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Contos do Cego - Um reminiscente

Iniciado por O Cego, 03/04/2020 às 02:15

* * *

O sol brilhava no horizonte sempre calmo dos Campos de Madeleine, a Senhora Veneranda. Aquele era um lugar especial para muita gente, especialmente para os desencarnados que lá habitavam - Uma recompensa um tanto justa para os que nunca conheceram a Verdade, mas que agiram de acordo com ela. Coçou a barba prateada e cheia de falhas. O olho que funcionava doía por conta do brilho - O poder adquirido à custa de uma vida ressonante enfim cobrava seu tributo.

Sachiel, o antigo marechal celeste, estava definhando. Faltava-lhe o olho esquerdo e dois dedos na mão direita, além do dedo menor da mão esquerda. Há um ano não conseguia mais invocar as asas espectrais, motivo de tanto orgulho dez anos antes. Feridas pequeniníssimas o faziam sangrar profusamente - um esguicho de prata quente e viva, mas não mais brilhante como antes. O olho que sobrou havia adquirido uma coloração que lembrava a pátina.

Sua filha, Luna, havia crescido e se juntou às Hostes celestiais, por escolha própria. Sua esposa, Sally, talvez nem mais fosse viva. Há dez anos não conseguia saber dela - Ela ocultou a pulsação de sua alma tão bem que era impossível detectar sua assinatura Kirlian.

Luna tinha os olhos azuis de cobalto da mãe.

Sorriu um sorriso contrafeito. Luna também tinha o temperamento irascível de Sally. E, agora, tinha nas mãos a Lança de Longinus - Sachiel não era mais forte o suficiente para empunhá-la.

Pensando bem... Talvez nunca tivesse sido forte o suficiente, mesmo quando se sentia capaz de rasgar uma galáxia inteira apenas com um movimento do braço.

_Talvez, Sachiel... Mas o que isso importa, agora? - Disse a voz atrás do velho Nimbus, da ordem dos Captare. Era Atena.

Madrinha de Luna, Atena era uma visita cada vez mais infrequente nos Campos de Madeleine. Também estava enfraquecida, sobrevivendo das ocasionais oferendas de fé deixadas pelos estudantes em suas estátuas ao redor do mundo nas universidades. Um velho ritual dos estudantes que tinham motivos para temer as provas era o de deixar flores nas estátuas de Atena. Atena era uma deusa bondosa, e envidava toda a força que podia obter para que estes não se ferrassem totalmente. Funcionava... na maior parte das vezes.

Atena era bondosa. Quando Sally foi embora, foi ela que ajudou a educar a menina.

_Você ainda pensa nela, Sachiel? Em Sally? - Perguntou uma Atena inquisitiva. Atena era bondosa... e também intrometida. Mas Sachiel não poderia mentir para sua comadre.

_Todos os dias, Atena. - Sachiel, que estava sentado, coçou a barba novamente. Sentia os fios quebrando ante a fricção que fazia com os dedos. - _Atena, minha amiga... Estou morrendo.

_Não seja tolo. Se achar que não consegue mais... Você pode vir comigo, para o Olimpo. Madeleine não vai se importar.

_Ares é rancoroso. Duvido que ele vai deixar de lembrar das guerras que foram travadas antes do Cristo. E, hoje... Quem sou eu para enfrentar um deus, Atena? Ademais, quero evitar problemas.

_E então, o que quer fazer? Ficar aqui e definhar?

Sachiel não respondeu. Era a primeira vez que não tinha uma resposta pronta para esta pergunta, tantas vezes feita por Madeleine. Atena sentou a seu lado, deixando a lança a um canto e retirando o capacete que lhe cobria os longos cabelos da cor do cobre polido. Tudo em Atena era acobreado e ocre, até mesmo a pele trigueira. Os olhos eram metálicos e inquisidores, e davam a impressão de ler através das mentes e éons. Talvez o fizessem, de fato - Atena já havia nascido deusa. Sachiel alcançou este patamar em um determinado momento, em 2007, mas não sem sofrer os efeitos colaterais que, agora, o faziam definhar.

E, naquele ínfimo momento em que foi um deus, conseguiu enxergar através das eras.

_Vim te trazer notícias da Terra dos Homens. E da Cidadela de Prata. Luna está ocupando o lugar que você deixou vago.

_Luna se tornou marechala? - Perguntou um Sachiel atônito. - Sachiel havia demorado toda uma existência como nephilin para se tornar Marechal. Como Luna havia conseguido o comando de uma divisão em cinco anos?

_Não, seu bobo. Luna é a nephilin que está arrumando confusão na Cidadela agora... Exatamente como você costumava fazer, lembra? - Atena soltou uma gargalhada. Tinha essa mania de gargalhar - uma gargalhada que vinha do fundo dos pulmões. - _Luna comanda uma hoste celeste que lembra bastante a sua velha Legião Ômega - Cem celestes, todos eles desajustados ou imperfeitos. Mas Miguel está muito satisfeito - Diz que Luna é rebelde, mas cumpre com aquilo que promete... Exatamente como o pai fazia.

Sachiel não pôde deixar de sorrir. Luna já havia nascido mais forte e apta do que ele jamais havia sido antes de se entregar à Ressonância em troca de poder. De um lado, tinha a herança dos celestes. Do outro, a audácia dos bruxos - Havia herdado o sangue magi de sua mãe. Não precisava se conectar à Rede Angélica para obter poder para realizar divindades e feitos - Bastava pensar no que queria realizar e a mágica literalmente saltava de seus dedos, sem gestos ou palavras cabalísticas ou fetiches. Sua auréola, que se manifestava apenas quando estava muito concentrada, determinada ou feliz, era um literal arco-íris em forma de halo. Se Sachiel havia conquistado asas espectrais - três pares, como se tivesse nascido um seraph - Luna havia nascido sendo capaz de manifestar dois pares de asas que mudavam de cor conforme a sua vontade... para desespero de sua mãe e risadas de Sachiel. Os anos que passaram juntos foram bons enquanto duraram.

Onde deveria haver um coração em Sachiel, se ele fosse humano, havia uma espécie de reator - o colisor de átomos, que fornecia a energia que os seres celestes como ele precisavam para manter a si e a seu avatar. Mas sentiu o colisor se contrair, como se fosse humano.

Saudade. Saudade de um tempo que há muito havia passado, e que não voltaria jamais.

_Você não pode voltar no tempo e fazer tudo diferente, Sachiel. Mas pode fazer qualquer outra coisa, daqui em diante, que não seja definhar. Pense nisso. Voltarei daqui a uma semana. Pedirei a Hefesto que faça uma lança, uma égide e uma boa espada. Você pode precisar dessas coisas se quiser visitar a Terra dos Homens.

_Peça para ele fazer um par de cestus de pancrácio. Vão ser mais úteis.

_Então você vai mesmo à...

_É. Você me convenceu. Quero que saibam, lá, quem sou eu. Alguém além de nós tem de saber. Não quero ser o único a reminiscir sobre o que não existe mais. Se é pra ter dores de cabeça, não vou tê-las sozinho.

Atena sorriu. Naquele momento, ela sabia que tinha feito Sachiel renascer. Sabia que, agora, o mundo conheceria a história do seu amigo.

* * *

O Cego