.
Pela primeira vez ela havia demonstrado um sentimento. Virei-me para ela como uma criança curiosa.
"E o que procura?"
Ela se levantou e eu fiquei olhando para seu rosto. Olhando para o céu ela começou a falar.
"Era uma vez uma garota que nasceu num mundo do qual ela não gostava. Um mundo cujos habitantes eram seres cruéis e que só pensavam em si mesmos. Essa garota cresceu criada por pais que batiam nela e a castigavam por ela questionar o que as pessoas faziam. Um dia essa garota ouviu falar de um mundo no qual as pessoas se importavam umas com as outras. E desde então a garota busca esse mundo."
Pensamentos começaram a correr minha mente.
A garota da história, a garota que fugiu do mal em busca de um mundo perfeito.
Era triste.
Numa busca como essa ela teve que vir parar logo nesse país.
Nesse país onde o povo insiste em querer guerrear em nome daqueles que eles chamam de Deuses.
Senti-me triste por ela. Gostaria que ela não tivesse que ver isso. Não queria que ela perdesse as esperanças.
Mas por quê? Por que sentia essa empatia por uma garota que mal conhecia?
Era estranho. Era muito estranho.
De repente ela se virou para mim.
"Tenho que ir."
Por que ela me disse aquilo?
Antes que pudesse perguntá-la isso outra pergunta saiu da minha boca por puro reflexo. Uma pergunta que não pensei que pudesse fazer.
"Você vai voltar amanhã?"
Por que perguntei aquilo? Sentia-me confuso.
"Sim."
Uma palavra. Uma única palavra, mas que me fez sorrir:
"Até amanhã então."
"Até."
Após essa curta despedida ela pulou do telhado da minha casa para o telhado do meu vizinho, e do telhado do meu vizinho para o telhado do vizinho dele. E assim continuou até sair do meu campo de visão. Um humano não poderia fazer aquilo. Mas não me surpreendi, afinal, ela era um demônio.
Fiquei lá, parado, olhando para a lua por mais alguns minutos e então fui dormir.
[close]

Parte 2
Spoiler
O dia seguinte passou rápido.
Estava ansioso.
Ansioso para me encontrar com ela a noite.
Meu trabalho como vendedor na mercearia não me cansava muito. Meus clientes diziam que nunca haviam me visto com um jeito tão alegre.
Entretanto uma visão cortou minha alegria. Um homem entrou na minha loja. Um homem que antes não me assustaria, mas que agora significava perigo. Um homem com cabelos pretos curtos, óculos finos e uma batina preta com uma cruz no colarinho.
Aquele homem era o que naquela terra chamávamos de Exorcista.
Vê-lo foi mais assustador para mim do que jamais será para qualquer outro.
Medo.
Esse sentimento que tomou conta de toda minha vida agora estava maior do que jamais esteve.
Estava em pânico.
Não queria perder a única pessoa de que já me aproximei.
Era irônico que eu que jamais pude me aproximar de ninguém por medo da crueldade tenha tido como primeira amiga um demônio.
Um demônio...
Seria aquela a razão daquele homem estar lá? Será que ele havia sido enviado para matar aquela garota?
Não queria acreditar, mas sabia que era isso.
Não permitiria...
Não iria deixar acontecer...
Jamais deixaria que fizessem nada contra ela!
Antes que pudesse perceber ele estava frente a frente comigo.
Numa mão segurava a cesta de compras e na outra o dinheiro.
Talvez ele não estivesse lá para trabalhar. Talvez ele só estivesse participando de um congresso ou visitando um amigo.
Mas e se não fosse isso? Se ele realmente quisesse fazer mal a ela eu tinha de avisá-la.
Eu tinha que saber para o que ele estava lá.
"O que um exorcista faz aqui?"
Foi o que perguntei enquanto registrava os últimos itens da cesta dele.
"Fui enviado para cuidar de um demônio que habita essa cidade."
