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Acabou o Petróleo

Iniciado por FilipeJF, 29/12/2014 às 20:36

29/12/2014 às 20:36 Última edição: 24/01/2015 às 14:17 por FilipeJF
Patê I.


– Que merda. Eu queria que chovesse, mas veio na pior hora. Meu guarda-chuva quebrou e minha máscara tem um furo aqui. Você vai consertar isso, tá bem, Oski? Não se faça de surdo, seu inútil! – a lama lhe sujava as botas. Desde o princípio jamais existiram dez minutos em que Marlos deixara de falar. Dormindo ou acordado, andando ou correndo, sua boca não parava quieta. Pelas costas, diziam que ele era o mais fiel exemplo à famosa frase "as bombas explodiram os bons e pouparam os ruins".

Oski deu-lhe um olhar calmo. Tinha furado por pura vontade a máscara do companheiro. Para ele, 'aquilo' era bagagem desnecessária. Logo a radiação terminaria o trabalho.

O trio caminhava havia dias na direção de uma suposta resistência amigável na fronteira entre o que costumava chamar-se Polônia e Alemanha. As últimas guerras modificaram tudo aquilo, e aqueles nomes eram somente simbólicos ou lembranças. Alguns chamavam aquelas terras de "Esperança" justamente pelos boatos relacionados à resistência, e outros as chamavam ironicamente de Lar dos Pescadores; um nome dado por aqueles que creem na existência de um grupo de saqueadores que atraem vítimas sob as falsas informações de paz e companheirismo que eles dispõem aos visitantes.

Os três viajantes, sonhadores, não tinham muito no que acreditar. Então, eles decidiram dar a esse boato uma chance. Viver naquele mundo era cansativo. Há quanto tempo sofriam sobre o eterno castigo da radioatividade? O último calendário foi do ano de 2051. Desde então, pararam de contar os anos. Não valia a pena perder tempo com isso, afinal sobreviver era mais importante. Por isso, não tinha lugar para mais um no grupo; para Oski, Marlos era peso morto. Ele furara a máscara do companheiro havia mais de um mês, e quando ele notara era tarde demais. Quando passaram ao lado do rio, há algumas horas, ele fora exposto a níveis altíssimos de radiação. Ele não duraria por muito tempo.

– Olhe, lá na frente – Fritz apontou ajeitando a alça da arma no peito. – É um tipo de abrigo.

– É uma casa, meu colega. Vamos lá, eu quero dormir. Vê se pega o negócio de medir radiação antes de chegar perto, não quero me infectar. Usei a última injeção na ponte.

Marlos andava com a máscara sob o antebraço e a barriga. Sua respiração estava pesada e seu rosto estava pálido; há duas semanas seu cabelo despencava aos poucos de sua cabeça. Ele não sabia que aqueles eram sinais da radiação. Oski sempre chamou-o de estulto. E com razão, por sinal.

A estrada de terra seguia na margem de um precipício com um enorme ermo cinza ao lado, cheio de pedras e uma escassa vegetação de gramas e árvores mortas. O buraco, imensamente assustador, provavelmente fora causado pela guerra. Lá embaixo não se via muita coisa além de rochas.

– Oski, pegue – Fritz ofereceu-lhe o aparelho de medição. A bateria estava fraca. – Ligue-o quando estivermos mais perto.

O amigo assentiu. Petroski era calado, mas não era uma pessoa fria. Por conta de ser russo e de uma cidadezinha sem importância, seu contato com outras línguas foi muito pequeno. Ele compreendia o que lhe era dito mas não dominava completamente a fala.

Fritz e Marlos eram alemães. Ambos loiros, de olhos azuis e jeitosos, pareciam duas relíquias num mundo esquecido.

Seguiram por alguns minutos sob a chuva enfraquecida até alcançarem relativos poucos metros da porta da casa. Era rústica, embora não aparentasse ser do Tempo Antigo – forma como chamavam o mundo antes das bombas. Estava mal conservada, então julgaram ter sido construída às pressas. Se algum dia algo existiu ali, o único remanescente foi a casa.

Oski manteve a pistola na cintura. Ergueu o medidor para enxergá-lo melhor e ligou-o com a outra mão. A tela azul surgiu: 0 sieverts. O local estava limpo, perfeito para passar uma noite; ou até mais, se fosse conveniente.

