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Fazendo coco no meu aniversário

Iniciado por RuanCarlsyo, 25/08/2014 às 12:25

Formatação decente aqui:

https://drive.google.com/file/d/0B3BgKWp_NYMUc1hORm51Nzc2cnc/edit?usp=sharing

Se quiser ler por aqui mesmo, lá vai:


Tudo começou no dia dezesseis de agosto. Era um dia nublado, onde a falta da luz do Sol descoloria a tudo e a todos, como se as coisas fosse levemente filtradas pelo efeito especial de preto e branco do Instagram. Meus sentimentos costumam variar de acordo com o clima (e de acordo com a playlist do meu iPod, mas isso não vem ao caso). Então não estava particularmente feliz nesse dia. Mas a razão da minha melancolia não era apenas o clima. Era o meu aniversário.
Sim. O dia dos flashes impiedosos das câmeras Kodak, os sorrisos dos vultos que se mixam em um amontoado, os parentes desinteressantes que apenas sabem repetir o mantra de "Onde está sua namorada?" como papagaios insistentes, as piadas sem graça, o meio social que te traga sem pestanejar. E o pior de tudo:
O bolo.
Os números.
A lembrança da morte universal e eminente.
Animador, não é? Pois é, lépido leitor. Para a maioria das pessoas, a resposta é sim.
E você se pergunta: E tu, ó, destemido herói, onde se encontras no meio de todo este ritual profano? Guerreando contra o monstro face a face?
Quase isso. Acontece que eu estava trancado no banheiro. Cagando. Enquanto o resto do que já foi alimento e naquele momento era processado e inútil para o meu corpo descia pelo meu canal anal e a água já suja do vaso respingava na minha bunda nua e branca, gostaria de dizer que meus pensamentos estavam em outro lugar. Debatendo a existência de Deus ou algo assim. Mas, sempre que eu mais preciso, eu perco a habilidade de escritor de "viajar para o outro lugar". Eu queria não estar pensando no agora, na realidade, na minha bunda molhada com água da privada suja de merda.
Eu estava encarcerado na prisão que eu mesmo criei. Hum... Metáfora clichê. Eu estava tentando ir para o "outro lugar" de todas as formas possíveis, e apesar de não estar com o Word ou com papel e caneta, ainda estava com a minha mente. Só, que neste momento, isso não era o suficiente.
Me levantei, e acho que você não precisa saber dos próximos detalhes. Ah, não. Precisa sim. Após usar o papel higiênico — muito áspero, por sinal — e o jogar no lixo, me levantei, puxei minhas calças jeans e afivelei o cinto. Então me virei de frente para a privada e dei descarga.
Ou deveria ter dado.
Apesar de puxar a cordinha diversas vezes, não vinha nenhuma enxurrada de água varrer a bosta da minha frente. Então, em vez de dar a descarga, lavar as mãos, e voltar para a festa, fiquei ali parado. De pé, encarando minha própria merda. Os simbolismos e metáforas eram tantos, e tão profundos, que permaneci em êxtase, bem ali mesmo, por alguns segundos. Era tão chato ter uma mente ativamente criativa e procurar poesia e metáfora no cotidiano, mas só se deparar com o caos aleatório. Mas agora eu via uma mensagem. Agora eu via um caminho viável por qual seguir. Todo dia eu defecava e dava descarga. Agora eu não podia mais fugir da minha própria bosta. Agora eu a encarava. Sentia seu fedor. Observava sua textura, seus contornos, o brilho da lâmpada no seu marrom molhado.
Não deixava de tentar mandá-la embora, mas hoje percebi que não conseguiria. Chega a ser profético. O dia que anuncia o término de um ciclo é aquele que me obriga a peitar os meus demônios. Eu não vou continuar nesse estado entorpecido. Saio do banheiro, me sentindo um extraterrestre. É o meu apartamento? Ou outra dimensão? Essas pessoas existem? Ou é apenas mais outra criação da minha cabeça?
A canção em uníssono dedicada a mim parece um grito distante demais para receber muita atenção. Tudo é uma confusão de cores e sons soníferos e descartáveis. Para quem eu estava atuando? Eu estava mentindo para eles?
Ou para mim mesmo?
Sopro as velas.
As chamas diminutas apagam. O calor e luz que emanavam se extinguiu. Mas não para sempre. Elas voltam alguns instantes depois, como um lutador de UFC se levantando após o que havíamos pensado ser um nocaute. Tento novamente. E, após meu sopro, algumas velas usam o que restou de brasa para reascender. De novo. Só pode ser brincadeira. Ouço algumas piadas. Finjo que acho a situação engraçada, e assopro pela terceira vez, dessa vez determinado a torná-la a última. Uso todo meu fôlego.
