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Parte I: Nas Terras Lodosas que ficam no norte

Iniciado por FilipeJF, 04/04/2016 às 20:10

04/04/2016 às 20:10 Última edição: 01/05/2016 às 12:47 por FilipeJF
Bem, nada mais justo que começar a postar, então, já que eu disse que tentaria postar de vez em quando. Esse é um texto que escrevi durante a madrugada, e gostei bastante do resultado, embora tenha vacilado em umas partes.


Eu prefiro que leiam por aqui:

https://www.dropbox.com/s/ivoffqr7vojnmzz/A%20Longa%20Empreitada.pdf?dl=0

Mas deixarei no tópico também.

A Longa Empreitada

Spoiler

             A cumprida capa verde balançava e dançava agitada com o bater avassalador da ventania que os ventos do oeste fizeram para juntos levar a chuva. Aquela região, muito longe no norte, chamava-se Terras Lodosas, e a chuva e seus respingos já eram seus conhecidos de longa data, sabidos por manter o terreno na típica forma cheia de contusões, de poças de água e depressões, poucas árvores, e penteada de arbustos e herbáceas na sua maioria. Quando a grande região fazia seu desvio para o nordeste, encontrando o Rio Descendente, áreas cobertas por mangues, flores e plantas de raízes aéreas e árvores altas começavam a aparecer em abundância. Pessoas estranhas viviam nesse lugar, em aldeias de pesca, e eram conhecidas por ser rudimentares em suas técnicas e métodos de vivência.
O vagante que fazia seu caminho incerto pelas Terras Lodosas visava prosseguir sua busca nessas aldeias, tidas como insignificantes pelas civilizações maiores e mais desenvolvidas. Sua empreitada durava meses, ou talvez um ano e uns tempos, ele não sabia ao certo, e o levara por lugares venturosos e inóspitos, alguns ditos como proibidos ou amaldiçoados; com grande pesar e relutância, teve de cultivar coragem do mais fundo abismo de sua alma para adentrar cantos onde as palavras desprezavam ou temiam. Sua jornada finalmente alcançava o fim no Longínquo Norte, pois o Rio Descendente subia em direção ao mar para nunca mais ser visto. Ali, nas redondezas do rio, sua busca deveria ser completada ou tudo teria sido praticamente em vão, salvo pelo conhecimento e sabedoria que adquiriu durante muitas de suas passagens. Devido a isso, ele sabia que, apesar de tudo, não se abalaria em uma depressão profunda: as coisas da mente permaneceriam com ele até seu último suspiro. Eram coisas que significavam riqueza de verdade, diferente dos tesouros brilhantes e joias sedutoras e coloridas.
Guiando o cavalo pelas rédeas, o andarilho atravessava com cuidado e atenção os pontos acidentados, contornando as poças, desviando das árvores e dos arbustos muito densos, descendo depressões aqui e acolá quando não estavam cheias d'água ou afogadas em poças de lama profundas e paludosas demais. Sua direção era o nordeste, onde com um pouco de sorte encontraria algum povoado antes do anoitecer. Tomar chuva seria inevitável, pois os primeiros respingos frios e grossos desciam em estocadas nervosas do céu nublado onde uma imensa nuvem negra repousava soberana entre muitas outras.
O homem puxou a capa das costas e cobriu os ombros da cota de malha de um verde-escuro bastante sujo; depois ajeitou o capuz da armadura na parte do pescoço aonde uma incômoda coceira vinha importunando-o há alguns dias, desde que entrara nas Terras Lodosas. Coçar era uma tentativa falha, restando como meio de aliviar a coceira uns puxões, num movimento de vai e vem, de vez em quando.
Não demorou muito, e a chuva forte e os relâmpagos, seus convidados especiais, transformaram o céu em um grande palco de espetáculos, arreando a grande plateia com suas curiosas habilidades celestiais. O andarilho observou o chão, que nos três dias passados quase transformaram suas botas em barro, e respirou fundo. Virou-se para trás, encontrando o olhar impassivo do cavalo de pelos negros e marrons, com os cabelos da crina dourados. Acariciou o pescoço do animal durante um instante, e, sussurrando palavras gentis em seu ouvido, levou a outra mão até o assento e o pé no estribo, jogando-se para cima. Sua pouca bagagem estava pendurada na parte traseira da sela, e resumiam-se a dois sacos de serapilheira bem grandes e lotados no lado direito e uma bolsa de couro no outro. A espada, guardada em sua bainha um pouco escondida por debaixo dos sacos, estava pendurada por duas tiras de couro que foram amarradas firmemente ao seu redor e nas argolas da sela. Tomou as rédeas novamente nas mãos, batendo-as com firmeza sobre o dorso do animal, e saiu trotando lama afora.
