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El Diablo - Completo

Iniciado por Van, 23/05/2014 às 00:14

23/05/2014 às 00:14 Última edição: 10/12/2014 às 22:54 por Van
E aí, gente, como estão?
Bom, esse conto nasceu lá pra... 2008, acho, talvez 2009. Originalmente "Ás de Espadas" era uma crônica do Bruno Hanzo, um grande amigo e staffer lá da DevMakers (alguém lembra? não era muito movimentada, acho). Lá na Dev a gente postava muitos textos assim e na época eu fiquei maravilhado com a escrita dele, tanto que redigi uma crônica bem parecida. Ao longo dos anos fui remodelando e tornando-a mais original, ao ponto que hoje em dia ela é totalmente diferente do Ás de Espadas que o Hanzo escreveu naquele fórum, naquela época.

Esses dois textos continuam em outros contos já escritos que eu pretendo postar aqui. É uma história, basicamente, que conta a jornada introspectiva de um pistoleiro aposentado no velho oeste americano.

Outra ideia que eu tenho é de transformar isso num jogo no futuro, mas quem sabe, né? Bom, sem mais delongas, aqui vai o texto (:



Ás de Espadas
ou
"Como Javier derrotou o xerife Bill e, mais tarde, um jogo de pôquer"

Spoiler


   As memórias voltavam enquanto Javier deixava o seis de copas escorregar pra dentro da manga. Já fizera o truque centenas de vezes, talvez mais vezes do que sacara um revólver. Mais vezes do que seria capaz de contar, definitivamente.

   Quando puxava o ás de espadas para junto do ás de ouros, a mente já viajava para anos atrás. Aquele homem do outro lado da mesa era horrivelmente parecido com Bill, um falecido xerife que havia complicado um bocado sua vida.

   "Acabou, El Diablo!" a voz de Bill, o xerife, ecoava entre seus ouvidos, seguida de um bangue seco. À direita, Pablo caía, os olhos bem abertos, a boca nem tanto e a testa perfurada.

   Javier, que àquela altura se entendia por El Diablo, tentou retaliar, esquecendo-se, por um momento, que as doze balas dos revólveres estavam caídas pelo mato ou alojadas nos miolos de dois homens da lei.

   Bangue. Carlos caiu à sua esquerda, o olho direito atingido pela bala do xerife, o esquerdo já não lá desde o incidente com o lobo.

   Foi, então, que a expressão de El Diablo se desfez. A morte de seus dois hermanos o deixou desamparado, talvez mais do que quando encontrou sua mulher, Julia, enforcada.

   — Conte suas balas, xerife — a frase escapou de sua boca — doze tiros.

   — Calado, bandito — Bill reforçou a última palavra com escárnio e puxou o gatilho. O disparo falhou e ele tentou novamente. Quanto mais falhava, mais a boca abria em desespero.

   Doze tiros. Seis em cada revólver. Sem tempo para recarregar.

   El Diablo soltou os dois revólveres no chão e andou em direção ao desesperado xerife. Bill levou as mãos trêmulas ao cinto e já tirava uma nova bala para o revólver quando viu o rosto de El Diablo contra o seu. Nunca o encarar de tão perto e nunca notara a mescla de feiura, cicatrizes e traços latinos.

   Bill chegou a puxar o cão da arma antes de morrer. A bala posicionada estava posicionada e o gatilho pedia para ser puxado quando viu as mãos de seu inimigo enterrando uma faca entre suas clavículas.

   El Diablo queria ter algo poético para dizer ao xerife enquanto ele pudesse entender algo, mas nada lhe veio à mente. Nada que traduzisse a mistura de alívio, trabalho terminado e cólera que sentira ao matar o homem que complicara tanto sua vida.

   O ás de espadas trespassava o ás de copas. Javier se sentiu tolo a notar certa poesia na situação e afastou o pensamento.

   — Mesa — disse o homem ao seu lado, segurando as cartas perto do peito. O saloon fedia e ninguém apostava muito, mas era o lugar que ele conseguira.

   — All in — disse, empurrando as fichas para a mesa. Três homens jogaram as cartas na mesa e o americano, à sua frente, ficou no jogo. O sujeito albino cobria a cabeça quase careca com um chapéu escuro, mas as cicatrizes em seu rosto eram visíveis. Jogou-lhe um olhar desconfiado enquanto empurrava suas próprias fichas.

