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Outro lado do reflexo

Iniciado por Kazuyashi, 28/10/2013 às 04:18

28/10/2013 às 04:18 Última edição: 28/10/2013 às 13:16 por Kazuyashi
Outro lado do reflexo
Por Kazuyashi


Adendo um: Quem preferir ler em PDF (como eu), com uma formatação melhor, pode baixar ao CLICAR AQUI.

Adendo dois: Sou péssimo em histórias de terror, então tentei agregar outros elementos. Não sei se a execução ficou completamente falha, já que o "terror" só surge mesmo para o final e tudo ficou meio, digamos, intencionalmente longo e esquizofrênico. Mas, de qualquer forma, agradeço e espero que tenha uma boa leitura.



Dizem que se você olhar por muito tempo seu reflexo num espelho, logo verá algo que não gostaria de ver. Algo que o assombrará e assombrará a todos a sua volta pela eternidade. No começo, se sentirá apenas um pouco estranho, deslocado. Depois, tomará atitudes no dia a dia que antes não lhe eram comuns e, quando menos perceber, se tornará outra pessoa. O mundo também será outro. E você será cruel, vil e decadente. Mas o mundo será o mesmo, e você apenas viverá numa ilusão forjada pela maldição que de ti tomou conta. Mais importante que isso, não se olhe no espelho. Jamais. E, se em algum momento precisar fazê-lo, o faça com extremo cuidado. É verdade, acredite: nunca se sabe o que se esconde no outro lado do reflexo.

João Rodrigo constatou este triste corolário tarde demais. Alguns afirmam categoricamente que o corpo dele ainda ronda pelas ruas da cidade quando anoitece, mas que sua alma fora sugada para uma dimensão avessa à nossa. Outros concordam com o fato de ele ainda perambular por aí, mas alegam que seu espírito não fora tragado e sim que simplesmente enlouquecera no processo de resistir ao desconhecido. A verdade é que ninguém sabe exatamente o que aconteceu após aquele fatídico dia, mas duas coisas são consenso: o relato de como tudo começou; e que tudo começou por amor.


O violão pendurado na parede não era a única coisa empoeirada naquele depósito mofado de espermas secos, que caracterizava um quarto de adolescente: Também havia alguns CDs aleatórios de rock, música clássica e jazz; umas revistas de nome "Cifras e etc.", que, pelas páginas amareladas e desgastadas, pareciam sair diretamente dos anos oitenta; alguns papéis de caderno em branco dispersos e algumas edições da "Playboy". A última fora lançada naquela semana e trazia o esbelto corpo de Dany Bananinha estampado na capa. Era o sonho de consumo de muitos pubescentes dos anos dois mil.

Abaixo do pequeno escrínio no qual estavam essas tralhas, um cesto de lixo, que ironicamente parecia ser mais limpo que todo o restante do cômodo. Jogados nele, alguns papéis amassados e fragmentos do que parecia ser uma carta. O carpete cinza desbotado fornecia refúgio aos farelos e restos de comida de semanas atrás. As paredes, apesar de bem mais claras, partilhavam dos tons cinzentos do tapete mofado. Do lado da porta, um belo e ornamentado espelho figurava, rijo e imponente, enquanto refletia um esmirrado menino, sentado numa amarrotada cama de madeira, no canto oposto.

Esta era a descrição mais simplista do lugar mais agradável do mundo para João Rodrigo: seu quarto, sua solidão. O canto particular que o permitia ser quem era e liberar suas frustrações. A única coisa que faltava naquele espaço para que fosse perfeito era Nathália. A menina estava na mesma turma que ele na escola, e dizer que João possuía uma queda por ela era diminuir demais o seu sentimento. Nem o próprio entendia como aquilo podia acontecer. Para alguém como ele, com raciocínio tão matemático, a lógica do chamado "amor platônico" não fazia o menor sentido.

Ao ignorar isso, por fim, parou de contemplá-la e largou sobre a cama uma foto de Nathália, a qual havia tirado escondido meses atrás, e levantou para ir tomar banho. Era um dia muito especial para ele, pois estava às vésperas de completar dezessete anos. Tinha de aproveitar ao máximo, já que, em breve, toda a liberdade da qual gozava iria pelo ralo. Ao concluir o terceiro ano do Ensino Médio, precisaria estudar feito cão para passar no vestibular e ingressar em medicina, pela UFRJ. Não era o seu sonho, mas era o que seus pais lhe impunham desde criança, o tal do "você será médico ou advogado. De preferência, médico. Se advogado for, será médico, logo após". Assim, "sim, senhor". E bastava.

Após se enxugar e vestir o uniforme da escola, passou na cozinha para ter o seu rápido café matinal: um copo de leite achocolatado qualquer. Não demorou muito, pôs o copo vazio na pia, agarrou a mochila sobre a mesa e foi embora. João nunca fora do tipo metódico, porém sua rotina para o dia já havia sido previamente traçada: iria à escola, assistiria às aulas normalmente e, após o soar do último sinal, se mandaria para algum bar de esquina, sem fiscalização, parar comemorar com seus amigos a chegada da nova idade, entre uma cerveja e outro cigarro. Ao anoitecer, pegaria um cinema com Nathália e o dia seria, certamente, o melhor dos que já tivera na vida, digno do de um aniversário feliz.


O plano seguiu sem falhas e, ao término das aulas, ele e os dois amigos dirigiram-se ao boteco mais próximo, cujo dono pouco se importava com a idade de seus fregueses, bem como em cumprir qualquer norma legal.
O lugar estava vazio. Escolheram uma mesa próxima à da de sinuca, do lado da janela, e ali ficaram. Pediram uma rodada de cerveja e alguns petiscos, para começar.

— Cara, papo sério — disse Matheus, o amigo que se sentara de frente para João. — Sou grato por ainda ter dezesseis. Minha mãe ainda terá de me engolir por, pelo menos, um ano e meio.

— Não fala besteira. Se ela quiser, te expulsa de casa agora mesmo, tendo dezesseis ou dezessete. E não sei por que ainda não fez isso. Tu coça o saco em casa o dia inteiro e não faz nada pra ninguém!

— E o cara, aí! Ouviu essa, Jão? — era assim que chamavam o amigo mais velho. — Qual é, Ricardo, me erra!

A risada dos três foi interrompida com a chegada da cerveja e dos salgadinhos. Antes de o garçom voltar ao bar, Ricardo pediu um maço de cigarros e isqueiro, quando, em troca, recebeu um longo olhar de reprovação. Já que o dono não ligava de infringir as leis, ele não podia se recusar a servi-los, por mais que considerasse a situação um absurdo. Contudo, ainda podia contestar aquilo mentalmente. Dois minutos depois, retornou com o pedido e saiu, enquanto demonstrava toda a sua insatisfação por ver aqueles jovens ali, tais quais adultos fracassados e beberrões.

— Esse garçom tá danado com a gente — comentou Ricardo. — Será que ele não pôs orégano no lugar do tabaco e cuspiu na nossa garrafa de cerva?

