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Manual de persistência da memória

Iniciado por Eliel Micmás, 12/11/2014 às 22:46



Ficção científica | Pós-apocalíptico | Fantasia | Por DanTR

Há anos que a ideia para esta história esteve depositada na minha cabeça; mas, sabe como é, nem sempre algo quer sair de vez do seu cérebro. Tentei algumas vezes, mas não coloquei um parágrafo de texto em todo este tempo. Finalmente consegui.

Esta série é pós-apocalíptica, mas não planejo deixá-la tão familiar como algumas do gênero - estou construindo um mundozinho próprio para este livro.

Sinta-se livre para comentar e criticar.

(Não gosto de sinopses. O texto vem no texto :3)

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 Prólogo (12/11/2014)

Prólogo
#1 - Em situações adversas, entreviste-se.


O que se podia ouvir era um gotejar irritante. O ruído, chocando-se contra as paredes enferrujadas e ecoando fortemente, tirou inúmeras vezes o monopólio do silêncio no escuro laboratório. Computadores finos e cobertos por uma carcaça amarelada cobriam todas as paredes, oferecendo ao local sua única fonte de luz.

Uma das máquinas da sala quebrou não só o silêncio, mas algum sistema operacional desconhecido.

Certo emaranhado de cabos entrou em curto-circuito, cercando de eletricidade  uma cápsula no centro do laboratório. Os poucos ratos trafegando pelo chão úmido e sujo tiveram como última visão um clarão azul. Dois olhos de mesma cor abriram ao som do baque dos roedores contra as muralhas interiores do cômodo.

Ela abriu suas mãos, sentindo certa náusea de teor mais psicológico do que estomacal. Aquele lugar era capaz de dar claustrofobia aos mais fortes. De fora do vidro, podia-se ouvir as mãos da mulher batendo incessantemente contra a barreira transparente.

Sem se quebrar, o vidro deslizou para dentro de um sulco no interior das placas que compunham a cápsula.

Estava finalmente livre.


Ao meu ver, existe um manual dentro de cada cérebro humano, criado para as mais diferentes ocasiões. Dentro da versão utilizada por esta que acaba de sair da cápsula, se pudéssemos ver suas páginas, localizariamos a seguinte instrução:

Em situações adversas, entreviste-se.

Não consigo resgatar na minha mente uma situação específica que escreveu tal ordem em minha memória. Provavelmente foi um resultado de inúmeras dúvidas acumuladas com os anos, as quais eu consegui responder escrutinando os confins do meu eu. Não que existisse importância para isto naquele momento; a prioridade era localizar-me no tempo, no espaço e na qualidade.

A escuridão de onde havia acordado me amedrontou. Pairava um ar nauseante, mistura horripilenda de decomposição e química. A roupa que deveria me cobrir não existia; só haviam plugues, tiras metálicas e algum líquido viscoso e incolor. Estava particularmente nervosa no momento, e não demorou para que eu me livrasse dos estranhos cabos conectados ao meu corpo. Logo daria de cara no chão, me levantando quase dois minutos depois.

Quando fiquei de pé, a entrevista já havia começado. "Onde estou?" não era uma pergunta que eu poderia responder totalmente. Minha civilização, segundo minhas lembranças, não havia ainda tido interesse em quebrar a fronteira final do espaço, e estava mais ocupada lidando com problemas do meu próprio planeta. Fora de Ypesti então não poderia estar.

Essa afirmação minha, naquele momento, foi prontamente analisada pela outra pergunta: "Que dia é hoje?"

O frio perfurou meu corpo como uma faca, dando-me o impulso necessário para procurar algo que me cobrisse. Andei sem ânimo até uma bancada lotada de computadores. Havia uma bolsa retangular entre dois monitores, e não hesitei em abrí-la. Quem olhasse para mim naquele momento veria algo similar a uma criança  que acabara de receber um presente.

Foi o último sorriso que tive naquele dia.


Enquanto vasculhava os conteúdos da bolsa, mais perguntas brotavam dentro dela. As mais básicas, testemunhas de sua integridade psicológica, foram prontamente respondidas.

Nome? Heloisne Admanta-Sertevta. Idade? Espera-se que seja 23. As questões menos pertinentes no momento podem ser ignoradas.

A luz branca das letras nos monitores imprimia de códigos e comandos trechos de sua pele negra. Próxima às telas,  já era possível traçar as linhas de sua silhueta; parecia não ter genética e hábitos passados que a levassem a atingir os extremos da curva ou da reta, mantendo-se em um ponto de equilíbrio. Era notável porém a força maior de suas pernas em relação a seus braços – sempre fora, desde a menor idade, propensa a correr, a andar ou a chutar.

Logo cobriu-se com as roupas que havia encontrado: uma calça preta, uma camisa não muito bem conservada e um sobretudo verde-claro levemente sujo. Um par de botas revestiu por fim seus pés descalços. Seja lá onde ela estivesse, pelo menos o frio não a incomodaria novamente. Chips acoplados aos tecidos das vestimentas logo sentiram o toque

Uma data surgiu na tela à sua direita; não demorou para que recebesse um choque expressado pelo rápido movemento de seus olhos, coloridos no momento com um tom similar ao da grama prestes a amarelar.