   — Desça suas cartas, mexicano — disse numa voz grave.

   E Javier desceu as cartas. Na mesa, o ás de paus e o ás de copas formaram a quadra e, no momento que percebeu, o homem rosado desceu as próprias cartas num soco. O barulho fez o pianista parar e observar junto com o resto do saloon.

   Javier, que sequer notara o piano tocando, encarou o americano. O homem rosado mantinha a expressão de um urso ao descobrir que alguém atacara seus filhotes, mas sem qualquer bem-estar mental.

   Com a calma pela qual era conhecido, juntou as fichas, coletou o dinheiro e se retirou do saloon. A última coisa que queria era ter problemas com alguém que se parecia com Bill. Afastou a lembrança, junto com muitas outras, enquanto apeava o cavalo em direção ao leste.

   Pelo jeito ainda precisaria percorrer outro pedaço do deserto até deixar o oeste para trás. O oeste, suas memórias e o El Diablo que compartilhava a existência com Javier. Que assim fosse, então.

   E seguiu o poente.

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Despierta, cabrón
ou
"Pela primeira vez Javier se afoga na correnteza de seus pensamentos"

Spoiler


   Lendas parecem um tanto diferente quando são escritas sobre você mesmo.
Ser uma lenda é mais ou menos como ter um alter ego e, para Javier Vasquez, ser conhecido como "o pior bandido do Oeste" não lhe interessava mais. Não mais lhe serviam os boatos de "El Diablo, aquele que desfigura suas vítimas".

   Javier subia e descia na sela enquanto galopava pelo deserto. Deixava pra trás uma nuvem de poeira e meia dúzia de homens da lei irritados.

   Virou o corpo, sacando um dos revólveres. Um. Dois. Três. El Diablo, o pior bandido do oeste, agora fugia de três homens da lei.

   Um. Dois. Três. E Javier descansou na sela.

   A poeira caía, muito mais lentamente que os seis cadáveres. Não deu meia-volta – não lhe interessavam os espólios. Lhe interessava o sol nascente, o Leste. O majestoso Sol nascente que lhe apontava a direção da liberdade.

   Javier acreditava que, se quisesse abandonar a lenda que se tornara, precisaria se afastar do Oeste. Precisava chegar ao mar e talvez até atravessá-lo. Conquistaria o anonimato.

   E acreditou nisso até o último de seus dias, quando foi baleado antes mesmo de avisar o oceano. Jamais vira a bala que o matou e, ironicamente, o desfigurou.

   Javier não gostava do deserto - em sua imensidão monótona, só lhe restava pensar. Infelizmente, estar a sós com os próprios pensamentos não era exatamente seu passatempo preferido.

   Antes do meio-dia já se afogava em memórias. O massacre de Bashville, o tiroteio na loja de Clint, o sequestro da meretriz. Metade das histórias já havia se perdido nos fios grisalhos de seu bigode e no cano do revólver. Da outra metade preferia sequer lembrar.

   Já era meio dia quando parou e nem duas da tarde quando voltou a galopar. Haveria água, se Deus quisesse. Haveria cidades, se a América quisesse. Embora, Javier precisou admitir, nenhum dos dois aprovavam sua existência.

   Quase se divertindo com esse pensamento, olhou o horizonte. Apostava uma corrida com a sombra projetada pelo Sol poente e esperava vencer.

   Antes de se afogar nas memórias novamente, sentiu saudades. Sentiu saudades de aprender a atirar com Clint. De fugir das cidades com seus comparsas, sempre escapando por um triz. Do México, onde todos falavam sua língua.

   – Despierta, cabrón – falou pra si mesmo. E galopou.

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Três Dias
ou
"O Massacre da cidade de Woodsville pelas mãos de El Diablo e a primeira introspecção de Javier Vasquez"

Spoiler


              Três dias de cavalgada foi o tempo que Javier levou. Em três dias cruzou o que viria ser a fronteira do Texas com a Louisiana. Também levou três dias para assassinar um marechal e três dias para descobrir algo sobre si mesmo.

                Quando saiu do saloon com os bolsos pesados de dinheiro e avançou pelo deserto, Javier acreditava que encararia mais uma viagem ordinária. Esbarrando com caravanas aqui, viajantes ali, comerciantes falastrões acolá. Não demorou para que a verdade o atingisse como um oficial estapeia um cadete desobediente.