Todos riram novamente. João, então, se pronunciou:

— Que se dane. Hoje é meu aniversário, cara. Nada vai me aborrecer.

— Isso aí. Nem que a gente fume orégano.

— Nem que a gente fume orégano — Concordou Matheus.

Tim, tim.

Os três brindaram e deram o primeiro gole. Ricardo, o amigo mais pé no chão, resolveu ditar o rumo da conversa:

— Mas fala aí, Jão. O que pretende fazer depois de concluir o Médio?

— Sei lá, cara. Se dependesse de mim, não faria absolutamente nada. Provavelmente — olhou para Matheus primeiro e só então continuou — ficaria coçando o saco em casa, o dia inteiro, vendo umas fitas pornôs.

— Pô, até tu, Jão? Qual é! — proferiu Matheus, em retaliação.

Os três tornaram a rir e João prosseguiu:

— Mas falando sério, vou é ter que estudar igual cachorro pra passar no vestiba. Tenho que ser médico, pela UFRJ, ou a coisa vai ficar preta pro meu lado.

— É osso — vociferou Matheus, enquanto subia na cadeira e abria os braços para o nada. — Eita, vida de gado! Ô, povo marcado! Ô, povo feliz!

Aquela era uma tarde sem graça de terça-feira, e o próprio boteco não era lá o melhor dos lugares, portanto, quando Matheus fez aquilo, apenas outros dois fregueses na mesa do lado olharam com reprovação, além do garçom.

— O que é que você tá fazendo, ô doido? Desce já dessa joça! — Ricardo percebeu os olhares pouco amistosos, principalmente os do de quem os servia, e puxou Matheus para que ele se sentasse. — O garçom já não vai com a nossa cara e você ainda quer arranjar motivo pro descontente expulsar a gente daqui?

Matheus tornou a sentar-se e, como o algoz não viera, provavelmente era sinal de que ainda não seriam expulsos. João comia alguns salgadinhos, enquanto via Ricardo inquirir o amigo sem noção:

— E, afinal, o que a música do Zé Ramalho tem a ver com a situação?

— Sei lá. Ouço minha mãe cantar isso sempre e senti vontade de pôr o refrão pra fora.

— Ricardo — disse João, ao limpar os cantos da boca de eventuais rastros de quibes e rissoles —, o coçador de sacos profissional já está bêbado. Vamos sair de fininho e deixar ele aí pra pagar a conta?

— O que quer dizer com "está bêbado"? — provocou Ricardo. — Ele vive bêbado.

— Bêbado é o querido papai de vocês. E não faz nem dez minutos que chegamos, pô. A tarde é uma criança ébria, meus amigos. Fiquemos ébrios, em conluio.

— "Ébrio"? "Conluio"? — questionou Ricardo. — Você nem sabe comer macarrão sem fazer o molho espirrar, como pode saber o que significam essas palavras?

— Ele provavelmente ouviu isso em algum filme, achou maneiro e copiou.

— Sabe o que acontece, Rique? Você e o Jão me subestimam, cara.

— "Rique" é pro teus negos. Me chame de R-i-c-a-r-d-o. Apenas Ricardo.

Os três riram à vontade pela terceira vez e, a partir dali, a conversa ficou séria.

— Mas voltando — retomou Ricardo. — É difícil mesmo, Jão. Quando me formar, terei que trabalhar na oficina do meu pai. Queria fazer algo por conta própria, mas alguém precisa assumir os negócios da família.

— Fala pro teu velho que tu não quer. É simples, ora — interrompeu Matheus.

— Simples pra você, ô capitão Óbvio. Não vivo nesse mesmo maravilhoso mundo de Alice que você não.

— O Matheus realmente não precisa esquentar com nada, já que o pai deixou uma herança homérica pra ele.
Esse safado nem precisar trabalhar vai. Mas ele não está tão errado não, Ricardo. Teu pai é bem mais compreensivo que o meu, cara. Por que não conversa com ele e abre o jogo?

— Sei lá. Não quero desapontar o coroa. Vocês sabem que minha mãe não trabalha e o que nos sustenta é aquela imundice automobilística. Meu pai tem muito orgulho daquilo tudo, já que construiu do zero e com as próprias mãos. E tem dado certo, então...

— É difícil mesmo.

— Ah, me'rmão — cortou Matheus —, qual é a desse baixo-astral? Ninguém morreu aqui não, apesar desse papo estar quase me matando. É aniversário do Jão, pô. Somos amigos ou o quê? Seguinte: querem saber o que vou fazer depois de me formar?

Antes que alguém pudesse responder, Matheus continuou:

— Aliás, não respondam. Sei que vocês possuem maldade suficiente no coração pra cortarem meu barato. Vou é falar direto, morou?

João e Ricardo simularam um sorriso enquanto ouviam ao amigo.

— Vou comprar um iate vermelho sinistro, chamar umas dez gatinhas turbinadas e fazer festão todo dia em alto mar. E, de quebra, ainda vou ajudar os meus chegados que estão com incerteza do futuro.

— É. Faz isso mesmo e não te dou dois anos pra falir.

— E se falir? O que isso importa? A gente não leva nada dessa vida, Rique. Se eu puder ajudar os brothers e conseguir aproveitar alguns momentos legais com gatinhas de alto nível, qual o problema?

— Nem precisa. Vou tentar dar o meu jeito sozinho — disse Ricardo, enquanto parecia nem ter ouvido o apelido que tanto detestava. — Porém, se a coisa ficar feia, vou aceitar uma grana sua sim. E uma "Dany Bananinha" dessas, avulsa, também não seria nada mal.

— Esse é meu garoto! É assim que se fala.

— Pô, Ricardo, até tu, Brutus, vai surtar nesses devaneios pirados com o Matheus?

— Ah, Jão, pensa bem: Se a gente tem um amigo retardado montado na grana, a gente pode usar ele pra facilitações eventuais, por que não?

— Tá aí. Boa ideia. Num momento futuro, a gente pode até convencê-lo a escrever um testamento e incluir a gente nele. Depois e só sumir com o candango.

— Tá aí. Curti.

— "Retardado"? "Usar"? "Sumir com o candango"? — indagou Matheus, ao dissimular uma voz embargada. — Eu ainda estou aqui, só pro caso de vocês saberem. Pô, acho que preciso escolher melhor os meus brothers...

Os três riram e ficaram em silêncio por um tempo. Decidiram comer alguns dos salgadinhos, que já esfriavam, e, entre tragos, goles e mastigações, Matheus aproveitou para inquirir João:

— Mas falando em gatinhas turbinadas, Jão, anda às quantas com a Nathália?

Ricardo permaneceu calado, mas olhou ensandecido para Matheus, que pareceu ter entendido a pisada na bola que havia dado. Mas já era tarde; a pergunta já fora feita.

— Pô, Matheus — disse o amigo, levemente rubro. — Marquei um cineminha com ela hoje à noite. Você acredita que tô até compondo uma música pra essa garota? Presta só atenção no refrão: Nathália, teu furacão de amor me corta como navalha!