Olhando na direção desejada, sob o intenso espetáculo da chuva e dos relâmpagos, uma floresta de árvores altas que cresciam cercando as imensas poças e lagos recobria grande parte do horizonte, escondendo sob suas vazias copas aldeias ou cidades inteiras. Juntas, as árvores formavam uma inabalável muralha de madeira, condenando a visão dos curiosos, viajantes, e qualquer alguém que estivesse de fora. As pessoas que lá viviam conheciam cada passo do extenso manguezal, diziam, e no momento em que alguém pusesse seus pés nos limites da floresta já estaria em plena desvantagem. Embora duvidasse dessa aguçada vigilância por parte dos povos que viviam ali, o andarilho carregava sua espada escondida, para evitar quaisquer infortúnios que pudessem vir à tona.
A lama esvoaçava em um estrondo macio e aquoso com cada pisada do cavalo, eventualmente pintando as botas surradas e velhas do viajante. Poças novas começavam a se desenvolver no caminho, dificultando os passos do animal, mas sua sagacidade e esperteza perante a situação esbanjavam sabedoria de longos anos de convívio com terrenos difíceis. O andarilho, antes, carregava o cavalo pelas rédeas para deixá-lo descansar, pois no dia anterior havia cavalgado muito sobre o lombo do pobre coitado. Agora, no entanto, a viagem se aproximava do fim, e a chuva era um irritadiço importuno pelo qual deixou de nutrir tanto afeto após três dias ante seu tormento indomável. O quanto antes saísse de seus domínios encharcados, melhor.
Alguns minutos depois chegou à borda da floresta, e o terreno enlameado deslizou por entre os troncos das árvores em um denso matagal, que tinha seu fim com lagos e pequenos rios e poças que contornavam os arredores dos troncos, às vezes cobrindo suas raízes, criando mangues e plantas de raízes altas. A maioria das árvores estava morta, mas algumas ainda estavam firmes e fortes com suas folhas verdes e suas copas grandiosas, invejando o resto da natureza local. O viajante diminuiu o trote e fez o cavalo andar bem devagar, escolhendo os caminhos pelas partes onde o barro estava batido, com fantasmas de marcas de patas de cavalo e calçados, algumas delas misturadas e fundidas.
Guiava a montaria por um labirinto de troncos grossos, eventualmente deparando-se com as rotas tomadas por árvores tombadas ou fileiras enormes de plantas e flores peculiares, forçando uma travessia agourenta pelos rasos lagos e poças. O cavalo relinchava irritado, mas o viajante permanecia impassivo, com a mente focada no seu único objetivo de encontrar aquilo que viera buscar, a razão de toda sua jornada desde as Planícies Silenciosas do Norte até o extremo ponto do Longínquo Norte.
Certo ponto, quando a fúria dos céus possuíra por completo as gotas da chuva e atacava com fervura o solo violentado do grande manguezal, o viajante viu, no meio de dois grandes troncos vizinhos de árvores mortas, o que se assemelhava a uma escadaria de madeira erguida por várias vigas sobre o chão afogado em água barrosa. Passeou com o cavalo pelo denso caminho cheio de árvores onde estava e passou do lado dos troncos vizinhos, e sua visão foi abençoada com a aparição da pequena aldeia que se erguia sobre o pântano. Várias casas (algumas de pedra) foram construídas no alto e eram sustentadas por resistentes pilares de pedra e grossas vigas de madeira, conectadas por pontes planejadas da mesma forma. Embora a visão pudesse denunciar uma aldeia frágil, prestes a desmoronar a qualquer instante, não era de fato o que viria a ocorrer.
O andarilho trotou adiante, retomando posição no mesmo caminho de antes, agora mais do que nunca marcado por pegadas e rastros de animais e pessoas. Uma escadinha de madeira, muito simplória, levava para cima, até uma das pontes de pedra. Uma rampa ao lado servia para subir as montarias, e foi por onde o vagante entrou, desmontando da sela e levando seu corajoso e esbelto animal para cima ao seu lado. As casinhas eram todas bem pequenas, a maioria quadrangular, e tinham telhados de madeira levemente curvados para escorrer a água, que desciam e caíam no espaço entre as pontes e as paredes. Todas as casas eram servidas de uma ligação com suas pontes vizinhas, onde uma pequena abertura se curvava até suas portas principais, adornada e protegida por suportes de pedra nos precipícios.