Por uma instante perdi o ar. Uma bala parecia ter atravessado meu peito.
Não havia dúvidas de que ele estava atrás dela.
Eu tinha que avisá-la.
Antes que pudesse notar, ele havia deixado o dinheiro em cima do balcão e saído.
Durante o resto do meu dia a angústia tomou conta de mim e à noite eu me encontrei com ela que estava tão calma quanto é possível alguém estar.
Quando falei para ela sobre o exorcista ela não pareceu preocupada ou sequer surpresa:
"Eles foram rápidos."
"Você não está preocupada?"
"Não."
Ela parou por um instante e abaixou a cabeça.
"Já me acostumei com as perseguições."
Naquele momento senti que ela era mais parecida comigo do que pensei. Naquele curto momento meus sentimentos por ela mudaram.
Então é isso?
É isso que eles chamam de...
Amor?

Durante as duas semanas que se seguiram eu continuei a me encontrar com ela todas as noites.
Durante as duas semanas que se seguiram eu me aproximei mais e mais dela.
Durante as duas semanas que se seguiram eu me apaixonei mais e mais por ela.
Antes que me tocasse era quase primavera e em breve o festival das flores. Decidi convidá-la para ir comigo.
Naquela noite esperei por ela como jamais havia esperado antes, já que nessas duas ultimas semanas ela chegou sempre no mesmo horário. Em nenhum dia chegou antes, em nenhum dia chegou ou depois. Jamais vira alguém tão metódico e perfeccionista quanto aquela garota.
Acho que foi por isso que me apaixonei por ela. Uma garota completamente diferente de todas as outras. Uma garota única.
BLEN, BLEN, BLEN, BLEN, BLEN, BLEN, BLEN, BLEN, BLEN, BLEN, BLEN, BLEN...
O relógio da igreja tocou doze vezes. Era meia noite e ela ainda não havia chegado.
Um pensamento tomou minha mente e por mais que tentasse fazê-lo sumir ele permanecia lá, me torturando.
Coloquei a mão no bolso e vi que minha faca estava lá.
Desci do teto correndo e fui para as ruas.
Corri em direção a igreja tão rápido quanto meu corpo podia.
Atravessei as ruas escuras e vazias daquela cidade sombria sem olhar para os lados. Cheguei ao meu objetivo, uma Igreja Vitoriana cercada por um portão de ferro da minha altura.
Após pulá-lo andei pelo caminho de paralelepípedos coberto de folhas de laranjeira caídas. O som do vento batendo nas árvores tornava a situação tão tensa quanto é possível uma situação ficar. No fim da trilha estava a entrada. Antes de cruzá-la olhei para o céu e vi que a lua estava encoberta por nuvens.
Suspirei.
Na primeira noite em que ela não apareceu a lua também não apareceu...
Abri a porta e vi, amarrada numa cruz de ferro por correntes enferrujadas e com seu vestido manchado de vermelho, aquela que eu amava e, com uma faca em mãos e um sorriso sádico no rosto, aquele Exorcista que dias atrás encontrei estava cercado por outros de igual demência a entoar cânticos latinos.
Ao notar minha chegada ele se virou para mim sem parar de sorrir.
"Bem vindo, irmão."
Foi o que ele disse.
Olhei no fundo daqueles olhos cruéis, tentando encontrar uma razão para o que ele estava fazendo. Meu primeiro desejo foi de sacar minha faca e rasgar sua garganta com um único golpe.
Mas não consegui.
Meu corpo não obedecia meu cérebro e eu não conseguia me mover. Tudo que podia fazer era olhar para aquela cena assustadora sem poder fazer nada.
Naquele momento senti ódio.
Ódio daquele homem por estar torturando alguém que jamais fez nada contra ninguém e de mim por ser fraco demais para detê-lo.
Fraco... É isso que eu sou? Fraco? Fraco? Fraco?