Apago as velas. Cuspo no bolo. Acidentalmente, é claro. Sinto meu rosto esquentar, ao perceber que os que riam antes pararam, e me encaram. Uma garotinha diz que não quer comer "o bolo babado do cara nojento", e seu pai, envergonhado, a faz ficar em silêncio. Uma vela filha da puta ainda consegue reascender. Um amigo meu me socorre:
— Bem, quem se importa em comer o bolo tão rápido, né? Vamos primeiro ouvir o discurso do nosso aniversariante, aqui!
Digo que não tenho nada a dizer, e a plateia começa a encher o saco, como se realmente ligasse para o que o cara que bancou sua alimentação pelas últimas horas tem a falar. Tudo como bem reza a tradição.
As pessoas ao meu redor, aos poucos, conseguem fazer silêncio, depois de vários psius e cala boca's mútuos. Todos os olhares se voltam para a minha pessoa, em uma calada grande o suficiente para se ouvir uma agulha quicando no chão. Sinto minha corrente sanguínea esfriar. Meus batimentos cardíacos se fazem presentes, como um tambor de passeata.
— Discurso, é?
— Sim! — O mesmo amigo de antes me encoraja. — O que você achou do ano de vida passado, da festa, dos convidados...
Me embolo e tropeço nas palavras.
Ouço uma piada:
— Justo você, que escreve, tá com dificuldade em fazer o discurso? O mundo dá voltas, hein?
Gargalhadas. Permaneço em silêncio. Respiro fundo, e digo:
— Bem... É sempre uma honra receber cada um de vocês aqui no meu humilde apartamento. Bem, é... Tipo...
Silêncio por mais alguns instantes. Que merda. Que merda.
— Hoje foi meu dia, né? E é uma experiência espetacular, por um dia apenas, no ano, ter todas as pessoas que você gosta num lugar só. O nosso aniversário é um dia dedicado a nós. E por isso é incrível. O último ano também foi isso. Digo, foi incrível. E eu devo agradecer a vocês por isso, por um ano de tantas surpresas e plot twists... Quer dizer, só surpresas mesmo. Eu queria que todos os dias fossem recheados de diversão, novidades, aventura e excitamento como este. Bem, o primeiro pedaço do bolo...
Todos batem palmas. E saem para pegar uma leva de salgadinhos. O primeiro pedaço do bolo pode esperar. Guardo o aperitivo coberto de saliva ainda inteiro na geladeira, e volto para a sala, torcendo para que as velas não tenham uma quarta reascendida e incendeiem minha cozinha.
Vou para a sala, novamente, onde rolam os comes e bebes. Todos conversam animadamente. Sou bem recebido de volta, e todos tratam o tema da cuspida com naturalidade e risos. Tudo parece bem, mas falta algo. Algo pra me despertar. Me sinto como quando tenho insônia. Toda realidade parece uma versão adulterada de outra versão adulterada de outra versão adulterada de outra versão...
Só tem uma coisa que me ajuda quando estou com certos graus de "pseudo-autismo": a escrita. Se este mundo não é bom o suficiente para mim, por que não criar um que seja?
Ignoro a festa pulsante atrás de mim e caminho para meu quarto. Fecho a porta, e a tranco. Ando até a mesa de madeira, e puxo a máquina de datilografia. Pensei que fosse ficar mais perto das musas inspiradoras por ter uma dessas. Mas a máquina era inútil, e servia apenas como uma decoração vintage. E pra tirar selfies fingindo que a uso pra compartilhar no Facebook. Mas enfim, não conseguia escrever de verdade nela, apenas no computador mesmo. Ligo-o, e abro o Word.
Nada.
Nada.
Nada.
Talvez, para ser um grande escritor de verdade, você precisa ser uma grande pessoa. Se eu não tenho nada a dizer, nada a escrever, talvez eu seja tão vazio quanto essa página em branco, que me encara e me condena sem misericórdia.
Mas nem tudo está perdido. Ainda tenho meu estoque de criatividade de emergência.
Pego os adesivos de nicotina que comprei na farmácia. Eles servem para quem está tentando deixar de fumar aos poucos. Ou pra quem quer escrever de forma mais zen.
E pode crer: funciona. Começo a escrever poesias psicodélicas ao som de um baixo rock progressivo.
Alguém bate na porta. É um colega meu.
— Tá tudo tranquilo, cara?
— Não. O mundo parece tão complexo...