                O ano era 1916. Os Estados Unidos já haviam tomado todo o território dos índios e mais uma grande parte do território mexicano. De uma ponta do continente à outra, tudo estava sendo urbanizado e endireitado de acordo com as normas de conduta estadunidenses.

                ­– "Americanos" – Javier falou para o vento, cuspindo no chão – Americanos somos nós que estávamos aqui, desgraçados.

                Brigar com a realidade foi, desde o início dos tempos, um hobbie de Javier. Se irritar com problemas que não foram causados por ele ou tampouco o afetam, lamentar e reclamar. Isso sempre ocupou uma parte notável do seu dia.

                Ali, viajando por um deserto de terra seca e dura demais, montando um cavalo com sede e com fome, esperando desesperadamente que seu mapa estivesse certo, não havia muita coisa que Javier pudesse fazer a não ser refletir. E, consequentemente, reclamar.

                Mas aquela viagem de três dias foi particularmente diferente. Javier descobriu realmente a diferença entre ele e El Diablo e também suas semelhanças. Descobriu algo novo sobre sua vida ao mesmo tempo que arruinou outras dezenas. E tudo começou quando a imagem do horizonte, pontuada de dunas e cactos, se modificou e lhe mostrou uma cidade.

                Sim, era definitivamente uma cidade. À noite, luzes acesas, durante o dia, movimento. Começou a esbarrar, finalmente, com algumas poucas e raras caravanas de viajantes.

                O primeiro dia foi a mais pura ansiedade. Do nascer ao pôr do sol Javier cavalgou e, quando a noite caiu, a ansiedade era tanta que este sequer parou. Cavalgou a noite inteira, chegando à cidade ao amanhecer.

                "Woodsville" era o nome da cidade, como Javier foi descobrir mais tarde. Quando acordou, no meio da tarde, o segundo dia já se esvaíra por completo e ainda assim fora o mais destrutivo.

                Foi uma sequência de portas. Primeiro a do quarto, depois a do corredor, e finalmente a do saloon. A última o levou à rua ensolarada, onde se deparou com um amontado de pessoas, provavelmente a cidade inteira, compondo uma multidão em forma de semicírculo. O centro era ele próprio – não Javier Vasquez, o viajante, mas sim El Diablo, o pior bandido do oeste.

                Eles gritavam. Protestavam. Vários seguravam papéis amassados que exibiam caricaturas de seu rosto. A confusão seguiu por alguns minutos até que o delegado, exibindo a reluzente estrela dourada no peito, abriu caminho e se postou em frente ao mexicano cercado.

                – Hoje é meu dia de sorte, não é? – falou entre risos debochados.

                Javier já não estava mais lá.

                Quando El Diablo levantou os olhos sombreados pelo chapéu e encarou o delegado, este sentiu medo. Medo genuíno, pavor. Sua vontade era correr dali e tirar o resto do dia de folga. Cada marca, cada cicatriz e cada traço daquela pele morena parecia ameaça-lo – mas ficou. Ficou como deveria ficar em frente à população.

                ­– Eu devo prendê-lo? – o delegado gritou ao povo. El Diablo o viu como um homem num picadeiro de um circo, chamando atenção do público.

                Público este que respondeu com exclamações e urros. Um dos homens soltou uma vaia e proferiu algo como "Deixem o rapaz ir embora" em tom descrente, mas sua frase foi interrompida pelo punho de um homem alto e forte, não muito esperto e nem muito burro.

                O homem-alto-e-forte-mais-ou-menos-esperto havia acordado aquela manhã pronto para trabalhar como qualquer dia comum. Esperava chegar em casa à noite, cansado, aproveitar a companhia de sua mulher e voltar a dormir. Quando viu a oportunidade de quebrar o vai-e-vem rotineiro, sequer considerou a possibilidade daquele homem não ser, de fato, o pior bandido do oeste.

                Felizmente, se fosse só um pouco mais sagaz, o pensamento gritante de "E se não for ele?" teria invadido sua mente e estragado seu dia.

                – Vamos fazer do jeito fácil, "El Diablo" – e sacou as algemas do cinto – me dê seus pulsos.

                E El Diablo ofereceu os pulsos, juntos, derrotados.