3º dia do quarto ciclo de 9820. Sua última lembrança era de 9740.

Seu olhar esfriou por alguns segundos. O grito que se seguiu quase acordou os ratos defuntos.

Uma eternidade fortemente amassada passou até que a respiração de Heloisne retornasse à sua cadência normal. Sua náusea aumentava com a mesma velocidade  de sua aleatória e inesperada fome; a sala cúbica parecia não apresentar uma porta. Já havia certa fraqueza nas duas pernas que pisaram em todos os pontos do chão à procura da saída, tropeçando em uns poucos canos aveludados de fungos inúmeras  vezes.

Por pouco não se perguntou como havia sobrevivido 80 anos em uma cápsula em lugar tão imundo e desgastado como aquele.

Restou àquela que por pouco não vomitara utilizar-se da tecnologia que ainda funcionava ao seu redor.

Seus dedos grossos e longos passaram certo tempo amassando o teclado virtual projetado por uma das telas antes que a informação que queria aparecesse. Para alegria da mesma, nada de senhas. Um toque bastou para que alguma passagem escondida abrisse em uma das paredes vazias. Se não fosse pela falta de ar que sentia, poderia ter sorrido uma segunda vez.

Era um túnel relativamente longo, desprovido de outro detalhe que não fossem fios azuis e projetores holográficos quebrados nas paredes. Branco desbotado ou sujo era o tom que contrastava com o preto um pouco menos contaminado de onde estivera presa. Por um tortuoso caminho, sentia um ar sujo penetrar seus pulmões, trabalho de parto irônico pelo qual passava. Torcia para que não tivesse que voltar, ainda mais pela mesma rota.

Zumbidos levíssimos de alta robótica pairavam sobre a alma da passagem para o exterior. Um som de vento uivante e empoeirado parecia indicar sua saída. E aparecia, finalmente, a luz no fim do túnel.

Aproximando-se de uma tela em funcionamento, fez gestos para que pudesse sair. Prontamente respondida, arregalou os olhos enquanto fechava sua boca com a mão.

Logo sentiu inúmeros ciscos em suas duas câmeras orgânicas. Quando os lançou fora, arrependeu-se de ter evitado o bloqueio de sua visão.

Ruínas encheram seus olhos, desabando em um sufocamento que a impediu de gritar ou chorar.


Havia um anúncio de certo remédio estomacal que, por um período, virou insana piada entre meus amigos durante minha infância. Até o tempo em que achava ter 23 anos, a marca continuava viva, com o mesmo slogan:

"Pum do passado, arroto do futuro; Ceroteho-Mar-Salvta"

O que há de humor ou mesmo de qualidade de escrita e marketing em tais palavras, ainda hei de descobrir. Por um lado, tive por muito tempo o idiota orgulho de afirmar-me como superior às crianças de minha idade na época

Quando olhei para a esquerda, vi um veículo carregado do referido antídoto para gases partido ao meio no chão. Haviam alguns esqueletos humanos abandonados no meio da rota que logo reconheci como Erdomasvo, a qual unia um certo número de distritos e duas metrópoles em cada ponta do caminho, incluindo minha cidade natal.

As cores amarela e marrom ligavam todo o cenário, que aparentava ser uma base militar da qual não conseguia me recordar no momento. Construções retangulares  e cheias de buracos e reentrâncias denunciavam algum grave acontecimento, se a tempestade de areia em um lugar antes ensolarado e sempre verde já não fosse suficiente prova do derradeiro cataclismo que denunciava a mim sua existência. Uniforme e tenebroso era o meu único caminho.

Minha fome impedia qualquer retorno ao laboratório que certamente continha dentro de si algum aperitivo ou refeição completa para meu hábito de duvidar e perguntar.

Jurei ter ouvido ruídos de estranha classificação, mas a cada passo que dava, ignorava o desconhecimento e atentamente observava o mundo monótono ao meu redor. O vento continuava a carregar areia, incomodando meus olhos que pareciam contrair conjuntivites instantâneas a cada sopro do ar.

Olhei novamente para o automóvel carregado de Ceroteho-Mar-Salvta. O mesmo não combinava com as construções ao seu redor. Nem um pouco.

Fazendo um uni-duni-tê mental, decidi que o alojamento à sua direita com um buraco no lugar da porta seria o primeiro lugar para minha busca por alimento. Não haviam muitos motivos para analisar meu caminho; entrei sem outra precaução além do medo do desconhecido.

E há por acaso medo que cause cautela maior do que este?
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13/11/2014 às 12:57 #1 Última edição: 13/11/2014 às 16:10 por TokusatsuBR
Nem preciso dizer que está muito bom né?
Sua maneira de descrever fatos, personagens e coisas do tipo, é fantástico.  Continue assim e vai longe, jovem.
RPG Maker Vx Ace.

Citação de: TokusatsuBR online 13/11/2014 às 12:57
Nem preciso dizer que está muito bom né?
Sua maneira de descrever fatos, personagens e coisas do tipo, é fantástico.  Continue assime vai longe, jovem.

Fico muito agradecido pelo comentário :3

Em breve continuarei com a história.