Adentraram em fila, Oski, Fritz e Marlos. A casinha tinha apenas um andar, quatro cômodos e um pequeno corredor no centro. Inspecionaram cuidadosamente cada um deles, nenhum oferecendo nada de importância. Os únicos móveis que viram fora na cozinha, onde tinha uma geladeira, quatro cadeiras e uma mesa. Os estilhaços no piso eram do fogão, mas estavam ligeiramente destruídos para serem remontados. Se naquela casa houve um banheiro, o vaso fora levado embora. No menor dos cômodos uma fissura de um metro cheio de escuridão amaldiçoava o lugar.

Na cozinha desprenderam os sacos de dormir da cintura e os armaram ali mesmo, bem próximos da mesa postada perto da parede.

Fizeram um montinho com as mochilas e deixaram-nas juntas encostadas na geladeira, e nas cadeiras penduraram suas roupas molhadas. Felizmente, foram privilegiados com dois pares extras de blusa e calça quando vasculharam um abrigo subterrâneo há três dias de distância.

– Acredito que já progredimos bastante na viagem, meus amigos – Fritz puxou uma das cadeiras e sentou-se. Esticou o mapa na mesa e apontou com o dedo. – Nós saímos daqui já faz uma semana. Se continuarmos nesse ritmo, não demorará muito até alcançarmos a resistência.

– Nesse ritmo... Nesse ritmo vai ser difícil – disse Oski. Marlos riu; sempre o fazia, quando presenciava a dificuldade que o companheiro apresentava ao falar noutra língua.

– Com certeza, mas é o que dá pra gente. Nossos recursos são limitados e não temos garantia de que vamos encontrar muito mais no caminho. Caso nos darmos o luxo de diminuirmos o ritmo, podemos não sobreviver até o fim. Eu quero uma chance de viver bem no mundo de novo.

– Eu também. Que merda é essa, cara... Minha cabeça tá gir... – os olhos de Marlos reviraram e ele vomitou tudo. – Droga! Que idiotice. Essa chuva acabou comigo, Oski. Era só você não ter furado a máscara! Quando eu melhorar, você vai ficar um mês sem abrir os olhos!

– Um mês é melhor que a vida.

Marlos revirou propositalmente os olhos, dessa vez como deboche. Murmurou alguma coisa e enrolou-se no saco de dormir. Fritz e Oski trocaram olhares sem emoção. Ambos sabiam o que ia acontecer. Era triste, mas para eles, o certo. O mundo não tinha lugar pra gente tola.

Cobriram-se em suas camas e foram dormir ao som da chuva, cada vez mais fraca. Cada vez mais fraca...

–--

Nessa noite, Marlos não murmurou durante os sonhos. Quando acordou, no escuro, tirou a vela de seu bolso e acendeu-a com fósforo e depois verificou o estado de seus camaradas. Ambos dormiam, silenciosos e encolhidos.

Sua cabeça latejava e náuseas detestáveis lhe repreendiam a todo instante. Saiu rengueando da cozinha, tonto, em direção à porta. Ele precisava de ar livre. As janelas eram pequeninas minúcias.

Sua mão agarrou a maçaneta. Abriu.

– Ah – resfolgou, exultante. Sua cabeça começou a soar-lhe estranha. Sua visão embaçou e sua mão soltou-se da maçaneta por conta própria. Ele piscou, piscou e depois fechou os olhos para não abri-los. Nunca mais.

O corpo mórbido de Marlos caiu na escada, com vela e tudo. O fogo, ainda vivo, esbanjava graciosidade naquela noite fria. Para o fantasma sedentário aquela fora uma visão espetacular.

Por mais que desejasse ficar e observar, ele não podia. Seus objetivos não se limitavam a isso. Sua última injeção para evitar iodo-131 e césio-137 se fora, tal como a de Marlos. Era uma questão de vida ou morte.

Com o polegar e o indicador docemente silenciou a chama dançarina da vela. Encostou de leve na porta, empurrando-a um pouco. Uma orla luminosa saía lentamente do primeiro cômodo à esquerda no corredor. Quando a sombra de um corpo surgiu na claridade, o fantasma imediatamente abandonou a posição e sorrateiro dirigiu-se até a parede oposta da casa.

Em pouco tempo a luz eclodiu e consumiu o negror do exterior, revelando um segundo homem com outra vela. Ele encarou por alguns segundos o cadáver do estéril ex-contaminado e voltou para dentro sem fechar a porta.