— Mas que coisa de corno manso, Jão! — Matheus prontamente se pôs a rir, enquanto Ricardo quebrou o próprio silêncio. — Espero, realmente, que você não pense em tocar essa porcaria pra ela.

— Por que, cara? Tudo bem que eu não toco e nem canto lá essas coisas, mas...

— "Mas" nada, cara. Se eu conheço você, vai inventar de parar uma aula qualquer e cantar essa moda nojenta de viola na frente de todo mundo.

— Sim, e qual o problema? Não estou te entendendo, cara.

Matheus havia feito a besteira de tocar naquele assunto delicado. Preferiu, então, conter a risada e evitar provocações. Enquanto se atentava para a conversa dos dois, aproveitou para comer os salgadinhos e fumar seu cigarro.

— Qual o problema? — repetiu Ricardo, em retórica. — Eu é que não estou te entendendo, Jão. Você vai é se humilhar na frente dessa vaca, por nada.

— Epa, peraí — após expelir a fumaça dos pulmões, o outro amigo tentou contornar a situação. — Pega leve aí, Ricardo. Ela pode não ser a melhor garota da escola, mas o Jão gosta dela.

— E daí se gosta. Pegar leve? Com a Nathália? — retoricou Ricardo. — Como se isso fosse possível. Fala sério, Matheus. Você sabe, eu sei e o mundo sabe que essa vaca não presta. Só quem parece não enxergar é o João, que ficou cego demais de "amor".

Sem sucesso.

João tentou se segurar, mas não conseguiu. Voou no colarinho da camisa do amigo e o prensou contra a parede, do lado da janela.

— Tá maluco? — vociferou, enquanto despertava a atenção do garçom. — Fala dela direito, pô!

— E vai dizer que eu estou errado? Acorda, cara. Essa garota não vale metade da humilhação que você vai passar, caso decida se envolver sério com ela! Larga de ser babaca.

Os dois nem pareciam se importar quando o garçom se aproximou e os afastou:

— Chega, seus moleques! Já pra fora. Estão atrapalhando o sossego do estabelecimento. O total da conta deu vinte e oito reais e quarenta e cinco centavos. Deixem o dinheiro e deem o fora — a expressão alegre do garçom reluziu como ouro ao fazer o que desde o início tivera vontade.

João e Ricardo acalmaram momentaneamente os ânimos e já preparavam para desembolsar o dinheiro, quando Matheus os cortou:

— Fiquem firmes aí. É por minha conta — puxou a carteira do bolso traseiro da calça e tirou uma nota de cinquenta. — Obrigado pelo atendimento, seu garçom. Toma essa onça e fica com o troco. Usa pra fazer um tratamento dentário, porque o seu hálito é de fazer chorar o mais machão dos que frequentam essa espelunca.

O garçom pegou o dinheiro e praguejou uma dúzia de palavras de baixo calão, enquanto assistia aos garotos deixarem o local. Do lado de fora, Matheus notou que os amigos ainda estavam estremecidos e tomou para si a responsabilidade de levar aquela conversa por um viés melhor. Contudo, ele realmente concordava com Ricardo e, por considerar João um grande amigo, não poderia deixá-lo ser enganado pela linda aparência de Nathália.

João — falou Matheus. Ele só chamava o amigo pelo nome correto quando realmente estava sério. — Não queria falar nada, cara, mas o Ricardo está certo.

João já simulava algumas palavras ofensivas, quando Matheus o cortou:

— Me deixa terminar, pô. O papo é sério. É o seguinte: essa garota realmente não presta. O Ricardo escolheu as palavras erradas pra falar isso, mas ele tem razão. Eu tô esperto e sei que tu se amarra nela, mas fazer uma declaração à moda romântica, com direito a seresta, ainda mais no meio da sala, não vai deixar tua situação melhor. Vai acontecer justamente o contrário disso. E a Nathália, bem, como é que eu posso te dizer isso...

Matheus fez silêncio e aproveitou para apoiar uma das mãos sobre o queixo. Ficou pensativo por alguns segundos e depois retomou:

— Bem... Ela simplesmente não é o tipo de garota pra você. Ela já saiu com dois terços dos caras do colegial, Jão. E isso nem seria tão problemático assim se ela não fosse esnobe e ridícula. Escute: deixa isso pra lá e tente esquecer esse sentimento. Por que não investe na Priscila ou na Sabrina? Elas te dão molinho, são agradáveis e, não menos importante, SÃO GATAS! Principalmente a Priscila, que avião...

Matheus, com a forma despretensiosa de falar, conseguiu arrancar uma risada de João. Parte do clima de amizade, presente antes da pequena discussão, fora recuperado naquele simples gesto.

O amigo apaixonado reputou por um tempo e, por fim, concluiu:

— Agradeço o que vocês estão fazendo por mim, sei que querem o meu bem, e até acredito que tenham razão, mas galera, sou louco pela Nathália. De verdade. E quero acreditar que ela vai mudar. E que vai ficar comigo.

Matheus sorriu, mas, ao perceber a irredutibilidade do amigo, decidiu se calar. Ricardo, então, tomou a vez:

— Bem, aí é com você — ele sabia que as pessoas não mudavam assim, de uma hora para a outra, e que, com certeza, Nathalia continuaria a ser a mesma meretriz de sempre, mas tentou ocultar este pensamento sombrio ao apoiar o amigo. — Talvez ela até mude mesmo, Jão. Você é um cara bacana. Além disso, é boa pinta, inteligente, e tem uma carreira brilhante pela frente. Frase clichê essa, mas é verdade. Quando ela perceber isso, vai mudar de conduta.

— E, Ricardo, não se esqueça de que ele também tem pelo menos um dos amigos gostoso e montado na bufunfa — interrompeu Matheus, em tom sarcástico, enquanto comia o último salgadinho que sobrara. — Ainda que o Jão fosse um vegetal, isso já seria mais que o suficiente pra ele conquistar qualquer cocota.

Os amigos riram como se a intriga de momentos atrás jamais houvesse existido. Eles se conheciam desde o primário e passaram por muitos momentos desse então. Aquele era o tipo de amizade que se levava para sempre no coração. O tipo de amizade que não poderia ser destruído por uma desavença tão banal.

— Enfim, me desculpe, cara.

— Me desculpe também.


Os três amigos passaram o restante da tarde em outro boteco pelas redondezas. Comeram, beberam, fumaram, e ainda jogaram sinuca e até um boliche improvisado com as garrafas vazias de cerveja e o auxílio de uma bola, surrupiada de uma das caçapas. O tempo passou tão rápido que o relógio de João já marcava cinco e meia.

— Galera, tá tudo muito bom, tá tudo muito bem, mas preciso ir pra casa agora.

Pôôoo, Jão! — Matheus se apoiou nos ombros do amigo e enrolou a língua para falar melindrosamente. — Fica mais um pouco, cara! Deixa de ser estraga-festas, cara! A festa é sua. É SUA, CARA!