                – Eu sabia que conseguiria lidar com você. As história são realmente exageradas.

                Suposição, apenas. O delegado Theodore T. Basel, filho de Robert Basel com Eloise Thrust, irmão mais novo de dois garotos, um falecido e outro desaparecido, quarenta e sete anos, vinte e dois desses tirados para servir ao exército americano em defesa de seu povo, alto, loiro, pele clara e olhos verdes, sofrendo de escoliose leve, extremamente preciso com a mira de um rifle, nem tanto com um revólver, carregando dons artísticos reprimidos e, acima de tudo, satisfeito e orgulhos de si mesmo jamais terminou de falar a palavra "exageradas".

                Já quando começava a primeira letra El Diablo separou os punhos. Chegou no G ainda sem notar o mexicano sacando os dois revólveres do cinturão. Já no R se deu conta que algo estava errado e, no D, percebeu que sua vida havia acabado. Ali mesmo, naquele segundo, encarando os dois canos dos revólveres de El Diablo.

                Os gatilhos foram puxados e as balas deixaram os tambores exatamente no mesmo momento. Lado a lado as balas estouraram os olhos do delegado Theodore, transformando-os numa massa cinzenta, e seguiram pela cabeça, rasgando seus miolos e quebrando, em pequenos pedaços, duas saídas no crânio. Ainda ali as balas mantiveram suas trajetórias paralelas e se perderam no muro da casa atrás do homem, agora morto.

                Assoprou a ponta de um dos revólveres fumegantes. Depois a outra. Então abaixou-os um pouco, puxando os cães, pronto para atirar novamente.

                – Mais alguém tem um problema? – o sotaque saiu arrastado e forte. Era sempre assim, El Diablo tinha dificuldade em falar inglês, mesmo que Javier o dominasse perfeitamente.

                Aparentemente várias pessoas tinham problemas com ele, porque no próximo segundo a multidão berrou e avançou no homem, todos prontos para rasgar sua pele e espanca-lo até a morte.

                O primeiro que se aproximou, um rapaz novo, não mais que vinte anos, trazia a enxada de seu pai nas mãos e havia acabado de sair da pausa de seu trabalho na horta. O olhar era raivoso e, ainda assim, sonhador. Um garoto que sonhava em acabar com toda a injustiça do mundo e odiava mais que tudo El Diablo, o desfigurador.

                Tornou-se um cadáver no próximo bangue, caindo no chão.

                Depois, com a multidão, chegou uma mulher robusta, que sofrera na mão das outras mulheres, na época garotas, pela sua aparência. "Não vão nem te pagar pra ser meretriz", era o que as cruéis meninas diziam, não mais do que vinte anos atrás. Tivera um primo assassinado pela gangue de El Diablo algum momento no passado.

                Tornou-se cadáver no próximo bangue.

                Um homem de idade, um grupo de crianças, mulheres, jovens, famílias. Civis inocentes indo à batalha. Não houve um sequer que ficasse de pé. Alguns precisavam de dois tiros para morrer – não porque El Diablo errasse, isso nunca aconteceu (embora Javier não fosse tão preciso), mas sim porque, na pressa de mudar a direção das mãos, não havia tempo para mirar no rosto.

                El Diablo matava os que se aproximavam, sempre destruindo suas faces. Quando eram muitos, atirava em suas pernas e se afastava, recarregando os revólveres e executando-os com tiros no rosto logo depois de uma posição melhor. Seguiu, esquivando-se dos socos, enxadas, pedras e vassouras que eram usados para lhe ferir.

                Impecável. Eficaz. Perfeito. Nunca errava um tiro e nunca iria errar. Não sentia misericórdia ou pena, não repensava suas atitudes: determinava seu alvo e o seguia até o fim.

                Ainda havia sete tiros nos tambores quando o último cidadão morreu, caindo no chão junto com os últimos raios de sol. Era uma garota de não mais que quinze anos, impelida pelos irmãos a deixar de ser covarde e partir para a luta, aprender a se virar. Infelizmente foi assassinada na primeira vez que arriscou fazer o que queria.

                Javier abaixou os revólveres fumegantes. Não havia sido nem de longe a batalha mais frenética de sua vida, nem a vez em que tivera que recarregar com mais ferocidade e, ainda assim, era um regresso.