"Sabe..." Disse ele, pegando a faca e passando-a na batina para limpar o sangue "Quando entrei na sua loja não esperava nada. Achei que só fosse comprar o que havia ido comprar e ir embora. Porém a providência divina é grande e poderosa e de onde não esperava nada veio uma revelação".
Ele se virou para a garota e apertou o lado da faca contra to pálido pela perda de sangue.
"Ela é tão bonita. Pena que é um demônio."
Foi o que ele disse, enquanto passava a língua pelo pescoço dela.
Aquela cena repulsiva me despertou do estado de choque. Passei a mão pelo meu bolso e peguei a faca. Comecei a andar vagarosamente em direção a ele com a arma a vista.
Ao ver que eu me aproximava ele tirou uma arma de fogo de dentro da batina e apontou na minha direção:
"Não seja tolo! Essa herege te infectou com seu veneno! Demônios vivem para fazer com que os homens caiam."
"O que você sabe? Não passa de um cão sem vontade!"
"Você ainda pode se salvar, homem! Apenas saia daqui e esqueça que conheceu essa coisa!"
Coisa.
Como ele ousou chama-la de coisa?
A fúria que tomava conta de mim apenas era acrescida por suas palavras.
"Ela é infinitamente mais humana que você!"
"Blasfêmia!", ele gritou e os outros repetiram em coro uníssono.
"Alguém capaz de torturar alguém que nem ao menos conhece apenas porque foi mandado fazê-lo não é digno de ser chamado de humano!", disse enquanto apertava a faca com as duas mãos e a apontava para o desgraçado.
"Esse monstro já tomou sua mente! Terei de exorcizá-lo com o metal de minhas balas sacras! Não se preocupe, porém, pois o céu pertence àqueles que inocentemente caíram pelo veneno de seres pérfidos!"
Ele virou-se de frente para mim, segurando a arma com as duas mãos. O som da arma sendo engatilhando chegou ao meu cérebro como um sinal de alerta. Meus batimentos cardíacos aceleraram e minha respiração ficou mais e mais rápida. Os cânticos aumentavam em volume e fúria. Uma insana sinfonia de sons que me jogava ao desespero!

Seria aquele meu fim?
Eu não podia morrer!
Eu não podia morrer!
Eu não queria morrer!
Queria gritar, mas nenhum som saía de minha garganta. Tentei andar, mas minhas pernas estavam paralisadas. Por mais que tentasse me mexer não conseguia.
Não queria morrer!
Não queria morrer!
Não queria morrer!
Não queria morrer:
"Descanse em paz!"
Fechei os olhos e ouvi um som alto. Senti algo quente e molhado na minha camisa.
Não houve dor.
Então isso é a morte?
Estou... morto?

Abri os olhos. Minha visão ainda estava embaçada. Soltei a faca e esfreguei a mão no rosto.
Minha visão voltou ao normal e então eu vi...
As correntes haviam sido rompidas em pedaços e agora jaziam no chão.
A boca do exorcista estava ensanguentada e seus olhos sem luz. A arma que outrora ele apontava ameaçadoramente para mim estava caída a seus pés. Os outros loucos recuavam lentamente ante uma força que desconheciam. Do peito do exorcista saía uma mão, fina e branca, e daquele ponto brotavam fios de sangue que desciam pela roupa até o chão, formando uma poça vermelha.
Num movimento rápido a mão sumiu do peito e o corpo caiu sobre a poça de sangue, espirrando líquido para todos os lados.
No céu as nuvens se dissiparam e através da janela uma luz fraca iluminou a morte daquele homem.
Os outros loucos ainda tentaram avançar sobre ela, ensandecidos e aterrorizados, mas uma a um tornaram-se cadáveres mutilados.
Com as mãos e vestido molhados de sangue a garota se aproximou de um eu confuso.
"Você está bem?"
Foi o que ela perguntou.
Alguém que instantes atrás tinha uma faca cravada na barriga perguntou se eu estava bem.