— Cadê a maconha?
— Eu não estou drogado, cara. É só medicina alternativa.
— Ótimo, porque eu tenho uma consulta marcada para agora. Galera! Vem aqui, que o anfitrião tem as ervinha das boa!
Alguns minutos depois e meu quarto já está lotado de adolescentes entrando na vibe e acabando com meus adesivos. Não vou conseguir escrever aqui.
Saio do quarto, contorno todas as pessoas, e vou pra cobertura do prédio. Paz, finalmente. É um bonito céu noturno. Talvez o ar poluído até me incomodaria se eu não fosse filho da cidade grande. Os barulhos da cidade ficam abafados lá embaixo. É como se, mesmo que ilusoriamente, eu pudesse ser um pouco livre.
Livre.
A palavra se repete como um eco na minha cabeça. É a primeira coisa que penso durante meu aniversário que parece pura, ainda não corrompida pela futilidade cotidiana. Liberdade parece um bom ideal pelo qual lutar. Forte o bastante para promover guerras e tratados de paz. É se sentir enclausurado no próprio desconhecimento que fez o homem avançar no meio científico. Que fez pessoas morrerem procurando alternativas para a escravidão. Mas e eu?
Eu não sou um guerreiro nem um diplomata. Não sou um cientista nem um escravo.
Não tenho nenhum ideal pelo qual lutar. Nenhuma razão pela qual viver, fora aguardar o próximo aniversário.
Eu não sou nem um escritor. Para ser um, é preciso passar alguma mensagem. Eu não tenho ideia de qual seja a minha. Nem se eu tenho uma. O mundo não quer ler poesias psicodélicas de um drogado ou páginas em branco. Talvez, para mim, ser um escritor seja só ter fotos em uma rede social com uma máquina de datilografia vintage. Esperar que a palavra escritor me torne alguém que cubra esse vazio imenso. Alguém que apaixone as pessoas pelo seu jeito de pensar, pela sua coragem em pensar.
E eu não sou nada disso. Eu sou apenas... Eu mesmo.
O vento frio se bifurca no meu corpo, e o ar seco forma vapor na minha respiração.
Os carros passam, um mosaico de luzes lindo de ser apreciado de cima. Os minutos também passam com a mesma velocidade, impiedosos, como uma bomba- relógio.
Eu não tenho tempo para procurar a "Grande Verdade" para sempre. Conforme os aniversários passam, eu me aproximo da morte. Eu não tenho tempo.
Saio do prédio, pego meu carro. A liberdade é incrível. E o melhor de tudo. É real. A única coisa que me parece real hoje. Mais real que todo, todo o resto.
Liberdade também é fugir. Não necessariamente fugir para um lugar específico, mas de um lugar específico. Enquanto acelero o meu carro pelas estradas vazias da noite, não sei para onde estou indo. Apenas quero me adentrar no êxtase de ter coragem de mudar as coisas, de sair da hipnose de um dia após o outro. Eu estava cansado das mentiras e privações. Eu queria viver. Apenas isso. Viver. Sair e ser engolido pelo mundo.
Estou a cem por hora, e as ideias não param de surgir. E não tenho a necessidade de anotá-las ou decora-las com floreios de poesia. Apenas surgir na minha mente e desaparecer para sempre já basta. É tudo que tem que bastar. Qual a necessidade de escrever para as pessoas? Por que não usar minha mente apenas para mim mesmo? Sem mais preocupações ou revisões de texto. Até quando iria me importar mais com erros de português do que com minha revolução espiritual? Sou minha ortografia. Sou uma locomotiva criativa viva. Não quero e posso parar.
O que é essa vontade louca que me impulsiona e me leva a imaginar?
Estou à beira do mundo. Estou escorregando por ele.
As árvores passam por mim tão depressa, como vultos escuros e uniformes. O vento seca uma lágrima tentando escapar. Quero que a realidade seja assim comigo. Assustadora, cruel. Porém ainda assim maravilhosa ao mesmo tempo. Pois ao é menos real. Palpável como o volante entre minhas mãos.
Deixo tudo para trás. A cobertura do prédio, meu bolo cuspido, os meus amigos, a merda na privada, as poesias psicodélicas, a máquina de datilografia. Saboreio a frase "Deixo tudo para trás".  É deliciosa.
Sou absorvido pelos meus sentidos. Pelos adesivos de nicotina.
Mais. Mais. Mais. Mais.
Não enxergo mais a estrada. Enxergo apenas meus pensamentos, que me guiam, incertos. Tudo é mágico.
O carro sai da estrada. Lança-se em direção ao abismo.
Fecho meus olhos, e abro minhas asas.