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A noite em que eu quase morri

Iniciado por Moon[light], 04/11/2013 às 21:44

Era noite e eu estava morrendo. E suponho que isso explique o título do texto.
Sempre me perguntara como seria morrer. Imaginava algo um pouco mais romântico.
Mas não tem nada de romântico em ser comido vivo por um animal preto. Não é o tipo de experiência que alguém queira ter. Muito menos eu.
Eu sabia que iria morrer ali. Eu sabia que não tinha nada que eu pudesse para mudar isso. Eu nem tinha mais braços. E nem pernas, já que falamos nisso.
Mas não doía, sabe? Isso é o mais estranho. Eu sempre imaginava que ter ser comido vivo doesse mais. Era o que eu pensava. Só que eu estava errado, porque se ainda não ficou claro eu estava sendo comido vivo por um animal preto e estava morrendo porque é isso que pessoas fazem quando estão sendo comidas vivas.
E eu estava irritado. Bem irritado, afinal eu estava morrendo, ali, jogado no chão, virando comida de um animal. Meu corpo ficaria naquele lugar até não ter mais nada a ser comido. E então eu passaria pelo estômago do um animal e acabaria virando um monte de merda perfeito para alimentar alguma planta. E aí alguém ia comer a planta que cresceu com o meu corpo e mais uma vez eu ia virar uma pilha fumegante de merda. Era uma situação de merda.
Era isso que ia acontecer comigo. E eu não pensei nisso depois. Eu sabia disso enquanto eu estava ali, com aquela coisa chafurdando no meu corpo. Eu sabia e não podia fazer nada sobre isso. Quer dizer, eu podia até tentar morder o bicho só que algo me dizia que isso não ia dar muito certo.
Mas aquela situação toda até que era engraçada. E eu até queria rir. É só que àquela altura eu não conseguia nem respirar direito, rir então nem se fala.
E sabe qual a melhor parte daquela situação toda? Não? Não faz nem ideia? Eu te digo então. Eu não queria morrer. Muito pelo contrário, eu gostava de estar vivo. Viver é bom, é divertido, é gostosinho. Eu não tinha nada contra viver. Por mim eu viveria uns cem anos. Mas os planos do universo eram um pouco diferentes dos meus. Ou talvez Deus só quisesse tirar sarro de alguém e achou que eu fosse uma boa opção.
"Um homem está andando na rua, vem um bicho e como ele". É uma piada horrível, do tipo que só um bêbado idiota conseguiria contar sem cair duro no chão logo depois. Se isso era realmente coisa de Deus, então o senso de humor dele é a pior e mais fedida merda do mundo. Que nem eu seria. Só que maior.
"Seria" é a palavra chave. Mas você provavelmente já sabia disso desde que começou a ler, afinal mortos não escrevem e quando escrevem nunca fica bom. Então a pergunta é: como eu sobrevivi?
Eu poderia contar agora mesmo, mas não quero. Ao invés disso contarei uma história completamente relevante sobre o dia em que uma cabrita entrou na minha escola.

História completamente relevante sobre o dia em que uma cabrita invadiu minha escola

Quando eu era criança, eu morava com meus pais no nosso sítio no interior de Pernambuco. Era um lugar tranquilo, não acontecia muita coisa lá. Meus pais plantavam fumo, mandioca, pescavam no açude e cuidavam da própria vida. Eu era o filho caçula de seis irmãos e naquela época era o único que ainda não trabalhava no roçado. Meu pai queria que eu fosse doutor então eu ia para a escola.
Não vou dizer que eu amava a escola, porém, todavia, entretanto eu detestava a ideia de ter que trabalhar com enxada então eu suportava. Eis que um dia uma cabrita invade a escola. Foi uma algazarra de alunos para tudo quanto é lado. Era menina correndo, menino gritando, professores se matando para tentar controlar a situação e nada dava certo. Um ótimo dia.
E essa é a história completamente relevante sobre o dia em que uma cabrita invadiu a minha escola.

De volta à vez em que eu (quase) morri

Muito bem. Esclarecida a importantíssima questão da cabrita, acho que podemos voltar a como eu acabei sendo comido vivo por um animal.
Na verdade, não. Por que, você vê, eu nasci em Pernambuco e estava morrendo em São Paulo. Por isso eu vou contar sobre como eu vim parar aqui e depois voltamos a como eu quase foi comido vivo por um animal.