                Anoitecia, finalmente. Dormiu na casa de um dos falecidos, bebendo de sua água, comendo de sua comida. Recarregou as armas, substituiu as balas dos cinturões e no terceiro dia já encarava o deserto novamente. A viagem que vinha seria definitivamente mais difícil, agora que seu inimigo estava mais forte.

                No terceiro dia, cavalgando solitário pelo deserto, Javier compreendeu.

                Seu inimigo não era o Deus das igrejas. Não era a América. Não eram os pobres xerifes enterrados, mortos e desfigurados por ele.

                Seu inimigo era El Diablo, o desfigurador. Aquele alter ego com o qual, por muito tempo, compartilhou a identidade e hoje não compartilha nada além do corpo, daquela carcaça de carne que usava para se locomover no plano material.

                Não havia sido Javier a assassinar a população inteira de Woodsville, e sim El Diablo.

                Se tornaram, finalmente, pessoas totalmente diferentes, presos um ao outro por estarem na mesma carcaça. E era nesses momentos de solidão com os próprios pensamentos, nas cavalgadas longas e monótonas sob o sol escaldante, que a verdadeira batalha começava.

                Era nas horas longas se arrastando pelo deserto que Javier realmente encarava aquele que precisava encarar: El Diablo. O pior bandido do oeste.

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Mortos
ou
"Javier e El Diablo entram em conflito ao se deparar com memórias mais sólidas do que imaginaram, finalmente perturbados pelas atrocidades que cometeram no passado."

Spoiler


          Woodsville ficava para trás, junto com um sol poente vermelho demais. O grande sol pintava de vermelho a terra rachada, a areia rala e o céu inocente. Dizem que o mar reflete o azul do céu, mas para Javier talvez o céu estivesse refletindo o sangue escorrido da terra.

          As sete balas no tambor ainda estavam lá. As dúzias de balas alojadas nos rostos das vítimas também estavam lá.

          Os mais supersticiosos evitam os lugares onde pessoas morreram, mas aquilo era difícil para Javier. Seu alter ego já havia massacrado tantas cidades, estuprado tantas mulheres, destruído tantas famílias atrás de dólares e pólvora que era difícil encontrar um lugar onde não quisessem sua cabeça.

          Dólares e pólvora, Javier pensou. No mesmo instante El Diablo adicionou à lista "E uísque".

          Revoltante, talvez. Pela primeira vez na vida, Javier se sentia invadido. Quem era aquele homem? Quem era aquele bandido, assassino e desfigurador que usava seu corpo para satisfazer sua sede de sangue, ouro e pólvora?

          "E uísque!"

          Já não conseguia ver semelhança. Já não conseguia entender suas intenções, suas origens, suas vontades e objetivos. Não havia ponto. Quem era aquele assassino impiedoso, incapaz de falar inglês e, de longe, o homem com os gatilhos mais rápidos de todos o oeste?

          Um corpo já era pouco demais. Uma mente, muito menos. E isso se tornou mais importante ainda quando os mortos procuravam El Diablo e encontravam Javier.

          O xerife Bill. Madame Putney, do bordel. Oscar qual-o-nome-dele, lá do México. Melinda. Arthur. Eleonora. Elizabeth. Delegado Washington. Delegado Littleman. Xerife Carl Johnson. O Lobo. Os índios, todos aqueles índios. As mulheres, as crianças, os idosos e os homens. Ah, os homens que empunhavam as armas, talvez desafios bem maiores.

          Seus nomes vinham à mente de Javier. Seus choros podiam ser ouvidos e já abafavam o galope do cavalo, que corria com toda a força sobre a terra castigada pela erosão e pelo sol. Os últimos raios de sol já sumiam e o deserto já esfriava, mas Javier não notava nada disso.

          Primeiro vieram os nomes, depois as lágrimas e choros. Podia ouvir cada um deles dentro de sua cabeça, sentir sua presença. Por último, viu seus rostos. Todos deformados, todos marcados. El Diablo, o pior bandido do oeste, conhecido por destruir os rostos de suas vítimas. E lá estavam eles, todos, olhando pra ele com o que sobrara das faces.

          Seu cavalo cansava. Galopava por muito tempo, agora, e no auge de seu cansaço, tropeçava. Caía de lado, respirando pesado, e lançava Javier para longe.