Sem captar a ocorrência, o fantasma meramente avançou com seu plano. Entrou na casa com prudência e se juntou à sombra da parede como um só ser, sem nenhum temor de que alguém por acaso fosse lhe encontrar ali. Portanto, não podia visualizar nenhum dos quartos. A luminosidade continuava lhe impedindo como se fosse uma barreira invisível: se prosseguisse para o cômodo da frente, as pessoas conseguiriam vê-lo. E o mesmo aplicava-se caso tentasse passar direto – o olhar vigilante do fogo lhe denunciaria enquanto se movimentasse.

Viu-se sem escolha, no fim. Estava com sede e sem medicamentos. Apanhou o rifle pela alça e verificou a munição. Estava carregado, pronto para disparar. Respirou fundo.

Com a arma apoiada no ombro, pendeu sua posição e patenteou-se na luminescência. Os dois homens assustaram-se, mas mantiveram-se sentados. Era um rifle de franco atirador mirado na direção deles; e empunhado por uma mulher visivelmente faminta. Não se deve brincar com o ser humano quando o assunto é sobrevivência.

– Vocês mataram aquele homem na escada...

– A burrice dele o matou, veja bem – Fritz mantinha as mãos erguidas no ar. – O mundo não tem lugar pra gente tola, moça. Ele escolheu morrer no momento em que não dava prioridade aos medicamentos e medidas para prevenir a radiação.

– Aquelas mochilas ali no canto – ela pendulou a arma na direção da geladeira, ignorando totalmente o comentário do alemão. – São três. Uma é do morto, pelo visto. Tem remédios, água? E comida?

Os quase irmãos ameaçaram uma troca de olhares, como sempre faziam; mas Fritz reconheceu que qualquer movimento era arriscado. Sua voz e suas escolhas eram as únicas coisas que poderiam tirá-lo vivo dali.

– Tem água, tem comida e tem remédios. E tem roupas, mas talvez isso não seja de suma importância – reparou nos trapos que ela usava. Ela fraquejou as sobrancelhas sérias.

– Deus, me importo sim com isso. Se vocês não se incomodam, será que...?

Na mesa estava depositada uma garrafa d'água de dois litros, quase cheia, e dois copos. Um deles tinha água até o meio.

Fritz estranhou a doçura e educação com a qual a moça agia.

– Claro. É difícil negar um gesto desses, ainda mais tratado com tanta educação. Por favor, beba o tanto que quiser. Essa água é do Marlos, o cara que morreu.

Ela abaixou um pouco a arma. Depois, levantou, indecisa. Decidiu então caminhar até a mochila antes de mais nada.

– Fiquem virados pra frente, de mãos levantadas. Depois eu bebo a água. Vocês não têm armas?

– Temos, mas não fomos precavidos dessa vez. Deixamos na mochila.

Aquela não seria uma tarefa complicada. Segurou o rifle com uma das mãos, com relativa dificuldade para mantê-lo, e com a outra revirou uma das mochilas. Um revólver, umas munições e remédios.

– A mochila do morto tem arma?

– Não tem não. Nós tiramos dele e alegamos que ele foi roubado. O que é mentira, claro.

Abandonou a exploração desse primeiro compartimento e passou para o próximo. Neste, não viu arma alguma, mas viu uns panos e um par de sapatos, mas nenhum remédio.

– Acho que essa é a dele, mas não tem remédios. Você tentou me enganar?

Fritz engoliu seco.

– Jamais. Procure melhor, deve estar aí em algum lugar – escutou o barulho de fechos se abrindo e fechando. Oski sacudiu as mãos numa tentativa de atrair a atenção.

– O remédio que Marlos andava não existe mais, tudo acabou há um tempo. Pegue algum meu e algum de Fritz.

E a mulher assim o fez, jogando alguns poucos remédios de cada um dentro da mochila e fechando-a. Ela não pretendia matá-los, por isso zelou uns pacotes para os dois.

– Agradeço a vocês. Agora, não vi nenhuma espécie de chapéu guardado por aqui. Tem a máscara, mas não quero algo que cubra meu rosto inteiro. Aí nessas cadeiras tem?