Ricardo percebeu que João já começava a se irritar e afastou Matheus dele:

— Larga mão de ser chato, Matheus. O Jão já tinha falado que precisava sair.

— Ah, mas e daí? Quem liga? QUEM LIGA? Vam'bora, Jão! Vou contratar uma stripper pra te deixar feliz, seu mala! Fica aí, vai! Pô, irmão. PÔ!

— Deixa ele pra lá, Jão. Quando esse cara bebe, consegue ficar mais insuportável do que quando está sóbrio. Não sei como ele é nosso amigo.

João sorriu e assentiu com a cabeça, enquanto Ricardo empurrava Matheus para outro canto do boteco.

— Obrigado, Ricardo. Vou lá, então. Cuida bem desse safado! Ah, e agradece a ele depois por ter bancado tudo até agora.

— Mas não mesmo! — exclamou Ricardo, em tom de escárnio. — Não serei eu que irei agradecer a esse trapizomba. Se quiser, que agradeça você depois.

Ambos gargalharam e Ricardo retomou:

— Vai lá logo, pô. Boa sorte com a tua futura esposa. E vai pra assistir ao filme, hein? Nada de tentar "coisinhas indecentes".

João gargalhou e se despediu do amigo:

— Você tá parecendo até o "trapizomba" falando assim. Fui, então.

— É o convívio. Vai lá.

— Ah, Ricardo...

— O que é, cara?

— Obrigado.

— Tá me agradecendo pelo quê? Ficou maluco? — sorriu. — Não sabia que quando João Rodrigo bebia ficava todo educadinho.

João sorriu e foi embora. Ricardo sorriu de volta e, quando decidiu procurar o amigo bêbado, o amigo bêbado o encontrou.

— Matheus! — vociferou, com ares de lamento. —Põe a droga dessa calça de volta! É. Essa vai ser uma longa noite... E que Deus nos acuda.


João saiu do bar e foi direto ao ponto de ônibus. Precisava chegar à sua casa e se arrumar o quanto antes para ir ao cinema com Nathália. Não poderia, jamais, ir vestido em uniforme escolar surrado, sem banho, com cabelos desgrenhados, com cara de mendigo bêbado e com odor de tabaco num primeiro encontro. Seria, decerto, o último que teria. Se é que o teria.

Saltou do ônibus e, enquanto caminhava, se pôs a pensar no que faria quando a encontrasse: Como ele a deveria cumprimentar? Com um aperto de mão? Não. Seria ridículo e bisonho, sem mencionar a impressão de impessoalidade plena na qual isso acarretaria. Um beijo no rosto, então? João poderia parecer muito ouriçado, e ele não estava certo de em até que ponto aquilo poderia ser benéfico. Um abraço nem fora cogitado. Mas e que tal dar apenas um "oi" seco e abolir qualquer contato físico? E, caso viesse a fazer isso, ele perderia a grande chance pela qual esperara longos anos, apenas em prol de uma mera formalidade que sequer sabia se deveria existir? Sem falar que Nathália, de repente, poderia surpreendê-lo e tomar a iniciativa. Não. Pouco provável. Geralmente, aquilo partia dos homens. João não sabia o que fazer e nem o que pensar. Isso, sem falar nos presentes.

Não queria chegar de mãos abanando. Será que deveria comprar alguma coisa? Um broche, um chaveiro, um ursinho de pelúcia? Soaria infantil? João ouvira que mulheres gostavam de joias. Será que deveria arriscar em um anel, em um colar, ou em, quem sabe, um brinco? Mas ele sequer havia economizado para isso. João não fazia ideia. Na verdade, não tivera lá muitos encontros na vida. Apesar de ser um rapaz acima da média em quase todos os aspectos possíveis, era bastante tímido e reservado. E isso era um grande problema. Sua timidez e introversão sempre o afastaram das pessoas de quem queria ser próximo. Não sabia até aquele momento como foi que conseguira ficar amigo de Matheus e Ricardo. Talvez fosse porque os três partilhassem das mesmas características, apesar de diferirem significativamente em vários pontos. De qualquer forma, ele sabia que havia feito os dois melhores amigos que poderia naquela vida.

Quando caiu em si, João viu que já havia pensado em tantas coisas que nem sabia em qual ponto parara com Nathália. Num golpe, veio: "Ah, sim, o presente!". Ah, sim, o presente. Meu Deus, ele demorara tanto para conseguir aquele encontro! Não poderia estragar tudo. Precisava do presente ideal. Decidiu, então, que chegaria um pouco antes do horário combinado no cinema e visitaria as lojas do entorno. Elas eram tantas que, certamente, em pelo menos uma delas, haveria de ter "O" presente. Se possível, algum gravado com o nome "Nathália".


João finalmente estava em casa. Largou a mochila no canto da porta, ligou a luz do corredor e correu para o quarto. Seus pais trabalhariam até tarde naquela noite, então não precisaria se preocupar em dar qualquer satisfação. Era simplesmente se arrumar e cair fora.

Após acender a luz do quarto, se olhou no pomposo espelho que ficava ao lado da porta, e, como costumava fazer, tratou de iniciar uma solitária conversa, meio consigo, meio com ninguém, e até, quem sabe, meio com alguém:

— João Rodrigo, finalmente você conseguiu. É hoje. É hoje! Só não estrague tudo. O dia tá sendo perfeito até agora. Vai lá, tome coragem, e vê se faz direito o que tem que fazer.

A empolgação e ansiedade na voz do garoto eram evidentes. Na combinação matemática dos seus neurônios, João já se permitia tentar entender como a lógica daquele sentimento louco por Nathália figurava dentro de si.

Ele compreendia que aquilo era algo tão surreal que precisaria desmantelá-lo, ou, então, falharia diametralmente na hora H, quando estivesse de frente para o "furacão" que descrevera em sua música. Tudo o que queria era não manter aquela ansiedade e inexperiência ali, nele, contida, incubada, e travar de nervoso na frente da menina. Ou pior: cometer algum deslize e se tornar o "rei das gafes". Tudo precisaria ser e sair perfeito, afinal, aquela era a sua chance. Talvez sua única.

Tentou, então, extirpar esses algozes ao usar de um tom exaltado e vociferar, aos ventos infectos que rondavam seu quarto, palavras que lhe dessem incentivo.

Seu espelho ouvia a tudo, como, aliás, sempre fizera. Para João, olhar sua imagem, ali, refletida, por longas horas, enquanto conversava consigo mesmo, era como se sentar em um divã e relatar todas as suas frustrações, amarguras e incertezas a um psicólogo treinado, com a vantagem de este ser silencioso, gratuito, e mantenedor eterno do tal "sigilo profissional". Depois de Matheus e Ricardo, o espelho era seu melhor amigo.

Após a terapia improvisada, João já podia se sentir mais relaxado. Contudo, não sabia se estava pronto para ver a moça ou, ainda, para passar uma noite com ela, mesmo que fosse apenas sentado numa tétrica cadeira de cinema.

Momento para outra terapia.