Seguindo reto, através da rua de pedras, via-se uma grande casa de extensas paredes de troncos de madeira, a maior que seus olhos puderam detectar na vila. Uma grande estrutura retangular de pedra fora erguida unicamente para ela, e um liame de troncos, muito espaçoso, servia de junção com as ruas. Uma minúscula estrebaria ficava do seu lado direito, encostada no exterior da parede leste, com espaço para três cavalos nos pequenos recintos guardados por portõezinhos básicos de tábuas amarradas umas nas outras. Um telhado de palha cobria a estrebaria, enquanto logo ao seu lado estendia-se por sobre o casarão um telhado de madeira, igual ao do resto dos lares, inclinado em lados opostos.
Relâmpagos embaçados cortavam as nuvens no horizonte além da vila e trovejavam em rugidos assustadores, iluminando rapidamente o céu coberto por uma escuridão nublada. O andarilho trazia com firmeza as rédeas em mãos, caminhando à frente do cavalo até a estrebaria. Suas vestes estavam encharcadas, assim como seus suprimentos; fosse aquele estabelecimento uma taverna ou não, ele teria de obter comida e água limpa. Trazia em seu cinto um odre totalmente vazio e uma faca de caça, posicionada perto do traseiro onde a capa a mantinha em segredo.
Cruzou uma pequena encruzilhada no fim da ponte, interligada a uma rua que a cortava e ao liame de troncos. Aproximou-se a passos largos e velozes da estrebaria, e notou que um cavalo estava guardado em um dos recintos, em silêncio. Escolheu o recinto do meio e levou seu fiel companheiro para dentro, amarrando as rédeas em uma das vigas que sustentava o teto. Desprendeu um dos sacos de serapilheira da sela e o lançou sobre os ombros, segurando-o pela corda que o mantinha fechado. Retirou-se rapidamente, fechando o portão, e dirigiu-se à porta do estabelecimento.
A porta parecia emperrada, e decidiu forçar a maçaneta para que ela se abrisse; quando o fez, voou para dentro de uma vez só, em um terrível estardalhaço de porta se arrastando. Olhares curiosos dirigiram-se à entrada, recebendo o viajante com relativa raiva e desconforto. Uma boa quantidade de pessoas estava no estabelecimento, com grupos sentados em mesas separadas e bebendo em grandes canecões, servidos de cheirosas refeições. O andarilho pegou na maçaneta, agora a pressionando com força para cima, fazendo a porta se arrastar levemente sobre o piso, e a fechou.
De repente, uma sensação calorosa de conforto caiu sobre sua mente. Apesar de todos os olhares que o amaldiçoavam descaradamente, sentiu um enorme alívio ao alcançar aquele aparente ponto seguro no meio do pântano, onde informações e suprimentos poderiam ser adquiridos. Caminhou lentamente até o balcão à frente, onde um homem misturava uma bebida em uma jarra de cerâmica com um colherão. A cada passo, sua cota de malha e coifa balançavam encharcadas e cantavam no salão. Sua capa estava pesada, caída nas costas e tampando sua faca, e por pouco não se arrastava no piso. Deixou um longo rastro de água atrás de si, e as pessoas ainda o observavam sob uma vigilante suspeita. Sentou-se num dos banquinhos, retirou o capuz de ferro e o deixou de lado sobre as coxas.
"Seja bem-vindo, forasteiro", disse o homem atrás do bar, terminando de misturar o suco. "Pergunto-me o que o trás a essas terras nestes tempos tão ruins, de tempestades incessantes e criaturas medonhas."
O andarilho passou as mãos pelos longos cabelos castanhos e os recostou atrás das orelhas. Sua vontade era de espremê-los para secá-los um pouco, mas não o faria ali. "Meus deveres e objetivos são recompensadores, mas se tratam de tarefas árduas, muitas das vezes perigosas, e eu não posso desmascarar o sigilo que as protege. Mas eu devo dizer que estou surpreso, encontrando uma cidade dessas no lugar onde todos são conhecidos pela alcunha de pescadores ou primitivos."