Senti lágrimas correrem pelo meu rosto. Olhei para aquela figura gentil e tantas perguntas vieram à minha cabeça que nem mesmo em um ano inteiro poderia fazê-las todas.
Abracei-a e num instante não havia mais pergunta alguma.
Não me interessavam os "porquês".
Não me interessavam os "como".
Só me interessava abraçá-la, sentir o calor daquele pequeno corpo.
Por alguns instantes ela ficou imóvel enquanto eu a abraçava, mas então, com uma ternura angelical, ela passou os finos braços pelas minhas costas e me abraçou de volta.
Nós nos abraçamos sob a luz de uma lua curiosa a nos olhar através das janelas de vidro decorado daquela Igreja Vitoriana.
Ainda abraçado a ela eu me lembrei de que no dia seguinte seria o aniversário da cidade e como todo ano haveria um grande festival. Deixei-a ir de meus braços e segurei suas mãos. Olhando no fundo daqueles olhos cor-de-rosa peguei toda a coragem que possuía.
"Amanhã será o festival em comemoração ao aniversário da cidade e eu queria que você fosse comigo." Gaguejei. "Então, quer sair comigo?", pedi enfim.
"Eu adoraria."
Foi o que ela disse com a face corada e os olhos brilhando com a luz do luar.
[close]

Parte 3
Spoiler
A noite estava fria e nublada. Havia mais luzes visíveis na cidade do que estrelas no céu. Não era por menos que chamavam essa cidade de "Cidade Luz". Para onde quer que eu olhasse havia lâmpadas piscando, mas um lugar brilhava mais que todos. Uma enorme construção de ferro forrada por um tapete de estrelas de vidro. A grande torre de metal apontada como uma lança no meio daquela cidade. Ela estava lá há mais tempo do que eu vivi.
Eram oito horas quando ouvi alguém bater na porta. Aquilo era estranho já que eu não conhecia ninguém e não achava que alguém iria querer comprar algo num dia como aquele, ao menos não na minha mercearia.
Desci pelas escadas de madeira sem muita pressa. Quando abri a porta caí sentado.
Na minha frente, num vestido branco de várias camadas, cujo lado direito na altura da perna possuía um corte que deixava todo o membro à mostra. Seu cabelo longo estava preso por uma enorme fita vermelha que ia até as costas.
Nenhuma palavra que eu possa dizer conseguiria descrever tudo que senti ao vê-la naquele momento.
"Você está bem?"
Ela perguntou com uma voz estranhamente preocupada. Jamais antes ela havia mostrado um sentimento assim na voz.
A garota me estendeu a mão. Segurei firmemente nela para me levantar, sem precisar me preocupar em machucá-la já que a força dela superava em muito a minha.
"Obrigado."
Disse enquanto limpava o pó da minha calça.
Tranquei a porta e juntos fomos em direção às barracas do festival. Enquanto passávamos pelas ruas os olhares de todos os homens se voltavam para nós. Apesar de incômodo para mim, ela parecia não ligar para aquilo.
Enfim chegamos às barracas. A mistura das vozes de todos que estavam lá junto com a música cantada pela voz de uma famosa cantora e ainda toda aquela luz tornavam a situação caótica. Tudo aquilo era um tanto estranho para mim, porém ela apenas corria de uma barraca para outra.
Lembrei-me da razão dela estar aqui. Talvez aquele fosse o mundo que ela buscou. Um mundo onde as pessoas só se importavam em ser felizes e fazer os outros felizes. Toda aquela alegria infantil fazia sentido, afinal ela finalmente encontrou o mundo que buscava.
Por um instante a perdi de vista. Olhei para todos os lados até vê-la numa barraca de doces. Quando ela se virou tinha em cada mão uma maçã caramelada. Esticando a mão direita ofereceu uma para mim.
"Obrigado."
Foi o que disse pegando o doce e dando uma mordida.