João queria ver a foto de Nathália. Talvez, se a encarasse, como, aliás, rotineiramente fazia desde que a batera escondido, pudesse adquirir a coragem que lhe faltava. Se ele encarava a Nathália da foto, por que não encararia a Nathália real?

Correu para a cama. Se bem recordava, fora lá o lugar em que ele a largou e, portanto, deveria estar por ali.

"Ué?", não estava.

Procurou outra vez.

Sem sucesso.

João retirou a coberta, o lençol, a fronha, o travesseiro e todos os adereços possíveis que uma cama pudesse ter, mas nada.

Falhou novamente.

"Cadê essa foto?", e desistiu.

— Bem, se tudo correr como eu espero, e vai correr, eu posso pedir pra ela tirar uma foto comigo — falou consigo, depois de olhar para o relógio e ver que, se não se apressasse, iria se atrasar.

João desligou as luzes do quarto, fechou a porta e correu para o banho. De tão avoado, acabou que não vira; acabou que não percebera, sequer, que ainda havia uma fonte luminosa ali, bem acessa, e, irremediavelmente, impossível de desligar. Pelo menos, não por meio de um interruptor deste mundo.


Ele deveria ter sido mais atento...


João se arrumou e saiu de casa. Seu relógio indicava sete horas e ele marcara com Nathália às nove e meia, portanto, ainda havia um bom tempo para varar lojas à procura de um presente interessante.

Quando saltou do ônibus, às oito, entrou na primeira joalheira que viu pela frente, chamada "La Pierre De Rosette", e torceu para encontrar uma bela – e barata – joia.

Não havia nenhum comprador ali. De pronto, a única atendente veio:

— Boa noite, senhor. Gostaria de dar uma olhada em nosso catálogo de joias?

— Ah, sim, claro — João não sabia ao certo como agir. Nunca estivera num lugar como aquele antes.

— E gostaria de ver algum ornamento em especial?

— "Ornamento"?

— Brincos, braceletes, colares...

— Ah, sim, mil perdões. Estou interessado nos brincos.

— Estes são os mais procurados — disse, ao por em cima do balcão espelhado dezenas de pares da joia, cada um a custar mais que o outro.

Ela não virá.

— Desculpe, mas você disse alguma coisa? — inquiriu João à atendente, levemente perturbado.

— Eu? Não, senhor. Não disse nada.

— Ah, desculpe, me enganei — João pensara ter ouvido algo, mas logo desconversou e apontou para um par qualquer que achara bonito. — E este? Quanto custa?

— Duzentos e cinquenta, senhor. Gostaria de leva-lo?

Ela não virá.

Silêncio. De novo aquela voz.

Ela era fria e, ao mesmo tempo, acalorada; Isenta de emoções, e, em contrapartida, parecia apertar o coração de quem a ouvia a ponto de fazer chorar. Era lamentosa e provocativa. Um timbre agudo-grave insano, mescla de harpa angelical e urro demoníaco. Era, de certo, uma voz inédita e, ao mesmo tempo, bastante familiar. Apesar de bem distorcida, no fundo João sabia: aquela voz era a dele própria.

Ela não virá.

Outra vez. Quando se dera conta disso, descobrira que ela não vinha da atendente, mas sim de sua própria cabeça. Algo ali dentro parecia falar com ele e avisar que "ela" – possivelmente Nathália – não viria. João não sabia se era apenas o seu nervosismo, em brincadeira com seu subconsciente, ou se realmente enlouquecera. Não havia nenhum caso de esquizofrenia na família e assustou-se ao pensar que poderia sofrer do mal. Em verdade, não haveria, ali, como João saber disso, mas sofria, sim, do mal. Ou melhor: de um grande mau.

O suor gelado já escorria por entre as rugas da testa, quando o garoto voltou a si:

— Senhor, está tudo bem? — indagou a atendente, preocupada.

— Ah... Oi. Desculpe, mas fiquei um pouco tonto.

— O senhor parece estar suando frio. Por que não se senta um pouco? Gostaria de um copo d'água?

— Não, não, obrigado. Já estou bem. Então. Quanto foi mesmo que você disse que este par custava? — desconversou. Fosse o que fosse, não poderia deixar que o atrapalhasse logo naquela noite.

— Duzentos e cinquenta.

— Caramba, devia ter pegado algum dinheiro com Matheus.

— Como, senhor?

— Ah, nada, desculpe. Duzentos e cinquenta. Tudo bem. Vou levar.

— Ótima compra, senhor. Vou pegar uma linda caixa de nossa loja para por o presente e já retorno. Estou certa de que a pessoa que a receber irá adorar.

A atendente foi fazer os preparativos para a compra e deixou João momentaneamente sozinho. Distraído, de repente, olhou para sua imagem, refletida no balcão espelhado, e não acreditou no que viu. Suas mãos tremeram e, logo, a tremedeira se arrastou para todo o corpo.

Percebeu.

No reflexo, no lugar reservado à sua "semelhança", havia uma silhueta negra, de textura rochosa quebradiça, tal qual cratera lunar, mas difícil de definir, e com órbitas oculares vazias, destacadas por uma frágil e caótica luz avermelhada.

João se assustara tanto que desvencilhou o olhar o mais rápido que conseguira e, assim, não pôde prestar atenção aos detalhes mais assustadores. Contudo, assistiu ao espelho tempo o suficiente para se horrorizar e perceber os lábios ferinos, que gesticulavam sozinhos. Não houvera som naquela vez, mas a leitura labial que fizera fora perfeita: "Ela não virá. Ninguém virá".

Quando a atendente retornou, a assombração havia sumido, porém não o espanto de João. O menino estava em choque. Jogado no chão, em pânico, gritava desesperadamente por socorro enquanto se debatia, trépido e trôpego.

Já não sabia mais o que era verdadeiro ou falso, o que era real ou imaginário. Tudo o que queria era esquecer a visão daquela coisa, e, principalmente, a voz em suas têmporas, a perturbar sua sanidade.

A atendente correu para o telefone e discou o número que João deduziu ser o da ambulância. Ele certamente precisava de ajuda, mas com quem poderia contar? Se relatasse tudo o que experienciou naqueles minutos aos médicos, policiais ou a qualquer perito que lidasse com aquele tipo de situação, não havia a dúvida de que eles o tratariam por louco e o internariam num manicômio por toda a vida. Que parecesse louco então, mas ele sabia o quão real aquele momento perturbador havia sido. Em todo o caso, ele só queria sair dali e ir a algum lugar no qual pudesse respirar ar puro. Mesmo que não estivesse são por inteiro, era preciso aparentar estar bem.

João forçou um sorriso amarelado e levantou com aparente dificuldade. A atendente já falava com algum funcionário público, quando o viu se levantar.

— Senhor, não! — abafou o fone com uma das mãos e exclamou, preocupada. — Fique deitado, por favor, senhor! Não está em condições de sair assim. Estou chamando a ambulância e...

— Não, não precisa. Sério — cortou João, ao exibir um sorriso apático. — Já estou bem melhor.