Enquanto ouvia as palavras do andarilho, o velho homem trouxera um copo de madeira e o enchera do suco que recém havia feito, oferecendo ao freguês.
"As pessoas não se importam conosco. A ignorância dos povos do sul os privou de ver como evoluímos e crescemos, quando viajantes como você vieram e trouxeram muitos segredos da arquitetura e das guerras até nós. Isso já faz muito tempo, e ainda assim, nem você sabia", disse ele.
"Porém, eu já havia escutado coisas desse tipo. Mas é como você disse: graças a minha ignorância, essas palavras me passaram batidas, e eu tampouco me importei sobre elas. Mas eu vivo de importantes missões, e ocupar minha cabeça de palavreados quaisquer pode embaçar meu foco. Vim até aqui para adquirir um pouco de suprimentos para seguir em frente ao anoitecer, tenha a chuva passado ou não", disse o andarilho, e bebeu um gole do suco. Era limão, pouco visto em pântanos como aquele. "Uma especiaria e tanto", continuou, apreciando o suco, "pergunto-me a razão de ter me oferecido, sem mais nem menos."
O estalajadeiro abriu um pequeno sorriso.
"Receio que sua jornada esteja um pouco agitada. Sua missão passou por aqui há poucas horas, e lhe providenciou esse suco de limão, vindo das frutas que ele mesmo adquiriu, e também trouxe açúcar. Falou da sua aparência e de suas vestes, dizendo que nunca tira essa capa verde."
Ouvi-lo dizer aquilo não foi fácil. Por um momento, uma raiva apossou de seus pensamentos, e o andarilho fechou os olhos, meneando com a cabeça. "Então eu receio que deva partir imediatamente! Eu preciso saber em qual direção ele seguiu agora mesmo."
"Pois eu preciso viver bem nestas terras podres, forasteiro, e isso me custa muito dinheiro. Criaturas despertam nas águas rasas durante a noite, comem as vigas e derrubam as casas e se alimentam das pessoas do nosso humilde vilarejo. Muitas pessoas estão assustadas, e eu também. Nós precisamos reforçar nossa proteção, mas sem dinheiro isso é impossível!"
O olhar no rosto do homem era humilhante e maléfico, esbanjando uma falsa esperteza e contando de eventos reais de maneira debochada e mentirosa, fingindo se importar com alguém que ali vivesse quando, na verdade, desejava apenas escapar e nada mais. O vagante pegou o saco pela corda, que estava deitado no chão ao seu lado, e desfez o nó, revelando um pão amassado envolto em um pano de seda e vários saquinhos menores onde trazia muitas bagas que colheu ao longo de sua jornada. Também havia um segundo odre, bem menor e sem cordão que estava cheio. Espalhadas pelo saco, várias moedinhas brilhantes e douradas tilintaram ao serem envoltas pela palma da mão do andarilho. Ele as largou sobre o balcão como se não desse a mínima sobre elas e o valor que representavam, fazendo muitas escorregarem e caírem do outro lado.
O estalajadeiro balançou a cabeça muitas vezes, de boca séria, mas de olhos sorridentes e cobiçosos que encaravam e avaliavam desacreditados tamanha quantia de ouro. O andarilho retirou o odre do cinto e o deixou no balcão perto das moedas, depois o saco, e ordenou: "Me veja seus alimentos mais duradouros e encha o odre com água limpa. Por agora, me fale a direção pela qual ele seguiu!"
Quando escutou tais palavras, ditas em um tom de voz grave muito séria, o estalajadeiro pareceu acordar de seu coma diante de tanto ouro e assentiu com a cabeça, pegando o odre na mão e dizendo: "O homem seguiu para o norte, na direção das aldeias de pesca. Eu não sei o que ele tem em mente, mas sei que nessa época do ano algumas embarcações são enviadas para cruzar o rio, tentando alcançar o outro lado. Eu, e muitos outros daqui, chamamos isso de festival suicida, pois ninguém nunca consegue alcançar a outra margem."
O vagante escutou palavra por palavra com muita atenção, chegando a uma conclusão não muito satisfatória. "É isso; ele pretende escapar usando essas embarcações."
"Ele morrerá, então. Não vejo razão para tanto afobamento", disse o estalajadeiro.
"Errado. Esse homem não é comum. Ele não morrerá tão facilmente!", retrucou o andarilho, apontando na direção da porta entre as duas estantes de bebidas e copos e outros itens de cozinha por trás do estalajadeiro. "Vá! Traga-me os suprimentos o mais rápido possível!"