          O pobre homem se levantou, sentindo os fios grisalhos do bigode pesarem mais do que nunca. Levou as mãos à cabeça, o chapéu já não estava mais lá. Atormentado. Eram muitas pessoas, muitas mortes, muita melancolia.

          Levou a mão ao coldre. Sacou o revólver direito carregado com sete balas. Seu saque era desengonçado, lento, muito diferente do de El Diablo. Com os joelhos rasgados na terra, apontou a arma para si mesmo. Já não sabia se apontava para o pescoço, garganta ou cabeça, atiraria quantas vezes fosse necessário – desde que aquilo tudo parasse.

          Quando reuniu as forças para puxar o gatilho, foi impedido. Algo segurou-lhe o dedo. Algo o impediu de abandonar a vida.

          E Javier sentiu aquela presença. Violenta, aterradora, impiedosa, primitiva. Infalível. Ouviu, sentiu, e fraquejou diante de El Diablo.

          – Despierta, cabrón.

          El Diablo guardou a arma com as sete balas no tambor. Ordenou às memórias que cessassem. Ordenou aos mortos que morressem.

          Caminhou até seu cavalo, que já estava de pé, e olhou para o leste. Nos olhos apertados de El Diablo quase surgia esperança.

          – Deixe que os mortos enterrem os mortos, Javier – E galopou noite adentro.

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O Caçador

Spoiler
O Caçador
                Javier parou de contar os dias. Parou de contar os poentes nas suas costas, os homens da lei que ocasionalmente apareciam (e viravam cadáveres em seguida) e os tropeços de seu cavalo. Parou de contar as balas do revólver, as colinas que subia e as curvas do deserto.

                Sentia falta do chapéu. Todas as manhãs, quando começava a galopar, o sol nascente o cegava, mas El Diablo nunca fechava os olhos. Os mantinha semicerrados, atentos a um possível cavaleiro armado de rifle e estrela surgindo no horizonte. 

                Vez ou outra encontrava uma cidade. Repunha suas balas, suas provisões, ganhava um ou outro jogo de pôquer, mas em todas elas era cercado por caçadores de recompensa. Homens fortes de cara rosada, dentes cerrados e punhos fechados, todos muito parecidos entre si, nunca desistiam de tentar surpreendê-lo com uma corda e um revólver.

                Viravam cadáveres em seguida.

                As visões pararam. Quando os mortos ameaçavam assombrar Javier de novo, El Diablo os espantava. Gritava e xingava enquanto cruzava o deserto cada vez menos desértico.

                Há quem diga que foram anos, mas é fato que quando Javier chegou ao fim de sua jornada seus cabelos e bigode revelavam mais fios prateados do que antes. A vista também estava cansada, o saque estava mais lento e o galope mais exaustivo. Mas ainda assim, Javier Vasquez persistiu.

                E morreu antes de ver o mar.

                Seu cavalo morreu primeiro, vítima inocente de três tiros bem mirados. Foi num fim de tarde de sol especialmente escaldante que castigava a terra seca do deserto. O sol já estava se ponto, pintando a areia de vermelho, mas ainda assim o calor torturava Javier.

                Um dos homens era filho de uma índia Cherokee estuprada por um americano. Outros dois eram ingleses e o quarto era mexicano. O último, o mais velho deles, era um americano mais velho que Javier e mais novo que El Diablo. Caçava o "pior bandido do Oeste" há muito tempo e não era a primeira vez que atirava em um.

                Os cinco, armados até os dentes, já seguiam Javier desde Woodsville. Acompanhavam o rasto de xerifes mortos que o homem deixava pelo deserto, tentando fugir do Oeste. E talvez até conseguisse, se o mar não ficasse tão longe.

                Os ingleses foram os primeiros. Saíram de trás do rochedo a galope, seus cavalos escorregando sobre a poeira e tufos de grama seca que achavam caminho entre as rachaduras da terra do deserto. Cada um trazia um rifle, um deles atirou duas vezes.

                El Diablo caiu do cavalo, que já havia virado cadáver. Quando se levantou já empunhava os dois revólveres e destruía os rostos dos dois homens.

                Mais dois surgiam e Javier sequer soube de onde. Levou dois tiros antes de mata-los também, um que o atingiu na perna, derrubando-o, e outro no ombro esquerdo. Largou um do revólver, segurando o que tinha com a mão boa.