— Mas senhor...

— Já disse que estou bem! — vociferou, ensandecido e ofegante. — Aqui está o dinheiro. Só me dê a joia e me deixe sair daqui.

O suor escorria intensamente.

A atendente engoliu seco, assustada. A pessoa no outro lado da linha provavelmente não entendia nada do que se passava e já estava a rastrear o local da ligação.

João deixou o dinheiro no balcão com profusa grosseria, dirigiu-se à mulher, puxou a caixa com a joia das mãos dela e foi embora.

Sem reação.

Só percebera o que havia acontecido quando o cliente já passara pela porta.

— Senhor, por favor...

Tarde demais.

— Alô, desculpe, mas foi um engano. A situação já está sob controle. Sim, sim, está tudo bem. Não, foi apenas um cliente que passou mal. Não. Está tudo bem agora. Tudo bem, obrigada. Desculpe novamente — a atendente pôs o fone no gancho e ficou ali, a tentar se acalmar e a entender o que acontecera naqueles minutos tão fora de eixo.

Esquecera até de pôr o dinheiro na registradora. Talvez nunca chegasse a uma conclusão plausível para o que houve naquela noite.


João pôs a caixa no bolso e cambaleou até a entrada do cinema. Àquela altura, pouco importava se suas roupas estavam amarrotadas, se seu cabelo havia bagunçado ou se o suor o havia deixado nojento. Queria muito ver Nathália e se preocupava muito com o sucesso daquele encontro, mas, depois do que presenciara, muita coisa deixou de ter importância. Estava abalado fisicamente e sua presença mental já não existia.

A noção de tempo e espaço se perdera conforme os minutos passavam e a voz advinda da figura macabra lhe atormentava. Sempre que olhava para alguma superfície espelhada era a mesma coisa. João podia evitar ver o demônio, mas não podia evitar ouvir seu impetuoso e enlouquecedor murmúrio.

Ela não virá. Ninguém virá.

Depois, se afogava em devaneios tortos. Eventualmente, imagens claras de pessoas mortas surgiam em sua mente, dentre as quais conseguia reconhecer algumas: seus pais, seus colegas de classe, seus amigos Matheus e Ricardo, a própria Nathália e até a si próprio.

Pura insanidade.

As pessoas ao redor percebiam o estado alterado de João e o olhavam assustadas. Algumas cochichavam entre si, enquanto outras discavam para a polícia por considerarem que ele pudesse estar alucinado, o que, certamente, o incutiria grande perigosidade.

Já para João, os transeuntes eram criaturas nefastas, com asas de morcego, garras de falcão e corpos de javali, mergulhadas num céu acabrunhado e maldito. Precisaria correr se quisesse ter alguma chance de sobreviver a elas. Assim, então, o fez.

Correu e correu. Já não se importava com mais nada. Na última fração de racionalidade que lhe sobrara, imaginou que talvez fosse o resquício do álcool, em uma atrapalhada atroz do seu discernimento de realidade e ficção. Ou que realmente houvesse orégano ou qualquer droga alucinógena naqueles cigarros que fumara no primeiro boteco, e que aquilo, de alguma estranha forma, afetara muito suas sensações. Mas não era. Lógica alguma mais fazia sentido. Lógica alguma mais precisaria fazer sentido. Quem lá era Matheus? E Ricardo, quem era? Medicina era um sinônimo vazio e, Nathália, um sonho inalcançável.

Pronto.

Tudo desmoronou.

Na penumbra de um beco sem saída, perpendicular à rua que João cruzava, lá estava ela. Timidamente. Avidamente. Em gemidos álacres.

Na verdade, não tão tímida assim. E muito mais ávida do que se pressupunha.

Nathália.

Real ou imaginário? Deturpação ou sanidade? Fosse o que fosse, a gargalhada sombria de Nathália lhe arrepiava o âmago. Inegavelmente.

Em meio às penetrações e aos grunhidos histéricos e intensos na e da moça, um vento obscuro e teleguiado trouxe à mão de João a foto que havia se perdido horas – ou dias – atrás – o menino já não sabia dizer. Ao olhá-la, uma surpresa: um sorriso malévolo, cujo qual sequer existia na foto original, brotava dos lábios mórbidos de uma Nathália aparentemente devotada à escuridão. Os olhos implicavam destruição e o cenário em que pousavam dualizava bem com esta impressão atroz.

João se perdera tanto naquela devassidão demoníaca que sequer percebera que, à sua frente, o corpo desnudo e satisfeito de uma eufórica e gozada Nathália dera lugar a um imenso e ornamentado espelho. Uma segunda surpresa: o aspecto, agora, decerto era mais larval, mas aquele era, ou, pelo menos, um dia fora, o seu espelho.

Pavor irrestrito.

Quando o percebeu e olhou ao redor, João, enquanto indagava a si próprio o que acontecia e em que lugar realmente estava, contemplou a escuridão total e absoluta, à exceção dele próprio e a do que em sua frente figurava.

Um fascínio sádico e por completo destrutivo avivou a moldura, enquanto a superfície espelhada se iluminava em extensos fachos vermelho-infernais.

— Agora você sabe, João — disse a mesma face que havia aparecido na joalheria, agora onusta de detalhes, refletida no espelho de João. — Agora você sabe o porquê de ela não poder vir.

O menino nada fazia além de tremer. A única coisa que conseguiu proferir foi um inaudível "o que é você", mas suficiente para que o que quer que fosse o ouvisse.

— O que eu sou? — repetiu, em retórica, a face no espelho flutuante. — Eu sou você – o você verdadeiro. Eu sou o seu lado mais hediondo. Sou o reflexo distorcido e aprisionado do você de agora, porém o você real. Sou seus impulsos assassinos, sou o seu cheiro de morte, podridão e carnificina. Sou suas veias, que mais parecem teias de aranha velhas, ressecadas ao sabor do vinho mais amargo. Sou sua face, negra, cheia de morbidez em cada esganiçado sorriso psicótico e doentio o qual você exibe. Este sou eu. Este é você. É o você que você tenta, em vão, camuflar. Até de você mesmo.

Cada vez mais afetado pela situação, João já não conseguia mais formar frases. Tudo o que conseguia era dizer palavra soltas e deixar que ganhassem significado por elas mesmas. Algo como "Isso tudo é loucura" se formou. Silêncio.

O espelho respondeu:

— Exato. Loucura. Loucura é tudo o que você é. É o que eu sou, também. Eu sou a loucura que você deixou escapar.

Perturbação. João já não sabia mais o que era, o que foi ou o que seria. Não sabia onde estava e nem para onde todo mundo fora. Não havia, sequer, uma gota a mais de razão que o permitisse refazer seus passos até chegar àquele ponto. Se pudesse voltar, talvez de alguma forma entendesse o que acontecia. Mas mesmo que pudesse, não seria possível. Era deturpado demais para ter algum entendimento lógico. A loucura refletia à sua imagem. A loucura era o próprio espelho. E João estava a se convencer de que louco também era. Mas queria entender o que havia acontecido com Nathália, seus pais e seus amigos. Todos precisariam estar bem. Todos tinham de estar bem.