E assim foi feito, às pressas, em uma correria desenfreada. O saco de serapilheira ficou lotado com duas bolsas carregadas de meia dúzia de maçãs cada e o odre foi totalmente reenchido. O estalajadeiro pretendia dar ao andarilho mais suprimentos, porém ele se recusou e disse que quando retornasse de sua infindável busca pegaria o restante. Retirou-se rapidamente da estalagem e correu até a estrebaria, prendendo sua bagagem de volta na sela e trotando o mais rápido possível para fora da cidade, na direção do manguezal. Era um fim de tarde sombrio, com muita chuva e relâmpagos apavorantes que lutavam contra a terra em uma batalha estrondosa.
Desceu a rampa da cidade em trotes desesperados, virando o cavalo à direita, desviando da estradinha surrada de lama e seguindo através de uma região disforme e coberta por poças enormes. Mas não havia tempo para contornar esses problemas, então bateu com as rédeas no dorso de sua montaria e disparou em direção ao norte em um galope frenético e decisivo, com água esvoaçando nos seus dois lados.
Infelizmente, sua velocidade foi comprometida quando a poça mostrou ser, na verdade, uma lagoa, muito funda e extensa para que o cavalo pudesse atravessá-la, e foi obrigado a procurar um caminho através da densa mata ao redor, que, além de árvores altas e muito empastadas umas nas outras, tinha milhares de mangues que formavam grupos enormes entre si e tornavam impossível a travessia. Em pouco tempo o andarilho estava completamente confuso sobre por onde deveria seguir, perdendo-se por entre o matagal, e não tinha mais tanta certeza de onde ficava o norte.
Graças a sua insistência admirável adquirida com muito esforço, depois que se passaram muitos minutos e quando já havia dado incontáveis voltas por vários lugares muito parecidos, acabou enfim retornando para a lagoa de onde viera e adotou um caminho diferente, que seguia para o oeste. Apesar de também ser dominado por mangues e arbustos em espessos amontoados, a travessia por esse outro lado revelou-se possível, e dentro de alguns minutos, fazendo desvios para o nordeste e noroeste, uma trilha com muitas pegadas antigas foi encontrada seguindo diretamente para o norte.
A chuva enfraquecia aos poucos, enquanto os relâmpagos amenizavam sua fúria e gritavam baixo nas distâncias ao longe. A noite vinha devagar, expulsando do céu as nuvens cinzentas e revelando um céu negro muito brilhante de estrelas. Galopando para o norte, a região estava finalmente mais limpa: as árvores, menos empastadas e mais espalhadas; os mangues em menor quantidade, porém mais variados. Enquanto cavalgava, uma névoa começou a se estender suavemente pelas livres bordas do manguezal, escondendo o horizonte em um branco repulsivo e tenebroso.