                Sobrou o silêncio. A poeira baixava, cobrindo os corpos. Quatro homens e um cavalo, bem menos do que havia contado da última vez que fora atacado.

                Permaneceu parado. Talvez houvesse alguém, e se esse alguém surgisse, El Diablo reagiria. O caçador americano, no entanto, sabia disso. Ambos ficaram calados, respirando devagar, num duelo de silêncio onde até mesmo o batimento do coração poderia denunciar sua presença.

                Passou uma hora até Javier assumir o controle. Espantou El Diablo, que ainda queria ficar alerta, e relaxou. Sua perna queimava, a poeira do deserto sujava o ferimento. Arrancou a jaqueta e amarrou-a na coxa, tentando estancar o sangramento de uma hora de idade.

                Não viu quando o Caçador americano saiu de trás do rochedo. El Diablo teria visto.

                Não viu quando o revólver foi apontado para ele. O Caçador já sabia que seria uma missão suicida. Sabia que seus companheiros morreriam. Não eram os primeiros a se sacrificar e não seriam os últimos;

                Javier não viu quando o Caçador puxou o revólver.

                Só se deu conta quando a bala quebrou seu crânio e avançou pela sua cabeça, rasgando seus tecidos e irrompendo violentamente pelo que outrora havia sido um nariz.

                Bangue. E virou cadáver em seguida.
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Bom, é isso daí. Peço que deem suas opiniões sinceras, qualquer crítica é bem vinda e será anotada.
Finalmente consegui terminar essa história. Pra ser sincero foi bem doído escrever o último capítulo, difícil matar uma personagem que tem vida própria. Mas bem, precisava acabar.

Obrigado por ler!
Blog com meus textos, poemas e inspirações.
Basicamente onde eu devolvo pra vida todos os tapas que ela me dá.


28/05/2014 às 12:23 #1 Última edição: 28/05/2014 às 12:25 por RuanCarlsyo
Ficou bem foda.
Não tem muita coisa pra criticar porque os textos são bem curtos, mas até mais emocionantes do que eu esperaria para um uso de terceira pessoa (não curto muito :P).
A separação de nomes diferentes para personalidades diferentes me lembrou bastante Breaking Bad, que é excelente, e também tem um espírito bastante faroeste.
Agora, isso é meio off topic, mas dei uma visitada no seu blog, e também gostei do outro texto do Javier que você tem lá. E também tem o texto do cartomante, que, de novo, ficou bem foda também.

E se você curte textos dessa temática, dá uma lida no conto do Moon[light] (acho que se escreve assim), lá na seção do fórum da Disputa Épica, no Colosseum. Sério, o cara escreve tão bem que parece que dá uma aula.

Ah, e isso é mais pessoal, porém prefiro mais os títulos em negrito. Acho que as versões alternativas (Como Javier derrotou o xerife Bill, Pela primeira vez Javier se afoga na correnteza de seus pensamentos) são clássicas e próximas desse tipo de história de faroeste, porém meio antiquadas. Pensei que fosse ler um texto meio ruim quando vi isso, e você me surpreendeu.

Opa, @RuanCarlsyo! Obrigado, cara (:
Bom, por tópicos:
Também passou pela minha cabeça usar a primeira pessoa, já que é uma história sobre o homem aprendendo sobre ele mesmo, não lembro exatamente o que me fez escolher.
Agora que você falou... realmente me lembra um pouco a questão Walther White/Heisemberg... pior que eu nem tinha me dado conta!

Sobre o blog, obrigado mesmo! Então, lá eu já postei a terceira parte da história, vou aproveitar e trazer pra cá. Fico  feliz que tenha gostado de lá, muito obrigado mesmo pelos elogios.

Sobre os textos, sim, o texto "real" é o que está em negrito. Essas "descrições" são uma brincadeira que já vi por aí e gosto de colocar haha

Obrigado, até mais (:
Blog com meus textos, poemas e inspirações.
Basicamente onde eu devolvo pra vida todos os tapas que ela me dá.


Atualizado: capítulos três e quatro adicionados.
Espero que gostem! (:
Blog com meus textos, poemas e inspirações.
Basicamente onde eu devolvo pra vida todos os tapas que ela me dá.


Atualizado mais uma vez, todos os capítulos adicionados. Espero que gostem.
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Basicamente onde eu devolvo pra vida todos os tapas que ela me dá.