Impressionantemente, desta vez não fora necessário dizer nem gaguejar nada. O espelho pareceu ter lido todas as indagações que perpassavam à mente do menino e as respondeu sem dilação:

— Não busque sentido no que não tem. Nada faz sentido, João. Pelo menos, não para você. Foi assim que escolheu. Você sempre se reportou a mim, ou melhor, à sua loucura, João, nos momentos em que a sanidade não o suportou. A cada conversa solitária, a cada lamento contristado, no que, para você, parecia ser um desabafo inocente, em quatro paredes, no seu quarto juvenil, era, na verdade, uma sádica e psicótica loucura. Uma loucura assassina que eu cometia por você, com sua aprovação. E eu não fiz nada a ninguém. Fui apenas o instrumento. Você é quem fez.

Uma longa, aflitiva e intencional pausa. O espelho gargalhou como se o amanhã não existisse e prontamente continuou:

— Nathália morreu e quem a matou foi você.

Choque.

— Seus pais estão mortos. Seus amigos estão mortos. Você matou a todos.

"Impossível..."

— Não é não — disse o espelho, como se a cada segundo que passasse, mais pudesse compreender a mente em frangalhos de João. — Será que você se esqueceu do quanto você já detestou seus pais por forçarem você a seguir um caminho que não queria, João? Ou por nunca terem tempo o suficiente para você? Sua mãe sempre trabalhou bastante e seu pai estava ocupado demais, cuidando das amantes que tinha na rua.

O espelho, então, mostrou a João, como num filme, cenas que o mesmo vivera quando assassinara os próprios pais.

—Você sabia. Você sempre soube que seu pai era um canalha detestável e que depositava em você as próprias angústias e depravações. Ele merecia morrer – você julgou. Sua mãe, ridícula e submissa, cujos olhos se fechavam para a libertinagem do marido, e sequer tinha tempo para o próprio filho, decerto não merecia viver. Você, então, a matou. Você os matou.

João não conseguia falar, fazer e nem pensar mais nada. Era um vegetal inerte, e traumatizava-se mais a cada palavra e imagem proferida e mostrada pelo espelho.

— E os seus "amigos"? Ora, João, vai dizer que acreditou, realmente, que seu dia fora assim, do jeito que pensa?  Não se engane: ele não foi assim. Seus amigos também não eram assim. VOCÊ os criou assim. Você nunca teve envolvimento emocional profundo com seus pais, mas, em contrapartida, admirava bastante Matheus e Ricardo. Tanto que queria ser como eles; andar com eles. Mesmo que eles não gostassem tanto assim de você. Na verdade, eles sempre o violentaram.

João parecia querer gritar algo como "Por favor, pare...", mas a voz não saia. Contudo, o espelho facilmente o interpretava.

— Parar? Não suporta a verdade? Que decepção você está se mostrando, João — gargalhou o espelho. — Não. Não vou parar. Você vai ouvir tudo. Vai saber da verdade.

João, em desespero indescritível, colocou as mãos sobre as orelhas para evitar escutar aquela voz diabólica, mas não adiantou.

— Não adianta tapar o ouvido, não adianta arrancar suas orelhas. Não adianta nem explodir o seu cérebro. Você me ouvirá até o fim, querendo ou não. Não pode escapar da própria loucura.

João, que a esta altura já estava a se contorcer no chão, com as mãos na cabeça, não aguentou e urinou em si próprio. O espelho macabro riu e prosseguiu, a expor em seu "visor" as cenas que descreveria em breve:

— Na verdade, seus "amigos" eram considerados os mais legais do colégio. Eles eram ricos, bonitos e inteligentes. Tinham tudo o que queriam, inclusive todas as garotas que quisessem. Inclusive Nathália. Já você, João, sempre fora um João-Ninguém, cuja serventia se limitava a ser vítima do acesso de violência que eles tinham. Era divertido e aliviava a tensão deles fazer você sofrer, principalmente quando saiam com Nathália. Faziam questão de explorá-la ao máximo na sua frente, uma vez que sabiam dos seus sentimentos por ela.

O espelho fez uma pausa e prosseguiu, a deleitar-se com o sofrimento indizível de seu "alter-ego" ou "ego-alter":

— Você sofria, é verdade. Você os odiava, do fundo do coração, mas, ainda assim, não podia deixar de os admirar. De sentir inveja deles. Você, então, fez algo "inédito": Já que os odiava, os matou. Contudo, para não se sentir deprimido por não ter aqueles que idolatrava vivo e por perto, criou-os na própria mente, do jeito que bem entendeu.

Outra pausa. João já não sabia quanto tempo se passara desde que iniciara aquela conversa, que mais parecia um mefistofélico monólogo. Alguns minutos? Algumas horas? Talvez alguns dias? O horror fritara seus neurônios e, quando pensou que havia se tornado insensível a qualquer tipo de informação, o espelho novamente o incitou:

— E eu ainda nem falei de Nathália.

— PARA — exclamou João, ao usar sua força derradeira.

— Recuperou a voz? Ah, foi apenas um resquício de vontade — gargalhou o espelho. — Já disse que não vou parar. Você vai ouvir.

João agora só podia chorar. Era tudo o que conseguia fazer.

— Antes de tudo, olhe para a sua perna, mais precisamente no lugar em que guardou o "presente" para Nathália.

O menino, em prantos, deitado, desesperado, trêmulo e urinado, olhou para o lugar indicado e não acreditou no que viu. Sangue. João sangrava absurdamente. Quando olhou atentamente, viu que a "caixa de joia", na verdade, era uma grande faca. Estava cravado na sua coxa.

João já não tinha força alguma, mas o espelho deduziu que ele perguntaria o porquê daquilo e o respondeu:

— A mulher na joalheria, na verdade, era a própria Nathália. Após matar Matheus e Ricardo, você correu para esfaqueá-la, já que ela também estava presente na cena. Ela correu e entrou no lugar mais seguro que encontrou, mas você estava no seu encalço. Deu a primeira facada em uma das coxas dela. Naquele momento ela caiu e implorou por misericórdia, mas você a esfaqueou tanto e tanto que logo os gritos pararam. Mas você a amava muito. Não poderia deixá-la morrer assim, sem antes prová-la. Mas, para o seu azar, ela morreu. Ela morreu e você fez sexo enquanto o corpo ainda permanecia quente. Fez sexo, mesmo com todo o sangue que fluía e toda a tripa que se expunha.