O cavalo fazia barulhos estranhos e estava muito cansado quando, na distância, através da espessa camada de névoa que surgira de repente, várias luzes brilhantes e vermelhas obtiveram forma, contando a existência de postes de luz com lamparinas. Nesse momento saltou do cavalo, com as rédeas ainda em mãos, e foi andando solenemente até o vilarejo de pescadores. A noite era definitiva, e a madrugada não estava longe; um silêncio profundo envolvia os lares e todos os estabelecimentos do local. O andarilho estava bem próximo quando notou uma placa tombada sobre uma poça d'água, onde se lia Pesqueiro.
Continuou e entrou na rua principal, bem simples e de terra batida, cercada por casinhas pequenas de madeira. Diversas cabanas de feira jaziam escuras e trancadas na frente de algumas casas, e cabos de varal que iam de um lado ao outro da rua estavam vazios, sem roupas penduradas nesse dia atormentado pela chuva. As lamparinas eram escassas e o pequeno vilarejo permanecia bem escuro, mas era possível notar o reflexo das estrelas no rio adiante, perto das docas. Pequenos barcos veleiros dormiam no escuro, acima das águas calmas, e boiavam sonolentos ante as pequenas ondas dos ventos.
O andarilho chegou mais perto das docas, descendo uma pequena depressão que fazia a rua principal. Postes iluminavam as pontes de madeira e os quatro barcos veleiros. Porém, existia espaço suficiente para cinco barcos, e o quinto barco estava faltando. Nesse momento o coração do vagante disparou. Sua respiração acelerou, e uma angústia tempestuosa consumiu seu espírito, pois sua busca havia terminado; e ele falhara. Cerrou com muita força as mãos, e os lábios despencaram em uma curva tristonha, mas cheia de raiva. Então soltou um berro, caindo de joelhos no chão úmido cheio de barro, erguendo os braços para o alto, buscando com toda a força da sua alma uma esperança que não mais existia. Olhou para o céu, e viu que as estrelas brilhavam muito.
"Cel Batrin!", gritou, abaixando a cabeça, inconsolável. Esse era o nome pelo qual buscava todo esse tempo. Outrora, pensou que perder essa busca seria algo facilmente contornado, mas estava errado; tratava-se exatamente do oposto. Apesar de tudo o que aprendeu em suas empreitadas tão perigosas, o que sempre quis, de fato, foi encontrar e lidar com aquele cujo nome era Cel Batrin. Seu retorno à casa era impossível até que encontrasse esse homem.
Enquanto refletia, ajoelhado no chão de barro, as pessoas que escutaram seus berros tinham saído de suas casas e o observavam com velas e lamparinas em mãos, muito curiosas. Mas ele estava envolto nas obscuridades de seus pensamentos particulares e não as notou, imaginando que todo aquele tempo vagando pelo Longínquo Norte não passara de um grande aquecimento para a verdadeira caçada. A sua grande empreitada, a jornada definitiva para dentro das entranhas do perigo de verdade começava ali, nas Terras Lodosas, na pequena aldeia chamada Pesqueiro.
Ele enfim recobrou a consciência. Levantou-se, e viu todas aquelas pessoas o encarando como se fosse louco.
"Um homem de longos cabelos de cor estranha entrou em uma das embarcações?", perguntou de repente. As pessoas permaneceram em silêncio, até que um jovem garoto respondeu:
"Veio um de longos cabelos meio verdes e jeitão todo esquisito. Me pareceu que era muito mais do que dizia ser, isso é, um mero aventureiro buscando atravessar o Rio Descendente."
"E quem seria você? A embarcação zarpou há horas, se é por isso que está aqui", disse um homenzarrão sem camisa de peitoral peludo, que mais se parecia com uma espessa camada de couro. Trazia no rosto uma grande barba negra muito bem aparada.
O andarilho tomou as rédeas de seu cavalo nas mãos. "Sou um cavaleiro, e tenho muitos assuntos inacabados com a aberração de cabelos verdes. Aberração, pois aquele ser não se trata de um mero homem; ele se tornou algo além de nós, muito mais perigoso e poderoso que todos vocês, e digo-lhes que, com certeza, alcançará a outra margem do rio ao lado dos seus homens. Eu preciso de uma estadia por hoje, peço-lhes humildemente; pois amanhã darei início a minha verdadeira jornada. Devo caçar e eliminar esse ser a todo custo!"
As pessoas passaram a olhar torto para ele e não acreditavam realmente nas coisas que dizia. Mas aceitaram acolhê-lo pela noite, fosse ele louco ou não; e trataram-no da melhor maneira possível que tratariam um homem louco. Mas antes que fosse dormir, em um canto nos estábulos, perguntaram-no:
"E qual seria o seu nome, forasteiro? Até agora o chamamos de cavaleiro, mas isso não é um nome, tampouco um título verdadeiro!"
E ele respondeu, bem calmamente:
"Na minha terra, sou conhecido como Cel Baran. Mas não devo ser chamado por tal até que eu conclua a vontade minha e dos meus mestres; pois se fui banido da minha casa, e da minha família, esse nome não me pertence até que eu o conquiste novamente. Fui eu que escolhi esse destino de longas distâncias e perigos, a jornada que terminará na morte de Cel Batrin, o nosso maior inimigo."