Caminhamos até chegar a um parque onde sentamos num banco sob uma enorme laranjeira.
"É divertido."
Ela disse enquanto olhava de um lado para o outro no céu.
"O que você está procurando?"
"A lua."
Ela disse ainda procurando.
"Por que você sempre fica olhando para a lua?"
Não pude evitar perguntar. Aquilo me martelava desde que nos conhecemos.
"Porque independente do que aconteça, independente de quanto te odeiem, a lua sempre vai sorrir para você".
Acho que aquilo significava muito para ela.
"Achei!"
Ela disse enquanto apontava para a grande luz no céu.
Olhei para a mesma direção que ela e lá vi a lua crescente.
"O que é um beijo?"
Ela perguntou sem parar de olhar para a lua.
"O quê?"
Perguntei um tanto nervoso.
"Você me ouviu."
"Bem... acho que a melhor maneira de explicar é mostrando."
Foi tudo o que pensei em dizer.
"Pode ser agora?"
Meu rosto se aproximou do dela pouco-a-pouco até que nossos lábios se encontraram. A sensação macia correu por entre meu sistema nervoso e instintivamente fechei os meus olhos. A respiração leve fazia cócegas em mim. Abracei-a pelo resto do beijo até que não pude mais suportar:
"Então é isso?"
Ela disse calmamente.
"É. O que achou?"
"Eu gostei."
De repente um som alto tomou conta de do local. Gritos vindos das barracas puderam ser ouvidos e uma fumaça negra se ergueu. Um som alto se destacou de todos mais. Um som que significava perigo, um som que significava morte. O som de um tiro.
A revolução havia começado.
Ha! Que belo dia eles escolheram para começar!
Eu não sabia o que fazer, estava irritado, assustado, preocupado e tantas outras coisas que eu mal podia me controlar.
"Droga, droga! Por que eles tinham que fazer isso justo hoje!"
Exclamei enquanto me levantava do banco e olhava para a cidade de onde vinham gritos que imploravam por ajuda.
"O que está acontecendo?"
Na hora achei que ela estivesse falando sobre a cidade, mas agora entendo que era de mim que ela queria saber.
"Guerra!"
Falei enquanto me colocava minhas mãos sobre a cabeça.
"Guerra?"
Ela perguntou num tom tão tranquilo que, naquela hora, me irritou.
"É, guerra" – gritei enquanto a colocava frente a frente para mim – "Guerra! Pessoas se matando! Tiros! Explosões! Sangue! Consegue entender?"
"Você está bem?"
Foi o que ela me respondeu. Não consegui me controlar.
"Como posso estar bem? Está acontecendo uma guerra, droga!" Lágrimas começaram a sair dos meus olhos. Caí no chão, chorando. Não conseguia pensar, não conseguia me mover, só conseguia ficar lá chorando.
De repente um homem armado com uma arma que nunca tinha visto chegou onde estávamos.
"Parados!"
Foi o que ele gritou enquanto apontava a arma em nossa direção.
"Acabou, ele vai nos matar...".
Foi tudo que pude dizer. Sentia que aquele era o fim. Não havia salvação. Independente do que eu fizesse nós morreríamos ali.
Nós...
Morreríamos...?
...
Não...
Não me importava em morrer, mas não podia permitir que o mesmo acontecesse com ela!
Passei a mão pelo bolso procurando a velha faca que meu avô um dia havia me dado. Ela estava lá. Peguei-a de um jeito que achei que o homem não poderia perceber. E então esperei. Esperei um momento no qual eu pudesse agir. O homem se aproximou de nós e apontou aquela estranha arma para mim.
"Levante."
Foi o que ele me ordenou.
Hesitei por um segundo.
"Já disse para levantar!"
Ele gritou enquanto balançava a arma.
Era isso! Aquela era a chance de que eu precisava! Movi-me o mais rápido que pude e...