Fritz remontou a imagem espantosa da figura feminina nascendo na cozinha: trapos velhos e sujos tampando o corpo, sapatos rasgados e muito provavelmente assolados por baixo e uma cabeça calva, sem nenhum fio de cabelo. A mulher era magra e tudo, mas Fritz não convencia-se de que ela fora afetada pela radiação. Era esperta, sabia dos remédios e do uso da máscara. No cinto, ela tinha um semelhante aparelho de detecção de níveis radioativos. Por que ela se exporia sabendo dos riscos?

Mesmo sabendo a instância que ela sentia para o uso de toucas e similares, ele não tinha nada ali que pudesse ser de utilidade. A não ser que ela desejasse sair com uma calça pendurada na cabeça. Pensá-lo foi engraçado, para Fritz. Um sorriso antigo apareceu em seu rosto.

– Não tenho nada, sinto muito. Estamos numa situação precária. Não tanto quanto você, mas é em qualquer meio precária.

Ela pendurou a mochila nas costas com uma só alça e antecipou-se para a saída, não muito abalada com a notícia. Estava esquecendo a água, notou.

– Eu entendo, mas não tem problema. Eu fico feliz que possam ter me ajudado – ela virou-se para Fritz e Oski. – Meu nome é Glenda, a propósito – caminhou para perto da mesa.

– Fritz. E este, Petroski. Chamo-o de Oski – eles sorriram forçadamente. Ela também. Mas o clima tenso partiu-se. Nesse pequeno instante, eles se assemelharam a pessoas comuns dos anos passados, felizes e despreocupadas. Mas isso durou pouco. Essas coisas sempre duram pouco.

Uma pistola, na porta, apontou para a cabeça de Glenda.

– Olá – perplexa, os olhos verdes de Glenda se esbugalharam.

– Quem é você?

– Não se vire. Minha arma está mirada para você, como seus reféns podem ver.

Ela escutou passos pesados no fraco piso de madeira. A chuva, lá fora, apertava cada vez mais.

O desconhecido encostou o cano na cabeça dela, que fechou os olhos. Sentiu uma mão deslizar por sua orelha, descendo até a alça da arma e posteriormente à mochila. Num arranque, ela foi solta do braço.

– Certo. Quero a água também – o homem permaneceu com a arma escorada em Glenda, mas com a outra mão abaixou o rifle para o chão e pegou a garrafa d'água. Depois, lentamente, iniciou sua caminhada de regresso.

– Estive escutando a conversa de vocês. São pessoas boas, eu acredito, mas tolas. E vocês sabem o que ocorre com pessoas tolas. Obrigado, Glenda. Obrigado, Fritz e Oski. Espero que Deus tenha um bom milagre para jogar do céu, pois só isso lhes será útil. Sigam-me, todos os três. Devagar.

Não assentiram sequer com a cabeça, só reataram as ordens e foram adiante. O desconhecido com a máscara de gás cobrindo o rosto os atraiu lentamente, passando pelo corpo de Marlos na escada e guiando-os à estrada na beira do precipício, que guardava uma moto movida a gás. Ele sinalizou para que os três ficassem perto do cadáver e montou no veículo molhado e depois passou o braço na viseira. Gritou:

– Sozinhos, vocês não sobreviverão! Fiquem juntos, e isso lhes garantirá mais tempo! – guardou a pistola no cinto, ajeitou a corrente na parte de trás que prendia suas outras bolsas e ligou o motor. Acelerou, atirando barro nos pobres desafortunados e acenando. A chuva pareceu acompanha-lo.

Glenda gritou de raiva, enquanto Oski cobriu o rosto com a palma das mãos. Fritz fitou o horizonte, a direção em que o desgraçado tomara.

– Nós vamos pegá-lo – seus cabelos ensopados cobriam-lhe os olhos. – Nós vamos pegar nossas coisas e as dele. Você vem com a gente, Glenda? – ele falava tudo aquilo com naturalidade, como se já o tivesse feito muitas vezes.

A francesa o afrontou, segurando forte o rifle. Podia mata-los ali e pegar o que sobrara de suprimentos. Mas por algum motivo, o desconhecido os deixara com um pouco. Ele não levara tudo. Ou isso significava alguma coisa, ou o motoqueiro não prestara atenção no ambiente.

Glenda acreditou que aquilo fosse uma real segunda chance por parte do homem. Ela estava decidida, afinal na Terra não cabe gente tola.

– Eu comecei isso, Fritz. É o mínimo que eu posso fazer.

fear is the mind-killer