João vomitou. Não só imaginava a cena, como assistia a tudo, com todos os detalhes. Sua personalidade entrou em colapso definitivo, enquanto o espelho prosseguia:

— Depois de ter se unido à sua amada cadavérica, você ficou com remorso e, tal como fez com Matheus e Ricardo, a imaginou como bem entendera. Foi a forma que encontrou para se poupar dos tormentos maiores. No caso de Nathália, a idealizou como alguém inalcançável e puro; como a garota perfeita que iria, pelo menos no seu devaneio insano, ter um encontro com você. Mas você não aguentaria olhar para Nathália novamente. Ela não poderia aparecer jamais. Forjou, então, outra imagem para supri-la e esta foi a da atendente. Mas você não poderia deixar o facão de fora. Ele existira e era necessário traçar seu fim. O idealizou como uma joia e este seria o "presente" da inalcançável Nathália. Como você jamais a veria e jamais a presentearia, guardou-o no bolso.

O espelho se calou e o menino, enfim, desmaiou.

Na verdade, se João possuísse discernimento o suficiente, poderia deduzir que nada daquilo era verdadeiro. Que nada daquilo fazia a menor lógica, mesmo a julgar que nenhuma lógica, evidentemente, regia aquela situação. Poderia deduzir que seus pais, seus amigos e a garota de quem gostava não coincidiam com a visão deturpada que o espelho lhe passara, e, principalmente, que não haviam morrido. Mas João já não possuía tal força. Se possuísse, poderia deduzir, também, que sequer saíra dos domínios de seu quarto; que sequer vivera aquele dia; que não sonhava, mas que habitava, sim, num pesadelo lúcido desvairado. Num pesadelo concebido pelo espelho macabro que se energizara com os próprios desalentos do menino. Se João demorasse mais a se entregar; se demorasse mais a se deixar convencer, talvez pudesse ter escapado. Mas não escapou. E, se aqueles que muito considerava ainda viviam, isso não continuaria assim por muito tempo.


Quando João acordou, já não havia mais sinal algum do desespero pelo qual passara. Não havia sangue, urina, lágrimas ou roupas rasgadas. Na verdade, João estava nu e completamente bem consigo mesmo. Acreditou, em princípio, que tudo não passara de um estranho sonho, porém, antes que pudesse tentar entender o que acontecera de fato, olhou para o lado e viu uma linda mulher, também nua, de longos cabelos pretos e a pele ligeiramente azulada. Ela o olhava carinhosa e desejosamente.

Quando o menino tentou perguntar o que acontecia, a mulher pôs o dedo indicador sobre os lábios dele e meneou a cabeça em sinal negativo. João corou, mas manteve o silêncio. Ela, então, deixou escapar um riso que fez o menino em fervura e completou:

— Não diga nada. Não pense nada. Só venha o quanto antes para os meus braços, meu querido João Rodrigo. Eu sou a sua loucura. E a sua loucura tem planos para você.

João assentiu subserviente e, ali, uniu-se à que viria ser sua eterna companheira. Havia, na cabeceira da cama em que faziam amor, um pequeno espelho e uma faca, recentemente limpa.

Pô, Kazu, assim você me quebra! Meu cérebro quase eclodindo de tanto ler contos (se não me engando foram 15 ou 16) e você me aparece com um de páginas. Mas eu li tudo e se posso resumir minha opinião em três palavras essas seriam: Valeu a pena! Na verdade vou acrescentar outra palavra: Valeu MUITO a pena!

Sua história me vez viajar viajar 54 anos no passado e visitar uma antiga série chamada The Twilight Zone (Além da Imaginação, aqui no Brasil). A série sempre focou muito na fantasia com vários outros elementos, tais como a ficção científica, psicologia e, é claro, o sobrenatural. E seu texto me fez sentir como se estivesse vendo um dos episódios em preto e branco. Só faltou encerrar a história com:

CitarHá uma quinta dimensão além daquelas conhecidas pelo homem. É uma dimensão tão vasta quanto o espaço e tão desprovida de tempo quanto o infinito. É o espaço intermediário entre a luz e a sombra, entre a ciência e a superstição; e se encontra entre o abismo dos temores do homem e o cume dos seus conhecimentos. É a dimensão da fantasia. Uma região Além da Imaginação!

Só que, em vez de Rod Serling, seria Kazuyashi.

Voltando a história, quando bati o olho na quantidade de palavras pensei que seria uma leitura monótona para um conto de terror. E sinto orgulho em dizer como estava enganado. Peguei para ler agora a pouco achando que teria que deixar o resto para amanhã, mas quando eu dei por mim já estava lá na página dez e louco para continuar a ler.

Os diálogos, a narração, o clímax, o desfecho (principalmente o desfecho) ficaram tão bem feitos, se encaixaram tão bem, que carecem de qualquer comentário. A história foi incrível, é isso, I-N-C-R-Í-V-E-L! Eu gostei tanto dessa história que me senti obrigado a ir caçar esse gif, porque ele resume toda minha opinião em poucos segundos:


Nada mais a declarar, somente meus parabéns. Essa eu deixo salva no meu PC!

Viva a lenda!




Como diria o irmão [user]Mistyrol[/user]: Deixa disso, homem! Assim eu fico constrangido.  :noface:

Carambolas! Primeiramente, muito obrigado pela presença, Vincentão! Fico feliz, de verdade, com os elogios! Mas não concordo com todos. Hahaha. Depois de ler, reler, re-reler, e re-re-re-re-revisar a história, percebi que adicionei detalhes demais, sem a menor necessidade, principalmente na conversa do protagonista com os amigos, e acabei não focando na parte do "terror" como eu gostaria. Achei que ficou, realmente, bem monótono até certa parte.

Perdi muito do ritmo com esses acréscimos e isso prejudicou muito o resultado final. Acabei saindo do foco. Considero isso um grande erro. De qualquer forma, se eu der uma boa enxugada, essa história talvez tenha salvação. Hauhauahu.

E wow! Que citação mais foda! Já ouvi falar desse seriado, mas nunca o assisti. Se for tão maroto quanto ela, vou procurar aqui pra dar uma olhada!

E muito obrigado novamente, meu amigo, tanto pela presença quanto pelas palavras!

Um grande abraço,

Kazuyashi.

Vamos falar um pouco do terror. Por culpa de Hollywood tem muita gente que acha que o gênero é só sobre mortes e dar sustos. O que é uma grande mentira! Terror tem muitas facetas, como fantasia, thriller, sobrenatural, etc. A sua história, por exemplo, tende para o lado do sobrenatural e fantasia.

Não acho que a história ficou monótona. Algumas partes poderiam ser cortadas? Poderiam, mas muitas delas ajudaram a criar a personalidade do protagonista e preparar o terreno para o clímax. É igual o filme Ringu (a versão original de "O Chamado"). 80% do filme é só mostrando a protagonista tentando descobrir sobre a Sadako, a garota da fita. Somente no final que temos o susto mesmo, o clímax.

Se você acha que ainda pode melhorar a história, acho que seria legal você já começar a trabalhar a parte da loucura no início da história. Nada que fique na cara, algo bem sútil para que o leitor pense "Opa, tem algo estranho nessa história!" e então vá aumentando gradativamente. Tipo o que eu tentei fazer no meu conto de Halloween, Escuridão. Coloquei um evento estranho no começo e conforme a história foi passando eu aumenta a quantidade.

Continuo dizendo, a história está ótima!

Viva a lenda!