Como eu acabei indo parar em São Paulo

Quando eu tinha dezesseis anos, acabei me apaixonando por uma mulher do meu bairro. E depois de insistir um pouco, ela acabou se apaixonando por mim também. O problema para ela era que seu marido era um matador. Mas eu não via problema nenhum nisso. Era só ele não descobrir que estava tudo bem.
Por seis meses eu ia visita-la enquanto o marido saía para trabalhar. Eu sei que isso parece piada de programa de humor ruim da televisão, mas é a minha vida, oras. Que eu posso fazer? Nem todo mundo trabalha, se casa e se separa. Alguns de nós têm que ser responsáveis por provar que ainda existe amor num relacionamento antigo. Quer uma função mais nobre? Eu estava salvando o casamento daquela mulher mostrando quanto o marido dela ainda a amava.
Porém um dia uma amiga da mulher nos viu juntos, o que não foi muito bom. Também não foi muito bom ela ter contado para o marido o que estava acontecendo. Convencido de que tinha cumprido minha função de reanimar o amor dos dois e vendo que não me restava muito para fazer em Pernambuco, resolvi ir para São Paulo no primeiro caminhão que aceitou me dar carona.
E essa é a história de como eu acabei indo parar em São Paulo.

Novamente à ocasião em que eu (quase) morri

Agora que esclareci como vim parar em São Paulo não tem mais nada que possa me impedir de dizer como eu sobrevivi depois de ter tido meus braços comidos por aquele bicho.
Mas não vou. Por quê? Acabei de lembrar que não falei de como se sucedeu minha viagem até São Paulo. E isso é de extrema importância para a compreensão de como eu acabei (quase) morrendo. Vamos a isso.

Minha viagem até São Paulo

Sucede-se que o caminhão que eu peguei só ia até a Bahia. E para os que não sabem, a Bahia fica um pouco longe de São Paulo. Eu poderia ter pegado um ônibus para chegar lá, ou até mesmo um avião. Só que eu não tinha dinheiro para nenhum dos dois. Na verdade, eu não dinheiro nem para comer.
O que eu fiz? Ora. A única coisa que poderia fazer. Eu pedi ajuda aos turistas. Porque turistas sempre ajudam quem precisa, mesmo que eles não saibam disso. E, aliás, é melhor que não saibam porque quando sabem eles costumam tentar chamar a polícia e a polícia não gosta de pessoas que pedem sinceramente um pequena ajudinha para os outros. Depois de uns três dias já tinha conseguido a cooperação de doze turistas. Tinha dinheiro suficiente para chegar a São Paulo.
Só que acontece que naquela região da Bahia já havia um grupo de crianças que pediam ajuda para os turistas. Eram muito boa gente eles, e muito eloquentes com navalha. Quando eles descobriram que tinha outra pessoa pegando ajuda no território deles, os meninos ficaram muito curiosos e decidiram que queriam conversar comigo. Mas infelizmente eu não ia ter tempo para falar com todas aquelas facas então eu infelizmente tive que sair sem conversar com eles.
Comprei uma passagem de ônibus e daí eu fui para São Paulo.
E essa é a história da minha viagem até São Paulo.

Outra vez à situação em que eu (quase) morri

Pois então. Querem mesmo saber como foi que eu saí vivo dessa? Mas antes vamos a uma extremamente longa e necessária descrição do animal que estava me comendo.

O animal que estava me comendo

Era como um cachorro, porém seu tamanho era hercúleo e seus pelos de um negro diáfano brilhavam hipnoticamente sob a luz levemente cálida, porém pálida e muito esquálida, mas ainda assim válida da lua. Suas patas poderosas e possantes pululavam pelos prados e planícies. Sua cauda caudalosa e curvada crescia num crescente cremoso. Seus olhos vermelhos viam verdadeiramente a vida que vazava do meu ventre. Seus dentes carentes furavam valentes a mim. Toda a criatura era um terrível terror horrendo horroroso e cruel. Erigido qual uma nobre estátua de ébano ele devorava minhas entranhas nobremente, sorvendo com ânsia o sangue de meu corpo. Como era belo! Como mortal! Nada havia que o igualasse! Nobre fera que portava o estandarte nobre da nação brasileira! Como era viril! Varão inigualável das terras do Brasil!
Era assim o animal que estava me comendo.

Ainda uma vez mais à circunstância em que (quase) morri

Tendo ilustrado todos esses pontos, creio que seja bom o momento para contar como me salvei da terrível situação em que me encontrava. Ora, porém vejo que isso faz muito tempo, de modo que creio útil uma recapitulação.

Recapitulação

Saí de Pernambuco após ajudar um matador nos problemas de relacionamento com sua esposa. Fui até a Bahia e com a ajuda de turistas cheguei a São Paulo. E em São Paulo encontrei a criatura que estava a me comer.
Eis a recapitulação.

Pela última vez a ocorrência em que (quase) morri

Exposto e recapitulado tudo que me sucedeu é hora de finalmente contar como sobrevivi à minha terrível desventura.
Já sem braços nem pernas, não havia muito que eu pudesse fazer de modo que a criatura me comeu por completo e eu morri.
É isso.

Eu realmente estou ficando muito babaca... ou muito velho. Você decide.