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fear is the mind-killer

Como você acabou de comentar o meu texto, nada mais justo do que eu comentar o seu, não acha? haha
E caramba, que texto. Apesar de descritivo na maior parte do tempo (o que imagino que tenha sido sua intenção mesmo, para passar a amplitude da viagem), a narrativa me deixou profundamente interessado. "Quem seria esse homem? O que ele estaria procurando? Porque essa busca o levou a um ambiente tão selvagem?"

Você descreve os cenários MUITO bem (o invejo nisso, pois é uma das coisas em que eu tenho mais dificuldades, descrever sem parecer over detailed ou demasiado superficial) e consegue passar bem o sentimento de busca angustiante e interminável.

Confesso que fiquei um pouco desapontado com o final. Apesar de ele revelar o nome do personagem e o que ele estava buscando, não me diz muita coisa, uma vez que eu não conheço nenhum dos dois nomes citados e isso tira um pouco o impacto da revelação. haha. Mas mesmo assim não deixa de ser muito bem escrito e interessante.

Um trabalho muito bom. Meus parabéns.

Realmente, o final é decepcionante, já que eu escrevi o texto sem grandes intenções e com o objetivo de demonstrar o caminho percorrido pelo viajante, tudo em prol de uma grande caçada sobre a qual eu não exercitei detalhes. Me arrependo disso, devia ter aproveitado a chance para tentar fazer diferente, pois esse é o rumo da maioria de minhas histórias. Enfim, talvez eu faça uns escritos sobre o mundo, cuja geografia eu montei para uma partida de rpg. Descrever cenários é algo que eu realmente admiro, assim como atribuir uma sensação de grande aventura com as palavras. 

Qualquer hora tente desenvolver umas histórias para descrever uns cenários e poste aqui. Não sei como dar dicas além disso, acho que não tem como.

E, sério, obrigadão pelos elogios; significa muito, e dá aquela vontade de estar sempre praticando para receber mais (ou não)!

Até!
fear is the mind-killer