Senti algo quente em mim. No instante seguinte estava deitado no chão com um líquido vermelho me cercando.
Minha visão começou a escurecer. Não conseguia mover um músculo sequer.
E então tudo ficou preto.
...
...
...
...
No meio da escuridão vi aquela garota. O vestido branco tinha diversas manchas vermelhas e os olhos pareciam tristes. Olhei para o lado e vi que estávamos no telhado onde nos conhecemos. A lua cheia brilhava no céu e tudo estava em silêncio.
"Isso é real?"
Eu perguntei.
"Em parte."
Ela disse, direta como sempre.
Não consegui dizer nada. Não conseguia nem mesmo entender o que estava acontecendo.
"Foi divertido."
Foi tudo o que ela disse.
"O que foi divertido?"
"Tudo."
"Acha mesmo?"
"Foi o que eu disse, não foi?"
Não resisti e comecei a rir. Nunca havia visto ninguém dar uma resposta daquelas. Ela era realmente uma garota única. Mas notei que ela estava triste.
"Qual o problema?"
A pergunta saiu meio que por instinto.
"Não queria que isso terminasse."
Foi estranho ela perguntar aquilo.
"Terminasse?"
"Assim que essa noite acabar não vamos nos ver nunca mais."
A voz dela estava chorosa.
"Mas... por quê?"
"Porque duas vidas iguais não podem existir num mesmo mundo."
"Duas vidas iguais não podem existir num mesmo mundo"? Não entendia o que aquilo significava. Não fazia sentido nenhum! Que tipo de loucura era aquela?
Ficamos em silêncio por alguns minutos. Pelo minutos mais longos da minha vida.
Ela começou a chorar. Não consegui resistir e também comecei a chorar, pois bem lá no fundo eu sabia exatamente do que ela estava falando. Não queria aceitar, porém sabia que aquele era o fim da linha.
"Por favor, não chore. Quero me lembrar de você sorrindo e não chorando!"
Eu disse enquanto me virava para ela como uma criança.
Ela continuou chorando... Eu não queria aquilo. Não queria de maneira nenhuma. Olhei para a lua e vi que pouco-a-pouco ela desaparecia do céu noturno. O tempo estava acabando.
"Obrigado."
Eu disse.
"O quê?"
Ela perguntou com a voz um pouco menos triste.
"Os dias que passamos juntos foram os melhores da minha vida. E devo tudo isso a você."
Ela parou de chorar e se virou para a lua que naquele momento já estava quase invisível.
"Não queria que acabasse assim."
Aquelas palavras doeram em mim. Senti vontade de me entregar ao desespero e me jogar ao chão, chorando desesperadamente. Mas eu não podia. Ao menos uma vez na minha vida eu tinha de fazer algo direito.
"Nem eu. Mas não tem como mudar isso, tem?"
Foi o eu falei fingindo estar confiante.
Ela balançou a cabeça em sinal de negativa.
"Bem... foi bom enquanto durou.", menti.
"Foi sim."
Mais alguns minutos de silêncio se seguiram. A lua estava quase desaparecendo quando ela disse algo que fez tudo valer a pena.
"Também tenho que te agradecer. Por sua causa encontrei o mundo que procurava."
Os últimos raios de luar estavam chegando até nós. Era minha última chance de dizer algo. Aquela seria nossa última conversa. Eu tinha que dizer algo! Mas... o quê? O que eu poderia dizer? O quê?
...
"Então... é adeus?"
Aquilo foi tudo no que consegui pensar.
"É."
"Por favor, não me esqueça."
"Eu não conseguiria nem que quisesse, porque... você foi meu primeiro amor."
Naquele momento ela sorriu de um modo que jamais tinha feito antes. Ela sorriu com todo o coração. Pela primeira vez ela mostrou o verdadeiro sorriso.
E naquele momento a lua desapareceu.
[close]

Eu realmente estou ficando muito babaca... ou muito velho. Você decide.